Caso Eduarda
Morte de menina raptada completa dois anos com inquérito de 1,5 mil páginas repleto de mistérios
Eduarda Herrera de Mello, a Duda, foi encontrada morta um dia após ser levada por um homem desconhecido na rua
Faz dois anos que Kendra Camboim Herrera, 33 anos, repete a mesma rotina antes de dormir. Deita em sua cama, reflete sobre a vida e diz em voz alta:
— Boa noite, Duda.
A frase não é destinada fisicamente a ninguém, já que sua filha Eduarda Herrera de Mello foi raptada e assassinada aos nove anos, vítima de um crime que chocou o Rio Grande do Sul em 2018. O hábito, para a mãe, ao menos afaga a distância entre elas, porque ela diz ainda sentir a presença e o amor da menina.
— Nem sei mais o que eu sinto. Eu vivo um dia de cada vez. Tem dias que eu fico mais tranquila, mas tem dias que eu não consigo nem sair do quarto, porque vem aquela sensação de impotência, a dor de perder minha filha, porque ela não vai voltar mais. Mas todo dia que eu deito, eu dou boa noite para ela — confessa a mãe, com a voz embargada.
A confirmação da morte de Eduarda completa dois anos nesta quinta-feira (22). No final da tarde de 21 de outubro de 2018, um domingo, enquanto a garota brincava com um roller com outras crianças na frente de casa, no bairro Rubem Berta, zona norte de Porto Alegre, foi levada por um homem desconhecido em um carro. Tudo aconteceu em um breve momento de ausência da mãe das proximidades da filha, após faltar luz na rua e Kendra ir até sua casa.
Daquele momento em diante, foram pouco mais de 15 horas de esperança de encontrar Duda viva. Avisadas, a Brigada Militar (BM) e a Polícia Civil acionaram seus agentes. As horas seguintes foram de buscas, que não surtiram efeito.
No dia seguinte, 22 de outubro de 2018, uma ligação ao 190 deu o desfecho trágico para a história. Um homem que foi urinar em um barranco às margens da RS-118, em Alvorada, em uma área alagada pelas águas do Rio Gravataí, encontrou o corpo da menina próximo a vários doces - as balas estavam espalhadas pelo local. Horas depois, a família de Eduarda foi chamada e a própria mãe reconheceu o corpo da filha.
Daquele dia em diante, o que se sucede é uma dor inexplicável para Kendra, que nunca mais pôde dormir uma noite inteira atormentada em pensar que o assassino está solto, e um mistério para a investigação, que até hoje nunca chegou ao autor do crime e não sabe dizer o motivo da menina ter sido morta.
— Minha filha é, e sempre vai ser, o meu tesouro. Eu sei que ela não vai voltar mais, sei que as lembranças são só dentro de mim, só que a única coisa que eu queria é que quem fez isso com ela pagasse, porque vai saber se ele não vai fazer com outra criança? A gente não imagina quem é, a gente não sabe nem se a pessoa pode estar rindo do nosso lado, perto da gente. Porque ele sabe bem, tudo. A gente, não sabe nada — prossegue a mãe.
Primeira filha de Kendra, Duda é descrita como uma menina carinhosa, que chegava a chorar de saudade quando seus irmãos estavam distantes. Adorava abraços e fazer novos amigos. Nas fotos, aparecia sempre com um sorriso e mostrava-se feliz.
A mãe carrega na pele a saudade. Tem duas tatuagens, uma na nuca, feita quando Duda nasceu. É uma frase: “Eduarda, meu amor, minha vida”. Outra, no braço, desenhada quando Duda morreu. É a reprodução de uma foto da menina com a mão apoiada no queixo, sorrindo.
— Tive o privilégio de ser mãe dela. Infelizmente, ela teve que ir antes de mim. A gente não entende as coisas da vida. Eu tento entender, mas eu não consigo — diz.
A investigação
A investigação policial sobre a morte de Eduarda corre em sigilo, decretado pelo Judiciário, desde a época dos fatos. Por isso, a Polícia Civil costuma falar pouco sobre o que investigou. É também uma estratégia para não pôr em risco a possibilidade de prender o assassino. A única informação é que todas as hipóteses estão sendo esgotas.
Apesar do silêncio estratégico, a polícia garante que está empenhada em resolver o crime. O diretor do Departamento Estadual de Proteção a Grupos Vulneráveis (DPGV), Thiago Solon Albeche, ressalta que o assassinato não é mais um caso para a divisão. Virou questão de honra:
— Durante todo esse tempo, um fato positivo é que nossa equipe de policiais continua extremamente motivada para desvendar. A Polícia Civil se sente na obrigação de dar uma satisfação para a família da Eduarda e também para a sociedade como um todo.
O inquérito tem mais de 1,5 mil páginas, divididos em oito diferentes volumes. São centenas de testemunhas, diligências e laudos produzidos ao longo de dois anos.
À frente da apuração está a delegada Sabrina Dóris Teixeira. O caso, até hoje, ocupa suas semanas. É quase todo dia que toca o telefone com alguma informação ou denúncia de alguém sobre o fato. Tudo que chega é formalizado em depoimentos e apurado pelos agentes.
Um dos motivos da grande quantidade de denúncias é um retrato falado produzido na época dos fatos. Foram inúmeros os relatos de pessoas que procuraram os investigadores. Apesar disso, a polícia não fala em suspeitos e acredita que dificilmente a solução virá por esta imagem.
— Informações detalhadas sobre suspeitos, pessoas envolvidas, não podemos informar e justamente para não prejudicar o trabalho que está sendo realizado. Temos uma equipe de servidores experientes trabalhando somente neste caso, efetuando todas as diligências — resume Sabrina.
A polícia conta, somente, que a causa da morte de Eduarda é afogamento, que não sabe o significado até hoje das balas encontradas próximas do corpo e que o caso é “completamente atípico”, tendo em vista que a maioria dos desaparecimentos de crianças no Estado se dá por um curto período de tempo e não por rapto, como foi esse.
— Esse caso é, com certeza, um dos mais complexos que nós temos na Polícia Civil. Ele revela uma dificuldade diferenciada com relação a outros homicídios que temos. Nos preocupa de uma maneira muito peculiar justamente porque era uma criança — completa o diretor.
Advogado critica atuação da polícia
Advogado que auxilia Kendra e a família no acompanhamento das investigações, Rodrigo Rollemberg Cabral acredita que o desfecho do fato poderia ter sido diferente caso "houvesse maior atenção desde o início”. Segundo ele, “o trabalho da polícia militar foi deplorável". Ele se refere ao áudio de um policial em na rede de rádio da Brigada Militar no qual é pedida "cautela porque poderia ser o pai dessa menina" o envolvido. Também afirma que, em seu entendimento, "houve demora na chegada das viaturas".
— A partir do momento em que uma mãe entra em contato, sai através do rádio da própria polícia que houve o sequestro, e, depois, o mesmo policial diz para que os colegas não tenham pressa porque o pai dela é um presidiário. Então a Polícia Militar chega muito após o incidente, o que vejo como uma grande omissão. O trabalho da Polícia Civil se deu prejudicado em função do primeiro atendimento da Brigada, uma instituição que eu respeito, mas que foi preconceituosa em razão da condição do pai — critica o advogado.
Em resposta, a BM informa que atendeu a ocorrência com a maior agilidade possível. Diz que duas viaturas foram despachadas às 21h10min daquele dia e que às 22h02min a primeira viatura chegou ao local. Ainda afirma que “a partir da denúncia, foi dado o alerta para todos os policiais de serviço do Comando de Policiamento da Capital (CPC), Comando de Policiamento Metropolitano (CPM) e também para a Polícia Civil, iniciando a partir disso uma grande busca pelo veículo suspeito”.
A corporação ainda afirma que “todas as providências foram adotadas da forma mais rápida possível e tomando as medidas preventivas necessárias para garantir a segurança da criança no momento de busca”. Lembra que não recebeu reclamação sobre o atendimento na época e que quanto ao pedido de "cautela" mencionado na gravação, "tal solicitação é natural no procedimento adotado pela Brigada Militar quando envolve situações com refém".
Família mantém esperança de prisão
O advogado ainda afirma que o que seria, no seu entendimento, "a principal prova" — um vídeo em que aparece o carro do sequestrador — tem qualidade de imagem ruim e que não pode ser melhorada.
Já Albeche, o diretor da Polícia Civil, afirma que não desistiu de descobrir o assassino e revela o trabalho foi intensificado nos últimos meses:
— Tomara que nós consigamos encontrar o responsável. É o objetivo e a expectativa da equipe de investigadores.
A mãe ainda acredita no trabalho da polícia. Segundo ela, a prisão do bandido é a única esperança que ela carrega de um dia voltar a conseguir dormir uma noite por completo, apesar de que isso não apagaria sua dor:
— É só vivendo um dia de cada vez. Eu não desejo isso para ninguém, porque perder um filho é como se você perdesse uma parte de ti.
O que diz o MP
O Ministério Público, procurado por GZH, disse que "aguarda diligências da Polícia Civil" e que "o inquérito está sob segredo de Justiça".