Ocorrência em Gravataí
"Como 34 tiros de policiais não têm a intenção de matar?", questiona turista angolano após conclusão do MP
Promotoria entendeu que não houve dolo na ação dos policiais - que atiraram contra motorista foragido, mas mataram uma inocente, além de balear e prender outro
A conclusão do Ministério Público (MP) sobre a ausência de dolo (intenção) por parte dos três policiais envolvidos na ocorrência que resultou na morte da costureira Dorildes Laurindo e nos ferimentos ao turista angolano Gilberto Casta Almeida, em Gravataí, causou revolta entre familiares e a vítima sobrevivente. O questionamento se baseia nos 34 tiros disparados pelos agentes contra o veículo onde estava um motorista foragido e que desobedeceu a ordem de parada dos brigadianos, mas também duas pessoas que não tinham envolvimento algum.
— Como 34 tiros de policiais não têm a intenção de matar? Não tô acreditando até agora, estou espantando com isso. Para que existe uma promotoria se está sendo conivente com um crime? — criticou Gilberto, que foi baleado na ação, em maio, com quatro tiros e ainda carrega uma bala alojada no joelho, além das dores constantes pelo corpo.
Além de ter sido baleado, Gilberto ainda foi preso e ficou 12 dias no sistema prisional, após ser acusado pelos policiais da Brigada Militar de Gravataí de atirar contra a guarnição. A Polícia Civil, após analisar o carro, concluiu que ele não fez isso. Os PMs também mudaram de versão depois do primeiro depoimento e falaram que só o motorista fugitivo atirou.
A família de Dorildes, que morreu após ser baleada após pelo menos três vezes, também está inconformada. Irmã, Marjorie Maria Homes Luciano, declara com a voz embargada misturar tristeza e revolta.
— É revoltante, eu não sei nem que palavra usar. Eles tinham intenção de quê? De alertar? 34 tiros? Duas pessoas inocentes desarmadas, de costas, e eles ainda agrediram verbalmente — contestou.
A advogada de Gilberto, Ana Konrath, avalia a possibilidade de ingressar com uma queixa subsidiária de crime por homicídio doloso.
O que diz o MP
Procurado por GZH nesta quinta (17), o Ministério Público respondeu com o mesmo posicionamento dos promotores de terça-feira (15), quando foi concluída a análise das investigações. O promotor Fernando Bittencourt afirmou que "não havia indícios, nos autos, de um ato intencional".
— Avaliando todo o inquérito, entendemos que não havia a intenção de matar por parte dos policiais e, em razão disso, opinamos para devolver os autos para a promotoria militar, para que eles avaliem e enquadrem os crimes da forma como entenderem correto — resumiu.
Segundo o promotor, para afastar a negativa do dolo, o entendimento é de que o motorista foragido - Luiz Carlos Pail Júnior - atirou contra a guarnição após a fuga. O promotor afirma que há indícios de que o homem disparou, apesar de a perícia ter sido inconclusiva. Ele se baseou na palavra dos três policiais e em fotos e vídeo, no celular do acusado, em que ele portava um revólver similar ao que foi apreendido.
Na avaliação do promotor, na verdade "os policiais revidaram da ação", apesar de que "pode ter havido excesso na defesa, mas isso vai ficar a cargo da Justiça Militar".
Com a chamada declinação de competência, o processo pode voltar para a promotoria militar - desde que haja anuência do juiz do caso - e não mais ir a júri popular. Com isso, o caso ficaria sob responsabilidade da promotora Isabel Guarise Barrios, que vai verificar a possibilidade de outros crimes por parte dos militares. Entre eles, a denúncia de Gilberto de que contou que os policiais o ameaçaram dizendo "tu vai sangrar até morrer, capeta, exu do caralho", além de ter sido agredido.
A promotoria também ofereceu denúncia contra o motorista do carro que fugiu da abordagem dos policiais. Pail Júnior foi denunciado por três tentativas de homicídio contra os policiais, porte ilegal de arma de fogo, desobediência e falsa identidade.
Um dos policiais já foi condenado
Em 7 de agosto, os três policiais militares envolvidos no caso foram indiciados por crime militar, conforme informou a Brigada Militar (BM). O trio também deve responder ao Conselho de Disciplina no âmbito administrativo e deve permanecer afastado das funções até sua conclusão do caso.
Em junho, GZH revelou que um dos três policiais militares investigados pela perseguição já possui três processos em aberto na Justiça Militar em razão da sua atuação na BM. Em um deles, em março de 2020, o soldado Regis Souza de Moura foi condenado a sete meses de prisão por invasão de domicílio e agressão contra um adolescente em uma abordagem ocorrida em 2016, também em Gravataí.
Além desse processo, em que responde em liberdade, já que recorreu, o mesmo soldado - que tem 35 anos de idade e onze de atuação na corporação - também responde a outros dois, já com denúncia do Ministério Público, por lesão corporal contra pessoas em abordagens na cidade. Nos três casos, os relatos são semelhantes, com socos, chutes e ofensas em ocorrências.
Questionada pela imprensa antes de a reportagem conseguir a informação, a BM havia negado e o comandante regional afirmou que todos tinham "uma ficha boa".
O movimento Vidas Negras Importam marcou um protesto, no domingo, em função da conclusão da análise do caso pelo MP. Além do caso de Dorildes e Gilberto, eles também reclamam do arquivamento, após sugestão da promotoria de Marau, do processo contra o policial que matou Gustavo Amaral - engenheiro que foi confundido com um bandido pela polícia.
O caso
Gilberto, que vive no Brasil há cerca de cinco anos, havia conhecido Dorildes pelas redes sociais e os dois mantiveram contato por quatro meses, até que ele decidiu viajar para o Rio Grande do Sul para conhecer pontos turísticos, como Gramado. O primeiro passeio no entanto, foi para Tramandaí, no Litoral Norte, onde mora um irmão de Dorildes. Para a viagem, contrataram Luiz Carlos — que usava CNH com nome falso de Emerson — por meio de aplicativo de viagens. Para retornar para Cachoeirinha, pegaram a viagem particular com o mesmo homem. A abordagem dos PMs aconteceu na madrugada de 17 de maio.
Primeiro, os PMs afirmaram que Luiz Carlos e Gilberto haviam atirado, mas a versão não foi aceita pela investigação da Delegacia de Homicídios de Gravataí. Ao serem ouvidos novamente pelo delegado Eduardo Limberger do Amaral, os policiais modificaram a versão. Afirmaram que Luiz Carlos havia atirado ao descer do Palio Weekend. Quanto a Gilberto, não souberam informar se ele realmente empunhava uma arma. Conforme a ocorrência, apenas um revólver foi apreendido no local. Dorildes morreu dias depois, no hospital.