Violência contra mulher
Morte de diarista expõe limitações da Lei Maria da Penha
Legislação federal exige relação íntima de afeto duradoura ou permanente para garantir medidas protetivas
O assassinato da diarista Roselane Cândida da Silva, 45 anos, neste sábado (11), em Canela, suscitou um debate em torno das eventuais limitações da Lei Maria da Penha. Morta com quatro tiros por um conhecido que a perseguia há pelo menos um mês, Roselane não teria direito a medidas protetivas asseguradas pela legislação federal concebida para defender as mulheres porque não mantinha relação íntima de afeto com o algoz.
Segundo familiares de Roselane, Manoel Adelar da Silva, 63 anos, conhecia a vítima desde criança. Mais recentemente, teria nutrido obsessão por ela, seguindo-a inclusive no local de trabalho. Ambos eram casados com outras pessoas e, conforme Roselane assegurou várias vezes, jamais mantiveram qualquer vínculo afetivo.
Ela chegou a procurar a Brigada Militar para registrar ocorrência da perseguição. No sábado, estava na fila do supermercado com o marido quando foi alvejada pelos quatros disparos e morreu enquanto recebia atendimento médico. Silva fugiu, mas acabou suicidando-se a poucas quadras do local. Segundo o delegado substituto Gustavo Barcellos, da Delegacia de Polícia de Canela, não houve falha da rede de proteção porque a ocorrência não se enquadrava na Maria da Penha.
– Se ela não tinha relação com ele ou qualquer tipo de vinculação, em princípio, não haveria como ela obter medidas protetivas – justificou.
A declaração causou controvérsia por se tratar de um caso claro de feminicídio, provocado por alguém que conhecia e perseguia a vítima, inclusive com registro da perseguição junto às autoridades policiais. Conforme a delegada Tatiana Bastos, titular da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher e diretora da Divisão de Proteção e Atendimento à Mulher no Estado, Barcellos está correto. Segundo Tatiana, o enquadramento na Maria da Penha exige não só que a violência seja motivada pelo gênero da vítima, mas também requer vínculo doméstico ou familiar com o agressor, com relação de afeto.
– Pode ser marido, ex-marido, companheiro, ou mesmo um parente: pai, filho, cunhado, genro. Mas é preciso ter uma relação íntima de afeto permanente ou duradoura. Não pode ser sequer um mero ficante – esclarece a delegada, lembrando que a modelo Eliza Samudio, morta a mando do goleiro Bruno num caso que teve repercussão nacional, teve medida protetiva negada pela Justiça justamente porque não mantinha relação duradoura com o ex-atleta.
Tal interpretação da Maria da Penha é questionada pela advogada Cármen Campos. Conselheira da ONG Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos, a ativista sustenta que a polícia não poderia ter ignorado a relação de afeto que o assassino desenvolveu por Roselane, ainda que eles jamais tivessem tido qualquer vinculação íntima.
– Realmente, a Maria da Penha é para violência doméstica e familiar, mas ele mantinha uma obsessão e não se sentia correspondido. Mesmo que não tivessem relacionamento formal, alguma medida protetiva tinha ser que tomada. Há uma relação imaginária que a polícia não poderia ter ignorado, afinal havia uma perseguição – comenta Cármen.
Para situações desse tipo, Tatiana Bastos afirma que o caminho não é a Maria da Penha, mas, sim, o dispositivo do Código de Processo Penal que estabelece medida cautelar de afastamento. A ordem judicial, segundo Tatiana, tem escopo mais ampla do que a prevista na lei de proteção às mulheres por não exigir relação íntima.
– Canela não tem vara especializada em violência contra mulher, mas aqui em Porto Alegre tem e já vi muitos juízes negarem pedidos em casos semelhantes a esse. Muitas vezes a Justiça nega protetiva pela Maria da Penha, mas concede a cautelar de afastamento.