Reviravolta
PM réu por matar sobrinho e forjar suicídio vai responder também por estupro em Porto Alegre
Justiça entendeu que há indícios suficientes de que ele violentou sexualmente o garoto, apesar da ausência de perícias


A morte do menino Andrei Ronaldo Goulart Gonçalves, 12 anos, em 2016, teve nova decisão que muda os rumos do processo sobre o caso. Inicialmente tratado como suicídio, o caso sofreu reviravolta no início de 2020, quando um oficial da reserva da Brigada Militar, tio do garoto, passou a responder pelo homicídio doloso com acusação de ter forjado a cena do crime. Agora, a Justiça também tornou o homem réu pela denúncia de estupro do menino.
A nova decisão contra o tio, Jeverson Olmiro Lopes Goulart, 54, que responde em liberdade, é da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça. Por três votos a zero, os desembargadores entenderam que havia indícios suficientes de autoria e prova para que ele responda pelo crime de estupro.
A relatora do caso, desembargadora Rosaura Marques Borba, declarou em seu voto que "em crimes sexuais, geralmente praticados às ocultas e sem presença de testemunhas, não se descarta eventual ameaça à vítima para que esta silencie". Além disso, pontuou que o estupro seria a motivação para o homicídio de Andrei.
Sobre a falta de perícia que comprovasse a violência sexual, a magistrada disse que isso "não impede a persecução penal, dada a possibilidade da ocorrência de ato libidinoso diverso da conjunção carnal, o qual, por vezes, não deixa vestígio". A desembargadora finalizou dizendo que a avaliação das provas deve ser feita durante o andamento do processo e que "esta decisão de maneira alguma implica no julgamento antecipado da causa".
Com o recurso reconhecido, a denúncia do Ministério Público (MP) foi aceita assim como apontou a promotora Lúcia Helena Callegari. Em primeiro grau, a juíza Lourdes Helena Pacheco havia concordado com a hipótese de assassinato, mas não do estupro.
Mãe de Andrei e responsável pela peregrinação de três anos em delegacias, gabinetes e promotoria que levou à reviravolta do caso, a auxiliar de enfermagem Cátia Rosimary Lopes Goulart, 49 anos, diz ter um mistura de sentimentos com o novo andamento do processo e a denúncia contra o próprio irmão.
— É um conforto por não estar mais sozinha nesta luta, por ter mais pessoas acreditando comigo, mas também uma tristeza e angústia por imaginar tudo que meu filho passou e teve que lutar nas últimas horas de vida — lamentou.
O advogado Marcos Vinicius Barrios, assistente de acusação, afirmou que o reconhecimento do recurso pela Justiça "dá guarida para o que já é de conhecimento de todos e presente nas provas: que o homicídio foi cometido para ocultar o estupro".
A insistência da mãe

GaúchaZH contou, em março de 2020, a luta da mãe em busca de resposta para um caso que, até então, era tratado como suicídio e que teve a investigação assim encerrada pela Polícia Civil. A reportagem havia recebido a mãe ainda em abril de 2019 e, desde então, acompanhou o desdobramento do fato na Justiça.
Foi Cátia quem localizou uma testemunha considerada peça-chave no processo. Uma pessoa próxima a Jeverson depôs contando que foi estuprada por ele quando tinha 12 anos – a mesma idade que Andrei tinha quando foi encontrado morto. Em depoimento, o homem notou semelhanças entre o que ocorreu com ele e a morte de Andrei.
A mãe também avisou a promotoria de um comportamento estranho do tenente. Ele quis ficar com as cuecas do menino, alegando que os dois tinham tamanhos semelhantes. O fato – que inicialmente passou despercebido – futuramente acendeu alerta para a família sobre eventual abuso sexual.
O crime, segundo o MP
Conforme a denúncia, na noite de 29 de novembro de 2016, Andrei ficou sozinho em casa com o tio, quando a mãe e a irmã saíram para uma festa de aniversário. O tenente, que tem casa no Rio de Janeiro, estava morando provisoriamente no apartamento com a família e dividindo quarto com Andrei. Já na reserva da BM, havia assumido cargo em comissão no Ministério Público do Rio Grande do Sul três semanas antes.

Por volta das 23h20min, Cátia retornou para a moradia e conversou com Andrei e com o tenente. Ela declarou que seu filho já parecia estar "estranho e acuado, sem fazer as brincadeiras costumeiras". Jeverson teria dito que estava com muito sono.
Por volta das 2h, o tenente acordou Cátia no quarto ao lado, dizendo que uma tragédia havia acontecido. A mãe foi até o cômodo e encontrou seu filho morto com as duas mãos segurando a arma do tio pelo cano.
Cátia ponderava circunstâncias que achava estranhas da cena do crime e no comportamento do irmão, e queria que as autoridades as levassem em consideração. Para ela e para o advogado Marcos Vinicius Barrios — que hoje é assistente de acusação —, as perícias não condiziam com suicídio, apesar de esse ter sido o entendimento da polícia.
Um laudo produzido pelo Instituto-Geral de Perícias (IGP) reforçou a indignação da família. No documento consta que as mãos do menino não tinham níveis compatíveis de pólvora para quem havia disparado. Outro ponto controverso era o de que a arma não apresentava nenhuma impressão digital — nem de Andrei nem do seu tio, que a manusearia diariamente no trabalho.
Outro laudo chamou atenção da promotora Lúcia Helena Callegari, que tornou-se responsável pelo caso desde o dia em que substituía um colega. Era o que apontava a direção do tiro. Para ela, o tiro foi disparado na nuca do menino. Procurado por GaúchaZH, o perito criminal Anderson Morales defendeu, no entanto, que o tiro foi na testa.
Além de todos os fatos citados pela família, ainda na cena do crime, Jeverson se colocou à disposição para realizar o exame para verificar resíduos de pólvora. Em depoimento, disse que foi ao banheiro e lavou as mãos.
Celular do menino teve arquivos apagados
O IGP também descobriu que 14 arquivos foram apagados do celular de Andrei alguns dias após a sua morte. Eram 11 em formato de áudio, dois em formato de texto e uma imagem. O próprio tio declarou, em depoimento, que ficou com o celular para levar ao MP, onde trabalhava. A 6ª Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa, responsável pela investigação, só teve acesso ao celular em 7 de janeiro de 2017, mais de um mês após o garoto ter sido encontrado morto.
Cátia recordou que, após a morte, o tio informou ter encontrado pesquisas sobre suicídio no celular do menino, o que não se confirmou nas análises do IGP.
Após analisar todos os fatos e indícios, a promotora, ainda em março, declarou a GaúchaZH:
— O Andrei não se suicidou. Isso era uma questão de fundamental importância para a mãe. Estou convencida disso.
Contraponto
O advogado Edson Perlin, que defende Jeverson Olmiro Lopes Goulart, afirmou que não vai se manifestar neste momento porque não foi oficialmente intimado. Também manifestou que entende que o processo deveria estar em segredo de Justiça "por questões de ordem e de Direito, e pelas circunstâncias e peculiaridades".