Polícia



Sob suspeita

Filial gaúcha da Cruz Vermelha foi usada para fraudar gestão em unidades de saúde no Rio e na Paraíba

Lobista que operava os contratos revelou, em colaboração premiada, que negócios eram superfaturados para render propina a políticos, agentes públicos e a pessoas ligadas a unidades

05/03/2020 - 08h16min


Adriana Irion
Adriana Irion
Enviar E-mail
Tadeu Vilani / Agencia RBS
Sede da Cruz Vermelha no Rio Grande do Sul, na Avenida Independência

Fraudes, desvios e pagamento de propina na área da gestão da saúde colocaram a filial da Cruz Vermelha do Brasil no Rio Grande do Sul (CVB/RS) no foco de investigações do Ministério Público em pelo menos dois Estados.

Alvo da Operação Calvário — trabalho conjunto do MP do Rio de Janeiro e o da Paraíba —, a CVB/RS foi usada, conforme apurações, para sustentar negócio de superfaturamento de contratos na área da saúde e distribuição de benefícios financeiros para políticos, agentes públicos e empresários. Além disso, em função de dívida decorrente da atuação também na área da saúde em Balneário Camboriú (SC), a Justiça determinou que o prédio sede da CVB/RS, em Porto Alegre, seja leiloado.

A entidade disse que já adotou medidas para tentar adiar o leilão, marcado para esta quinta-feira (5). Em razão das investigações do MP, a unidade gaúcha da CVB está sob intervenção — gerida por um órgão central e não com sede no RS — desde 2018, quando a Operação Calvário teve sua 1ª fase deflagrada, no Rio.

Desta forma, a CVB/RS está sendo comandada pelo Órgão Central da Cruz Vermelha Brasileira. A assessoria de imprensa da entidade informou que não há pessoas ligadas à CVB/RS sob investigação atualmente, pois todos os suspeitos foram afastados dos cargos que ocupavam. Desde o começo da operação, a CVB nacional tem dito que foi vítima de uma organização criminosa.

A gestão de unidades de saúde por empresas terceirizadas contratadas por prefeituras ou até pelos executivos estaduais tem causado extensa rede de fraudes e de desvios investigadas em todo o país. No Rio Grande do Sul, exemplo recente é o da Associação Beneficente Silvio Scopel, que acumula, desde 2014, apontamentos de má gestão do dinheiro público, causando prejuízos aos cidadãos que buscam atendimento de saúde. A entidade já teve problemas em contratos em pelo menos cinco municípios.

Na denúncia que o MP do Rio fez, promotores dizem que a "filial gaúcha de uma das mais antigas e renomadas organizações não governamentais se transformou em verdadeira máquina de peculato." Estão entre os denunciados Manoel Ernani Garcia Junior e Afonso José Cruz Auler, que eram presidente e secretário-geral da CVB/RS na época das fraudes investigadas.

Um promotor que atuou na apuração disse a GaúchaZH que o esquema funcionava como se a marca Cruz Vermelha "alugasse" seu nome para uso em contratos com o poder público. Em troca, integrantes da CVB, não só dos Estados, mas também a nacional, receberiam propina e vantagens pessoais, como pagamento de viagens e hospedagem.

O lobista Daniel Gomes da Silva, preso no Rio em 2018 e que se tornou delator do esquema, era o responsável por captar e gerenciar contratos entre a Cruz Vermelha gaúcha e governos. A entidade do Estado era usada porque estava enquadrada como Organização Social, ao contrário de outras unidades da CVB. Ele mantinha no escritório do Rio pessoas que davam andamento ao esquema fraudulento junto à CVB/RS, como uma diretora jurídica e um diretor de contratos. Mas para o MP, nada ocorria sem a anuência do presidente e do secretário-geral.

A Promotoria calcula que o esquema movimentou cerca de R$ 600 milhões em contratos com a prefeitura do Rio e, depois, com o governo fluminense. Mas foi na Paraíba que o esquema se instalou primeiro e, por isso, a Calvário teve desdobramentos naquele Estado depois da 1ª fase desencadeada no Rio.

Os desvios na Paraíba

A apuração do MP da Paraíba apontou que a CVB/RS recebeu R$ 980 milhões do governo em contratos para gestão de hospitais. Segundo a Promotoria, as irregularidades consistiram no direcionamento de contratos de prestação de serviços de terceiros, na aquisição de materiais e equipamentos de empresas integrantes do esquema e na indicação de profissionais para trabalhar nas unidades hospitalares sob gestão da organização social.

Alguns desses contratados eram funcionários fantasmas, usados apenas para que os salários fossem convertidos em propina. Segundo o MP da Paraíba, só a CVB/RS e outra das organizações sociais investigadas (o Instituto de Psicologia Clínica Educacional e Profissional) teriam repassado, entre 2011 e 2019, R$ 60 milhões em propina para manter o esquema.

GaúchaZH teve acesso a documentos que mostram como a filial gaúcha da Cruz Vermelha teve papel determinante nas fraudes.

O fio condutor da investigação é o lobista Daniel Gomes da Silva. Ele usaria organizações sociais como a CVB/RS para administrar unidades de saúde no Rio e na Paraíba.

A partir da colaboração processual dele e de outros investigados, o Grupo de Atuação Especial Contra o Crime Organizado (Gaeco) do MP da Paraíba rastreou anos de direcionamento de contratações e de desvios. Para fazer a gestão de contratos entre as organizações sociais e o poder público, Silva comandava ampla rede de pagamentos escusos.

O delator contou aos investigadores que o esquema começou a ser montado ainda em 2010, quando Ricardo Coutinho era candidato ao governo da Paraíba e já teria começado a receber propina do lobista para garantir futuros negócios. Vitorioso nas urnas, Coutinho (PSB) teria implementado imediatamente o esquema de desvios. Em janeiro, o delator, o ex-governador Coutinho e outras 33 pessoas foram denunciadas pelo MP da Paraíba.

Segundo o delator, depois de ganhar as eleições, Coutinho solicitou a apresentação de organização social que pudesse ser inserida na gestão da área de saúde. O primeiro contrato era para administrar o Hospital de Emergência e Trauma Senador Humberto Lucena, em João Pessoa, e acabou se efetivando.

O delator disse que para usar a marca Cruz Vermelha fez contato com um gestor da entidade nacional à época e acertou valores para o negócio. A CVB receberia um valor "extra" sobre a taxa de administração do contrato, ou seja, propina. O gestor envolvido teria então disponibilizado a documentação da filial gaúcha, que estaria adequada às exigências legais para ser enquadrada como organização social e que já atuava em gestão de saúde em Balneário Camboriú, em Santa Catarina. Nessa negociação, o delator disse ter adiantado a quantia de R$ 200 mil pelo uso da marca.

Depois de concretizado o contrato com o hospital de João Pessoa (e outras unidades que constam na investigação), o esquema de superfaturamento de serviços e pagamentos escusos era organizado por "colaboradores" do delator que atuavam junto a unidades da Cruz Vermelha. Conforme o Gaeco da Paraíba, as investigações prosseguem e há pessoas que estiveram ligadas à entidade, inclusive na sede em Porto Alegre, sendo investigadas.

Como funcionaria o esquema

Um promotor que atuou na apuração disse a GaúchaZH que o esquema funcionava como se a marca Cruz Vermelha "alugasse" seu nome para uso em contratos com o poder público. Em troca, integrantes da CVB, não só dos Estados, mas também a nacional, receberiam propina e vantagens pessoais, como pagamento de viagens e hospedagem.

A Promotoria calcula que o esquema movimentou cerca de R$ 600 milhões em contratos com a prefeitura do Rio e, depois, com o governo fluminense. Mas foi na Paraíba que o esquema se instalou primeiro e, por isso, a Calvário teve desdobramentos naquele Estado depois da 1ª fase desencadeada no Rio.

Contrapontos

O que diz o Órgão Central da Cruz Vermelha por meio de sua assessoria de imprensa:

"A Cruz Vermelha é a principal instituição de ajuda humanitária do mundo. No Brasil, está presente em 21 Estados mais o Órgão Central. Apesar dessas filiais estarem subordinadas ao Órgão Central, elas apresentam um CNPJ próprio para atuações independentes. A única filial estadual da Cruz Vermelha Brasileira sob investigação é a CVB/RS, em decorrência de sua presença nos Estados do Rio de Janeiro e Paraíba.

A instituição é vítima junto com o Sistema Público de Saúde de uma organização criminosa que se aproveitou da idoneidade e credibilidade da Instituição para promover malfeitos e desvios que estão sendo devidamente apurados pela Justiça. Hoje, a Cruz Vermelha Brasileira atua ainda como assistente de acusação na ação penal proposta no Rio de Janeiro e não vem medindo esforços na cooperação com o poder público na elucidação dos fatos que deram origem a esta operação.

Por fim, a atual gestão nacional, na figura do seu presidente, Júlio Cals, assinala que implantou sistemas de governança, transparência e compliance, de padrão internacional, para evitar desvios éticos e ilegalidades. Tais medidas vêm dando resultado significativo na administração central, que tem suas contas e ações abertas à consulta pública.

Sobre o leilão do prédio sede da entidade na Capital, a assessoria disse: As penhoras ocorreram em função de dívidas de gestões anteriores. Porém, a perda da sede não determinará o esforço dos voluntários em diminuir o sofrimento humano, nos termos da missão da Cruz Vermelha Brasileira e de suas filiais. Já foram adotadas medidas para tentar em primeiro lugar adiar o leilão e também buscam-se meios legais para realizar o pagamento das dívidas de gestões anteriores."

O que diz Gilson Dipp, um dos advogados que integram a banca de defesa do ex-governador Ricardo Coutinho

"A defesa não fala sobre o caso."

O que diz Manoel Ernani Garcia Junior, ex-presidente da CVB/RS:

"Houve desvios, e até o valor está recontabilizado. Mas o Ministério Público parte do pressuposto que eu sabia porque eu era o presidente. Não encontraram nenhuma rota financeira para mim, nem meu nome está na delação premiado. O que havia eram transferências legais do escritório do Rio para Porto Alegre, esse dinheiro era sacado pelo meu secretário-geral para pagar despesas do dia a dia, de contas. Eram valores modestos e tudo está contabilizado na Cruz Vermelha. Mass o MP acha que o secretário sacava para dividir comigo. Sinto tristeza e vergonha por não ter enxergado essa situação. Nós não enxergamos, era invisível. A contabilidade estava correta e uma auditoria internacional não apontou nada. Eu era voluntário há 28 anos e atendia de graça no ambulatório e fui convidado a ser presidente".

O que diz Afonso José Cruz Auler, ex-secretário-geral da CVB/RS:

"Não tive envolvimento com esses contratos de gestão em saúde, eu cuidava da atividade fim, de benemerência, no ambulatório de drogadição. Não tive esse envolvimento. A defensoria pública do Rio está fazendo minha defesa neste processo".

GaúchaZH fez contato com o escritório que defende Daniel Gomes da Silva, no Rio, mas não obteve retorno. 


MAIS SOBRE

Últimas Notícias