O primeiro delito de Miguel
Assalto aos 13 anos: como um adolescente entrou para o mundo do crime
Menino mora em bairro pobre da Região Metropolitana, reprovou duas vezes na escola, tem histórico de problemas familiares e participou de roubo à mão armada
Miguel (o nome é fictício para preservar a identidade do adolescente) é o quarto filho em uma família de sete irmãos, mora em bairro periférico da Região Metropolitana, e, aos 13 anos, ainda dorme com a mãe. Pelas ruas sem calçamento, onde o esgoto corre a céu aberto, o adolescente caminha sozinho até a escola. Isso acontece porque o transporte para o colégio não passa pela vila onde reside. Desenha e pinta figuras coloridas nos cadernos. Gosta de Matemática, mas não se dá bem com História. Resiste a se manter em sala de aula. Por excesso de faltas, perdeu o 6º ano e mudou de colégio.
No início de abril, seguiu de carro com outros três até um mercado, a quatro quilômetros de casa. Aquela manhã marcaria a trajetória do garoto, e sentenciaria o Estado em mais uma perda precoce para o crime. Assim como 42,5% dos internos da Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase), o adolescente participaria de um assalto. Era seu primeiro ato infracional (como são chamados os crimes cometidos por menores de 18 anos).
— Pega aquele relógio — ordenou um dos assaltantes ao garoto que cobria a cabeça com um capuz.
O adolescente caminhou até o cliente junto ao caixa, roubou o acessório e entregou ao comparsa. Enquanto dois reuniam o dinheiro, um deles armado com revólver, Miguel andava afoito pelo mercado e olhava repetidas vezes para a porta. Recolhia maços de cigarro e guardava nos bolsos do casaco. Os três fugiram com R$ 1,6 mil em um Corsa, onde eram aguardados pelo motorista. O assalto foi gravado pelas câmeras do comércio. O garoto despertou a atenção pela pouca idade.
— Tem uma criança junto — alertou um dos policiais após assistir ao vídeo.
Enquanto procuravam por eles, Miguel já estava em casa. Naquela tarde não haveria aula porque os professores participavam de treinamento. Lúcia, 36 anos, (nome também fictício) percebeu que o filho estava inquieto. Perguntou o que estava acontecendo. O menino contou que havia participado do roubo. Quatro dias após o assalto, recorda a mãe, Miguel foi levado por agentes até a 2ª Delegacia de Polícia de Gravataí. Quatro suspeitos do crime foram identificados.
— Ele disse que se arrependeu. Não sabe o que deu na cabeça dele para fazer isso. Choramos muito já. Não vim antes porque fiquei com medo de perder a guarda deles — justifica a dona de casa, que entre os sete filhos têm um bebê.
Na delegacia, em Gravataí, a confissão do garoto
No distrito policial, o menino, de cabelos curtos e moletom, senta num sofá atrás da mãe. Assim como na escola, tem dificuldade em se manter atento. Mexe constantemente no celular de Lúcia. Minutos antes, havia sido reconhecido por uma das vítimas como sendo um dos autores do assalto. Em depoimento, confessou que participou do crime. Disse que foi convidado pelos outros.
— Aproveita enquanto ele é praticamente uma criança. Conversa com ele — orienta o delegado Gustavo Bermudes, que investiga o roubo.
— Por falta de atenção e conversa não é. Desde pequeno me prometeu que não ia me dar trabalho. Nunca pensei em passar uma vergonha dessas — responde a mãe.
O policial poderia ter pedido a internação de Miguel, mas entendeu, assim como o Ministério Público (MP), que não era o caso, por se tratar do primeiro ato. O garoto recebeu a segunda chance. Pelo roubo, poderá ser submetido a outra medida socioeducativa para buscar sua reabilitação. Por conta do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o MP mantém sigilo sobre o caso, Miguel deixa uma das salas da delegacia e desce as escadas caminhando na frente da mãe. O menino e o delegado trocam rápido aperto de mãos na saída da DP.
— Aproveita para pensar em estudar e daqui a pouco começar a trabalhar. Meus pais passaram dificuldades. Mas não me deixei influenciar pelo local onde vivia. Se algum dia precisar de alguma coisa, vem aqui, que vou tentar te ajudar. Agora se tu cair outra vez, em outro ato infracional, não vou poder te ajudar — alerta o delegado, natural de Campinas, que se mudou de São Paulo para o Rio Grande do Sul há 10 anos.
— Aprendeu a lição? — questiona a reportagem a Miguel.
— Aprendi — responde com a cabeça baixa, encabulado.
Comparsas têm histórico de crimes
Além dele, outro adolescente, de 17 anos, também foi identificado no mesmo assalto. Este não foi encontrado em casa. Com três registros por tráfico de drogas nos últimos dois anos, já possuía mandado de internação na Fase. Acabou apreendido dias depois. Para a polícia, o jovem, que completou 18 anos quatro dias após o crime, foi o mentor do roubo. Era ele quem apontava o revólver na direção dos clientes e das funcionárias do mercado.
— São jovens que frequentam o mesmo local de lazer, uma quadra de futebol, uma pista de skate, uma praça. Conhecem usuários de drogas, traficantes locais. Pessoas que aparentemente são sucedidas no crime. Usam um tênis melhor, corrente de ouro, relógio. Acabam se espelhando nesses e não em pessoas trabalhadoras — analisa o delegado.
Desempregada, Lúcia diz que não conseguiu creche para o caçula e, por isso, não pode voltar a fazer faxinas. Cria os filhos com R$ 488 do Bolsa Família e a pensão paga pelo pai das crianças. Vivem num dos bairros mais pobres de Gravataí. Na frente da casa de alvenaria, roupas das crianças secam sobre o portão de madeira.
— Sempre que chove, alaga os pátios. Esses dias, uma criança caiu no valão — reclama uma vizinha.
Quando mãe e filho chegam da delegacia, Miguel caminha em direção a um dos quartos. Fecha a porta. Há mais dois quartos, separados por cortinas. O bebê e duas meninas estão no sofá, aos cuidados de um familiar. A filha, de cinco anos, agarra-se a Lúcia e pede pão. A mãe diz que aquecerá o almoço. A pequena quer feijão.
A mãe abre a porta do cômodo onde dorme com os filhos em uma cama de casal. Ali, empilha no chão os pacotes com comida, o botijão de gás e até as roupas que precisam ser lavadas. Sempre que precisa sair, fecha com chave e tranca a janela por dentro. Esconde do primogênito, usuário de drogas há cinco anos.
— Tranco tudo. Se não ele leva e vende — confidencia.
Do 1º ao 5º ano, Miguel estudou na mesma escola e teve aprovação. Era um aluno sem histórico problemático. Em 2017, repetiu a 6ª série. Em junho do ano passado, começou a acumular faltas. Tanto que quando ouviam o nome do colega, as crianças respondiam: “Esse não vem mais profe”. A direção diz que tentou contato com a família, mas a situação não melhorou. Acabou perdendo o ano por infrequência. Lúcia diz que Miguel perdeu o interesse pelos estudos em 2018. O irmão furtou os materiais escolares que ele havia recebido de um projeto social. Trocou o estojo, as folhas de ofício, os cadernos, os tênis e até um par de chinelos de Miguel por crack.
— Ele não quis mais ir. É muito inteligente. Mas se revoltou. Agora tá indo de novo. Quero que estude para ser alguém na vida. Ter as coisinhas dele — diz a mãe.
"Insisto para ele ir no colégio", diz mãe
Assim como 82% dos adolescentes infratores internados na Fase, Miguel tem distorção de idade e série. Isso acontece quando o aluno reprova ou abandona os estudos por dois anos ou mais. É um dos fatores apontados pelo Ministério da Educação para impulsionar a evasão escolar, já que o estudante mais velho pode ter dificuldade em conviver com uma turma com idade inferior. Miguel poderia estar na 8ª série, mas reprovou um ano e perdeu outro pela pouca frequência.
Insisto para ele ir no colégio. Essa idade é bem difícil. Vou trancar mais ele em casa
LÚCIA
Mãe de Miguel
Os cadernos do menino estão guardados na mochila, com um livro de inglês. O garoto tem letra cursiva e faz desenhos coloridos nos cantos das páginas, mesmo nas aulas de História, disciplina que diz não gostar. Quando está em sala de aula, Miguel é disperso. Inquieto, pede para ir embora. Tem dificuldade para se enturmar e fazer trabalhos em grupo. Queixa-se com frequência de dor de cabeça.
— Insisto para ele ir no colégio. Essa idade é bem difícil. Vou trancar mais ele em casa — promete a mãe.
Na parede da sala há um retrato do garoto, vestindo uma farda azul. Há dois anos, a mãe encomendou a foto. O menino dizia que queria ser policial. Agora fala em um curso de robótica. Enquanto as irmãs assistem televisão, o garoto cruza o portão, com o celular nas mãos. A mãe perde Miguel de vista. Lúcia diz que ele irá à escola. Ainda dá tempo. São 12h35min. Vinte minutos de caminhada separam a casa do colégio. A aula inicia 13h15min.
Naquela tarde, ele não foi à escola. Este é o primeiro ano do menino no colégio, que atende cerca de 600 alunos. As faltas fizeram a direção agendar reunião com a família. O encontro deveria ter acontecido três dias antes do assalto. De novo, o menino faltou ao colégio. Nenhum familiar foi à reunião. Quando souberam da participação do aluno no roubo, acionaram o Conselho Tutelar. O adolescente não apareceu no colégio.
— Ficamos muito abalados, quando soubemos que era ele. Não é uma criança agressiva. Estávamos tomando providências, por conta das faltas — relata uma das professoras.
Miguel estudou em outro colégio do bairro, com 750 alunos. Em 26 de agosto, foi feito alerta pela escola por meio da Ficha de Comunicação de Aluno Infrequente (Ficai) das faltas do estudante. A ferramenta online serve para informar o Conselho Tutelar e o Ministério Público, que podem adotar medidas, como se reunir com a família e trocar a criança ou adolescente de instituição de ensino.
Segundo a coordenadora Greicy Kelli da Silveira Santos, o Conselho Tutelar visitou a família do adolescente após a escola ter feito o alerta sobre as faltas. No sistema consta que ele havia mudado de endereço. Miguel acabou sendo matriculado em nova escola.
— Nesses casos de infrequência, a gente chama a família, adverte, orienta e nos casos mais severos encaminha ao Ministério Público. Ele nunca tinha dado problema. Nosso atendimento era com o irmão dele mais velho — afirma.
No fim do ano letivo foi considerado evadido (termo usado para os alunos que não retornam).
— A educação é um funil, onde muitos não chegam ao final. A gente vê aquelas turmas cheias no início e depois vão ficando cada vez menores. Muitas meninas engravidam cedo. E os meninos que muitas vezes caem nesse mundo — lamenta a diretora.
"Os pais estão trabalhando e eles estão vulneráveis"
Além da infrequência escolar, para as representantes do Conselho Tutelar que atende os bairros da região onde Miguel reside, outro fator contribui para deixar crianças e adolescentes mais vulneráveis. O governo federal reduziu em 66% a quantidade de escolas públicas do RS contempladas pelo Mais Educação em 2018. Em Gravataí, 4,3 mil dos 5 mil estudantes deixaram de fazer parte.
— Essa gurizada está toda na rua. Para nós, isso é um agravante. Os pais estão trabalhando e eles estão vulneráveis, nesse horário extra-escola — afirma a conselheira Iris Cristiane da Silva.
Dois dias após passarem pela DP, mãe e filho foram chamados para uma reunião no Conselho Tutelar. Ficou acordado que Miguel terá de retornar à escola, frequentar centro de referência (com atividades e oficinas fora do turno de escola) e ser encaminhado para atendimento psicológico.
— Nosso papel é solicitar os serviços para a rede. Para que ele possa ser acolhido. Agora vamos seguir acompanhando. Saber se ele está indo às aulas ou se voltou faltar. O empenho da família é essencial — diz a coordenadora Greicy.