Violência em Rio Grande
Grávida de sete meses, esposa de entregador de gás assassinado planeja contar às filhas que o pai delas morreu como herói
Débora Fabiane Fagundes, 35 anos, espera pela segunda menina, fruto da relação com Márcio André da Conceição Loureiro, 41 anos
Na frente da filha Lauren, de dois anos e cinco meses, Débora Fabiane Fagundes, 35 anos, evita usar a palavra pai para recordar do marido Márcio André da Conceição Loureiro, 41 anos. Sabe que isso pode despertar na pequena o desejo de revê-lo. O pai de Lauren e também de Lívia, prevista para nascer daqui a dois meses, foi espancado e morto a tiros em 22 de julho, ao tentar ajudar uma menina. A criança foi atropelada pelo caminhão de gás onde ele seguia na carona, em Rio Grande, no sul do Estado. Ao descer para auxiliar no socorro, o entregador foi cercado pela população e executado.
— Creio que na hora do acidente ele pensou primeiro na filha dele. Se fosse com ela. É o que uma pessoa sensata faz. Se coloca no lugar da outra — conclui Débora, enquanto atende aos chamados da menina.
Desde que perdeu o marido, ela tem passado os dias com a mãe, em outro bairro de Rio Grande. Ainda não conseguiu voltar a morar na casa onde vivia com Márcio, no bairro Recreio. A residência fica ao lado da empresa de gás para a qual ele trabalhava há cerca de um ano. Naquele dia, o entregador almoçou com a família, e por volta das 15h, pediu que Débora fizesse arroz de leite.
Às 16h15min, voltou em casa e disse que não sairia mais para entregas. Antes de retornar para o trabalho, colocou frango para descongelar. À noite, pretendia assar, enquanto assistiriam juntos ao Gre-Nal. Márcio era apaixonado por futebol, colorado fanático, e chegou a integrar times de futebol amador na cidade, como jogador e técnico.
Minutos depois, Débora saiu com a caneca de arroz de leite na mão em direção ao depósito, para entregar ao marido. Como não encontrou o caminhão, regressou para casa, esperando que ele fosse buscar o doce.
— Não deu meia hora, e chegaram me contando a história. Eu disse que era mentira. Ele disse que não ia sair mais. Queria terminar tudo cedo, para vir para casa — recorda Débora.
Os familiares tentaram levá-la até um posto de saúde porque estavam receosos com o impacto da notícia — Débora sofre com pressão alta. Quando conheceu Márcio, ela acreditava que não poderia ter filhos, mas tinha o sonho de ser mãe. O desejo se concretizou, mas de forma prematura. Lauren nasceu aos seis meses de gestação, com 1,4 quilo — durante um mês, a menina ficou hospitalizada. À noite, a mãe permanecia com a bebê e o pai dormia no saguão do hospital. Quando descobriam a segunda gravidez, redobraram os cuidados para que isso não se repetisse. Por isso, a família tinha medo de como ela reagiria.
— Vivíamos sempre juntos, e depois que fiquei grávida, mais ainda. Tinha muito medo que nascesse fora do tempo de novo. Cuidava para que eu não fizesse esforço. Sempre me dizia: "cuida das minhas meninas". No dia 23, estava marcada a consulta do pré-natal. Ele iria comigo. Precisei adiar porque estava enterrando meu marido — conta.
Os planos
No dia 24 de julho, um dia após sepultar Márcio, Débora foi à consulta e escutou o coração da filha. A bebê estava bem. O nome Lívia foi escolhido por insistência do pai. O acerto entre o casal era que se o bebê fosse menina a escolha seria da mãe. Mas Márcio burlou o acordo _ não gostava de nenhum nome escolhido por ela e contou que, durante as entregas de gás, havia ouvido uma mulher chamar a filha de Lívia. Débora acabou cedendo.
Aos sete meses de gravidez, a mãe vive o dilema de não permitir que as emoções do luto afetem a bebê. Ao mesmo tempo, tenta distrair Lauren e não pronuncia o nome de Márcio, assim como evita a palavra pai. Em casa, quando ouvia o som do caminhão e do portão, a menina sabia que ele estava chegando. Na espera da segunda filha, Márcio beijava a barriga da esposa e por vezes chegava em casa com presentes, como roupinhas e o carrinho, que havia ganho durante as entregas. No próximo fim de semana, a mãe planeja retornar com as filhas à casa onde viviam. Precisa preparar a moradia, para seguir em frente. Lívia deve nascer a partir de 29 de setembro.
— Estou destruída, mas quando a gente tem filho, é preciso passar por cima de tudo. Na minha barriga, ela sente tudo que sinto. Tento não desabar, para não transmitir para ela essa dor. Nada que a gente fizer vai trazer ele de volta. Só acaba gerando mais dor, mais revolta. Foi por esse tentar fazer justiça com as próprias mãos que aconteceu o que aconteceu. Deixo na mão da Justiça e na mão de Deus. Quero criar minhas filhas e contar que o pai delas era bom e morreu ao tentar ser um herói. Ensinar que elas devem seguir o exemplo dele, serem boas pessoas, sempre — conforma-se Débora.
O crime
Márcio seguia na carona do caminhão que levava a carga de botijões de gás para um depósito no bairro Getúlio Vargas na tarde de 22 de julho, quando aconteceu o acidente na Rua Dom Pedro II. A menina de oito anos foi atingida pelo veículo quando atravessava a via de bicicleta. O auxiliar desceu para acudir a criança, enquanto o condutor foi até um comércio pedir ajuda. Neste momento, Márcio foi cercado pela comunidade, agredido e apedrejado. Ao tentar fugir correndo das agressões, foi perseguido, alvejado e morreu no local. Logo depois, a carga do caminhão foi saqueada.
O irmão da criança atropelada, Fabian Luã Carvalho Tavares, 18 anos, foi preso em flagrante e confessou ter atirado no entregador. Ele alegou que se desesperou ao pensar que a menina estava morta — a criança foi socorrida e recebeu alta do hospital dias depois. Na semana passada, o preso se tornou réu por homicídio qualificado. A polícia segue investigando os autores das agressões e do furto à carga — suspeitos já foram identificados e ouvidos.