Três meses depois
"Não saio sozinha, tenho medo de tudo", diz esposa de homem morto em supermercado em Porto Alegre
Milena Borges Alves, 43 anos, fazia compras com o companheiro, em 19 de novembro do ano passado, quando ele acabou espancado e morreu no estacionamento do local
Em 19 de novembro do ano passado, Milena Borges Alves, 43 anos, e o companheiro João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, foram ao hipermercado Carrefour, na zona norte de Porto Alegre, porque ele queria comprar verduras. Três meses depois daquela noite, a vida da cuidadora de idosos é outra. Não conseguiu retornar ao emprego, não sai de casa sozinha e decidiu ir morar novamente com os pais. Milena foi uma das testemunhas que viu Beto, como era conhecido, ser espancado e morto no estacionamento. Seis réus, três seguranças de uma empresa terceirizada e três funcionários do hipermercado, respondem pelo crime.
— Desde que ele faleceu, minha vida mudou. Meio que parei no tempo, minha rotina também. Não saio sozinha, tenho medo de tudo. Não voltei mais a trabalhar — descreve Milena.
Antes do episódio, por cerca de quatro anos, ela trabalhava como cuidadora de idosos. Saía de casa diariamente para pegar ônibus e ir ao trabalho. Milena vivia no IAPI com o companheiro, com quem mantinha relação havia nove anos, e a filha — fruto de outro relacionamento. Eles planejavam celebrar o casamento civil em dezembro, mas Beto foi morto cerca de um mês antes da data prevista para a cerimonia. Depois da perda, Milena decidiu regressar para a casa dos pais, onde vive atualmente.
— Não tive coragem de voltar para casa — conta.
Nos últimos meses, vem passando por tratamento psicológico e psiquiátrico, toma medicação constantemente, orientada pelos profissionais.
— Me sinto muito deprimida, angustiada, choro bastante ainda. Sinto dor no peito, também. Tremo muito quando vejo muita gente. Só me sinto segura perto da minha família. Espero voltar minha rotina normal e quero justiça por tudo que fizeram com ele — diz Milena.
Segundo os advogados Hamilton Ribeiro e Carlos Barata, a viúva busca uma indenização do Carrefour pelos traumas sofridos, que geraram depressão e estresse pós-traumático.
— O acontecido não foi somente a morte, a perda. A vida dela virou um caos. Está numa situação muito delicada. Ela viu ele ser morto na frente dela. O Carrefour após a situação se comprometeu a tomar atitudes. Mas isso vem acontecendo em parte. O discurso da empresa é diverso de como estão agindo na questão indenizatória, onde tratam com certo desdém — afirma Ribeiro.
Pai retornou ao hipermercado recentemente
Na semana passada, pela primeira vez após a morte do filho, João Batista Rodrigues, 65 anos, ingressou novamente no Carrefour. Antes, era cliente assíduo, incentivado por João Alberto, que insistiu para que fizesse o cartão do hipermercado. Nos últimos meses, uma assistente social que auxilia a família realizou o pagamento da fatura no lugar do idoso. Neste mês, o transportador aposentado se convenceu de que estava exigindo demais e decidiu encarar a ida até o comércio. Cruzou pelo estacionamento, mesmo local onde deparou com o primogênito caído no chão.
— Passei ali, onde tudo aconteceu, fui nos caixas e paguei a conta. Não adianta fugir. Ninguém foge da dor. Mas também quero ver se não volto mais. É como viver tudo de novo — desabafa.
João Batista e o filho tinham planos de juntos comprarem um utilitário para fazer entregas de produtos para a Ceasa. Com a perda, o projeto ficou para trás. Nos últimos meses, seu único anseio é instalar uma lápide no túmulo do filho. Ele queria ter sepultado João Alberto no jazigo da família, mas não foi possível porque outro parente havia sido enterrado recentemente. O transportador visita frequentemente o Cemitério Municipal São João, no bairro Higienópolis.
— Esta semana vou de novo. Quero colocar a pedra na frente da sepultura, deixar direitinho, para que identifiquem que é o dele, se quiserem visitar. Está só com o número, não queria que ficasse assim — inquieta-se o pai.
O aposentado sente falta da convivência com o filho, com quem fazia compras no mercado, assistia a jogos e passava horas do dia. Mesmo quando distantes, falavam por telefone. Na data em que aconteceu a morte, almoçaram juntos e passaram a tarde na casa do aposentado. O pai convidou o filho para ir ao culto evangélico, mas ele recusou e às 17h retornou para casa. À noite, foi ao hipermercado onde acabou morto.
— Ele era importante demais nas nossas vidas. A dor parece que vai aumentando, quanto mais passa. Não sei explicar, me parece que o choque não deixa sentir a dor. Depois que passa, se torna mais grave. Cada dia, a gente espera acordar e esquecer. Mas fica mais vivo. Isso tem sido sofrimento grande na nossa vida, e na vida dos filhos dele — descreve.
João Alberto era pai de três filhas e um filho, frutos de relacionamentos anteriores. Em relação ao caso, o pai diz que acredita na Justiça e relata que busca indenização.
— Foi um ato de racismo e pela condição que ele estava vestido. Foi preconceito. Se fosse alguém de alto poder aquisitivo, seria diferente — diz.
Os réus
Na Justiça, seis réus respondem pelo crime, sendo que três estão presos. O ex-PM temporário, Giovane Gaspar da Silva, 25 anos, que estava em seu primeiro dia como segurança da empresa Vector, está detido no Batalhão de Guarda da Brigada Militar. A defesa dele ingressou com novo pedido para que responda em liberdade e aguarda decisão judicial.
Já o segurança Magno Braz Borges, 31, está em presídio comum. Ele teve o pedido de liberdade negado pela Justiça no dia 29 de janeiro. Adriana Alves Dutra, 51, fiscal do Carrefour, esteve detida em presídio feminino, mas atualmente está em prisão domiciliar, por problemas de saúde.
Os outros três réus respondem em liberdade. São eles: Paulo Francisco da Silva, 29, também segurança do grupo Vector, Rafael Rezende, 43, e Kleiton Silva Santos, 22, ambos funcionários do Carrefour. O Ministério Público informou que “recorre para que todos os denunciados pela morte do João Alberto Silveira Freitas sejam presos.”
O processo
Os réus foram denunciados por homicídio doloso triplamente qualificado, crime pelo qual respondem na Justiça. No entendimento da Polícia Civil e do Ministério Público, o homicídio foi cometido por motivo torpe, recurso que impossibilitou a defesa da vítima e emprego de meio cruel. Embora os seis réus respondam pelo mesmo crime, há participação diversa. Os três réus que estão soltos respondem como partícipes, e não como autores, ou seja, a participação no fato, segundo a Justiça, foi de menor importância em relação aos autores.
Contrapontos
O que diz a defesa de Giovane Gaspar da Silva
O advogado David Leal informou que ingressou com novo pedido pela liberdade provisória do réu. A defesa entende que não existem mais motivos para que ele responda ao processo preso.
— Não houve intenção de matar, e isso fica claro por uma série de motivos. A tentativa de verificar se a vítima está viva. Qual o estado, se havia frequência cardíaca. Foi possível ver pelas filmagens. Em relação ao Giovane, a intenção era conter o João Alberto, que partiu para cima dele — disse.
O que diz a defesa de Rafael Rezende
David Leal afirma que o cliente não deveria ter sido investigado e nem denunciado, por não ter, em sua versão, participação no crime e nem poder de interferir nas ações dos demais envolvidos.
— Ele até tentou apaziguar a situação. Ele em nenhum momento praticou ato violento. O Rafael nem sequer deveria ser denunciado, tanto que foi ouvido como testemunha inicialmente. No momento não teve participação alguma. Não tinha ingerência sobre os atos dos demais, tampouco sobre sua superior, que era a Adriana — afirma Leal.
O que diz a defesa de Paulo Francisco da Silva
O advogado Renan Jung Henrique encaminhou a GZH nota, na qual afirma que o cliente não teve participação no caso, pois chegou ao local no final do desenrolar da situação e não agrediu a vítima. Confira a sequência da nota:
“Paulo Francisco não teve qualquer participação no lamentável acontecimento que ceifou a vida da vítima João Aberto Freitas. Paulo foi chamado via rádio, seguindo ordens de seus superiores hierárquicos, e chegou ao local dos fatos já ao final do desenrolar de toda a situação. Em momento algum agrediu ou mesmo tocou a vítima, exceto quando foi verificar seus sinais, a fim de prestar os primeiros socorros.
Paulo em momento algum se recusou ou evitou comparecer à Delegacia em todas as vezes em que foi intimado para depor, colaborando com a Justiça para o esclarecimento dos fatos. É primário, sem antecedentes, jamais respondeu por qualquer tipo de delito, do que se depreende que é pessoa honesta, trabalhadora, com endereço fixo, família constituída e que leva uma vida guiada pela retidão, de modo que seria injustificável a decretação da sua prisão preventiva, pois, obviamente, já está mais do que demonstrado que sua condição de responder ao processo em liberdade não oferece qualquer risco à ordem pública, tampouco de embaraçar o trâmite do processo, além de que, caso tivesse a intenção de se evadir, decorridos meses do trágico acontecimento, por certo que já o teria feito, o que não ocorreu, nem ocorrerá, eis que desde o início da investigação se colocou totalmente à disposição das autoridades para colaborar com todas as diligências ou esclarecimentos que entendessem necessários.
No que se refere ao recebimento da denúncia, a própria Magistrada já salientou que a participação de Paulo foi de menor importância. No entanto, a Defesa irá utilizar dos meios legais para que a denúncia contra sua pessoa seja rejeitada, a fim de que Paulo não responda ao processo.
Por fim, a Defesa salienta que Paulo é pessoa NEGRA, sua esposa é NEGRA, seus filhos são NEGROS, seus familiares são NEGROS, seus melhores amigos são NEGROS, sendo, portanto, absurda a acusação por, supostamente, dar causa a um homicídio motivado pelo racismo, cujas autoridades que o acusam são, em totalidade, de cor branca, e que agora, ao que parece, para buscar reconhecimento da mídia e autopromoção, desejam enclausurar mais um negro nas masmorras do nosso falido sistema penitenciário.”
O que diz a defesa de Kleiton Silva Santos
O advogado Márcio Hartmann, responsável pela defesa de nega que o cliente tenha participado do crime.
— O Kleiton não participou do crime de homicídio, ele apenas ajudou a conter a vítima, que estava em luta corporal com os demais acusados, e fez isso porque recebeu ordens de seus superiores. No momento em que a vítima faleceu, o Kleiton não estava mais no local. Estava trabalhando na loja — afirmou.
O que diz o grupo Vector
Por nota, o grupo Vector informou que segue contribuindo com a apuração do caso e repudia atos de violência. Confira a manifestação na íntegra:
“As prioridades estabelecidas pelo Grupo Vector, desde os lamentáveis acontecimentos no dia de 19/11/20, se mantiveram inalteradas. Continuamos contribuindo integralmente com as investigações e a Justiça. Reforçamos nosso repúdio a ações de violência. E nos comprometemos totalmente com a evolução de nossa cultura empresarial.
Acreditamos que para agir é necessário ouvir. Compreendemos os anseios da sociedade e evoluímos nossa cultura organizacional progressivamente através do amplo debate estabelecido. Somos responsáveis em treinar cada vez melhor as pessoas que compõem nossa empresa, para que elas possam cuidar melhor de outras pessoas. Afinal, nossa missão é atuar pela vida.
Para saber prevenir é necessário estar prevenido. A transformação cultural inerente à “nova vida” do Grupo Vector está sendo construída por várias mãos. A tríade de Seleção, Educação e Reciclagem, programa nomeado de S.E.R., compõe a base da cultura empresarial de treinamento dos nossos profissionais que atuam pela vida. O novo caminho definido pela direção da empresa se mostra como o mais autêntico e efetivo possível, pois nossa transformação contempla a participação da equipe de gestores e colaboradores, juntos, na construção da nossa nova “casa” cultural.
A participação integrada dos funcionários na transformação cultural da empresa, em coparticipação com a liderança, traz mais um resultado positivo. Afinal, um processo amplo de formação continuada acaba por educar também as famílias dos colaboradores e, portanto, toda a comunidade que gravita ao redor da empresa evolui com ela.
Através da formação continuada as ações de treinamento, doravante nomeadas “ações de transformação”, se configuram como oficinas virtuais e presenciais, quando possível, em que se possam instituir troca de ideias e compartilhamento de novos conhecimentos sobre diferentes aspectos da vida. Dessa maneira, toda a comunidade tem a oportunidade de debater temas sensíveis ao mundo contemporâneo e refletir sobre crenças, posturas e comportamentos que podem não ser próprios ao mundo atual. Por meio do compartilhamento e diálogo, o processo tende a ser muito mais eficiente e construtivo.”
Vamos oferecer aos colaboradores a oportunidade de refletir sobre questões humanas e, assim, evoluir em suas relações sociais, aprimorando competências necessárias ao mundo atual. O objetivo desses encontros e oficinas se constitui no crescimento individual com respeito às diferenças.
Ofereceremos, por meio de programas de letramento, a ampliação do conhecimento sobre vários assuntos, cumprindo, assim, o compromisso social da educação em processo.
Em síntese, vamos trabalhar conjuntamente para o desenvolvimento integral de pessoas e não apenas habilidades básicas de nossos colaboradores. Nesse momento, nosso grupo busca evoluir e superar as dificuldades recentes, manter o respeito e zelo pelas mais de 2.000 famílias de seus colaboradores e provar seu valor para sociedade.”
O que diz o Carrefour
Por nota, hipermercado informou que desligou todos os funcionários envolvidos no caso e que "segue oferecendo suporte social, psicológico e financeiro à família". Confira a íntegra da nota:
"Desde o fim de 2020, o Carrefour reforçou as ações de combate ao racismo e assumiu publicamente diversos compromissos para aprimorar suas políticas e práticas antirracistas em toda sua cadeia, promover a carreira de pessoas negras dentro do Carrefour e a inclusão social de negros e negras no mercado de trabalho. Com isso, a companhia vem implementando mais de 50 iniciativas, que envolvem colaboradores, parceiros, fornecedores e toda a sociedade. O plano de ação foi elaborado junto ao Comitê Externo que se formou imediatamente após o caso e cujo objetivo é assessorar, de maneira livre e independente, a companhia e acompanhar o desenvolvimento de iniciativas.
Os compromissos da empresa podem ser acompanhados pelo site www.naovamosesquecer.com.br, lançado no início deste mês como um portal de transparência, trazendo o detalhamento das ações que estão sendo implementadas pela rede em combate ao racismo estrutural no Brasil.
Sobre o evento trágico ocorrido em novembro, o Carrefour repudia veementemente todo e qualquer ato de violência e reforça que naquela ocasião rompeu imediatamente o contrato com a empresa Vector, toda a segurança de loja das unidades de Porto Alegre foi internalizada e todos os envolvidos foram desligados. A empresa segue oferecendo suporte social, psicológico e financeiro à família e vem avançando nos acordos com os advogados."
GZH entrou em contato com as defesas de Adriana Alves Dutra e de Magno Braz Borges e aguarda retorno..