Feminicídio em São Gabriel
Militar da reserva irá a júri na quarta-feira pela morte da ex-mulher
Paula Estefani Schultz Lopes Lacerda foi assassinada quando ia ao trabalho, em 2018, aos 23 anos
Uma vez por semana, Katia Schultz Lopes Lacerda, 43 anos, visita o túmulo da filha Paula Estefani Schultz Lopes Lacerda, em São Gabriel, na Fronteira Oeste. É a forma encontrada pela mãe para tentar amenizar o vazio deixado pela jovem. Na manhã de 5 março de 2018, Paulinha, como era chamada, foi atacada e morta a facadas a caminho do trabalho, aos 23 anos. O militar da reserva do Exército Rogério Biscaglia Righi, 34 anos, vai a júri na quarta-feira pelo assassinato da ex. A sessão tem início previsto para as 9h e será presidida pela juíza Juliana Neves Capiotti.
– Se deixar de ir no cemitério, é como se tivesse abandonado um filho. Não vou ver a Paulinha, mas ao menos me conforto. Vivo a minha vida assim. Depois que sair esse julgamento, espero que a gente descanse um pouco. É muito difícil – diz Kátia.
Quando foi morta, Paulinha carregava no pescoço um cordão com o nome do filho: Benjamin. O menino é fruto da relação com Righi. A corrente foi cortada durante os golpes de faca dados pelo militar contra a vítima, segundo a denúncia do Ministério Público.
O avô Rubem Araci Souza Lopes, 61 anos, sargento aposentado da Brigada Militar, levou a joia para conserto. O plano da família é entregar o cordão à criança, quando crescer. Paulinha trabalhava como comerciária em uma loja de São Gabriel, mas planejava seguir a carreira do avô e se tornar PM.
– Não tem o que faça a gente descansar ou aceitar o que o aconteceu. Foi uma destruição na nossa família. Afetou todo mundo – lamenta o avô.
No dia 16 de outubro, o filho da jovem completou três anos. Desde que a mãe morreu, ele está aos cuidados da avó, que agora se apega ao neto como forma de suportar o luto. Após a morte de Paulinha, não houve mais festa de aniversário. A primeira e única foi planejada e realizada por ela.
– Ela sonhava tanto com o aniversário dele. Graças a Deus, conseguiu fazer a festa do jeito que queria. A gente acha que vai um dia fazer uma festa para ele de novo. Ainda não dá. A vida da gente se destruiu. Tem pessoas que dizem como sou forte. Não é questão de ser forte. Me agarrei nessa criança. É o que me faz continuar – relata Kátia.
Apenas uma quadra separava as casas da filha e da mãe, onde Paulinha deixava o pequeno todas as manhãs. No dia do crime, o menino ficou aos cuidados do padrasto. Katia não estava: acordara cedo para ir ao Centro. A jovem saiu da casa da mãe em direção ao trabalho. Paulinha havia se separado do companheiro havia dois meses, com quem manteve relacionamento por dois anos.
Após idas e vindas, decidiu romper a relação. Recebeu apoio da família, que não concordava com os episódios frequentes de brigas e ciúmes. Apesar dos desentendimentos, não registrou ocorrência contra o ex. Naquela segunda-feira, quando ocorreu o crime, segundo uma amiga, a jovem pretendia procurar a polícia. O tom das ameaças havia aumentado.
A investigação da Polícia Civil apontou que Righi perseguiu a ex-mulher por duas quadras em um Fiesta. Imagens de câmeras de segurança flagraram este percurso. Na Avenida Francisco Chagas, acelerou o veículo na direção da jovem. Paulinha foi atingida pelo veículo ainda na calçada. Testemunhas relatam que ele saltou do carro e atacou a jovem, com golpes de faca no pescoço.
Enquanto era ferida, a mulher tentou reagir e, segundo testemunhas, gritou para que ele pensasse no filho. Righi foi detido por outro militar, com a faca do crime na mão. Uma semana após o assassinato, a família realizou caminhada de protesto, pedindo justiça pelo caso. Fizeram cartazes, camisetas e banners com as fotos de Paulinha.
No dia do julgamento, a manifestação deve ser silenciosa.
– Vamos acompanhar vestindo a camiseta com a imagem dela, sem passeatas, para não atrapalhar o andamento do júri. Agora só esperamos justiça – diz o avô.
"É um caso chocante", diz MP
Righi responde pelo crime de homicídio qualificado por motivo torpe, recurso que dificultou defesa, meio cruel e feminicídio, que é o assassinato de mulher em contexto de gênero. Segundo a promotora Lisiane Villagrande Veríssimo da Fonseca, pela Promotoria, serão ouvidas três testemunhas, entre elas a mãe de Paulinha.
– Acredito que conseguimos provas suficientes para buscar a condenação do réu. É um caso bastante chocante. Mesmo condenado, nada recupera a vida perdida, tanto dela como também do filho, que ficou sem a mãe. É uma coisa muito complicada. Ela não tinha medida protetiva contra ele. Ao que tudo indicia, ela tentava manter um bom relacionamento com ele até por conta do filho – afirma a representante do Ministério Público, responsável pela acusação.
Contraponto
O acusado é representado pelos advogados Gustavo Teixeira Segala, de Santa Catarina, e Tiago Machado Battaglin, de São Gabriel. Pela defesa de Righi, foram arroladas quatro testemunhas para o julgamento. A defesa não quis divulgar quem são as pessoas a serem ouvidas. Em nota, os advogados não deram detalhes sobre a tese que será apresentada no júri, mas afirmaram esperar "julgamento imparcial e justo". O réu segue preso no 9° Regimento de Cavalaria Blindado, em São Gabriel.
Confira a manifestação: "Por parte da defesa, não adentraremos o mérito da causa nem detalhes do processo, primeiramente em respeito à vítima e seus familiares, bem como ao Poder Judiciário. Mas gostaríamos de salientar, em que pese a gravidade do crime imputado ao réu, a defesa técnica busca com todas as forças um julgamento imparcial e justo, observados todos os princípios constitucionais da plenitude de defesa, do contraditório, e do devido processo legal. Apesar de se tratar de um crime que abalou a comunidade, esperamos um ambiente tranquilo para desempenharmos o papel fundamental da defesa".