Polícia



Pedido de justiça

Um ano depois, família de engenheiro morto por PM ao ter celular confundido com arma tenta reabrir inquérito

Caso foi marco para protestos contra ações policiais a negros e gerou repercussões políticas, com criação de projeto de lei que leva o nome da vítima

21/04/2021 - 07h00min

Atualizada em: 21/04/2021 - 07h00min


Vitor Rosa
Vitor Rosa
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Arquivo Pessoal / Arquivo Pessoal
Gustavo (esquerda) era engenheiro eletricista, assim como o irmão gêmeo, Guilherme, que recebeu dele o canudo em sua formatura

A família de Gustavo dos Santos Amaral não descansa desde abril de 2020. No dia 19 daquele mês, o engenheiro eletricista estava indo trabalhar quando foi morto por engano, aos 28 anos, em uma barreira da Brigada Militar em busca de assaltantes de carro em Marau, no norte do  Rio Grande do Sul.

Cinco meses depois, a Polícia Civil concluiu que o policial que atirou agiu em legítima defesa imaginária, ao confundir o celular que o rapaz carregava com uma arma. O Ministério Público (MP) concordou com a conclusão, bem como a Justiça local. A investigação foi arquivada. Na apuração interna da Brigada Militar, o mesmo ocorreu, e o procedimento administrativo foi extinto.

Desde o resultado das apurações, a família busca incessantemente por justiça. Uma perícia particular foi entregue nesta terça-feira (20) ao chefe do MP no Estado, o procurador-geral Fabiano Dallazen, com resultados que são diferentes das autoridades do Estado. O documento é a base para um pedido de desarquivamento na marca de um ano do ocorrido.

A perícia é assinada por Eduardo Llanos, perito chileno radicado em São Paulo que afirma ter 30 anos de experiência na área e ser formado em Ciências Policiais. Segundo ele, está claro que o "policial tinha todas as capacidades visuais e auditivas para identificar quem era criminoso e quem não era":

— A atitude é muito diferente entre uma pessoa inocente e um criminoso. E, mais ainda, identificar um celular como arma em uma distância de quatro metros. A desculpa, aceita de forma irresponsável pela Justiça, permite no futuro que outros policiais a utilizem em caso de novos erros ou na finalidade de matar alguém.

O MP informou que a documentação recebida será enviada ao promotor do caso, Bruno Bonamente, para análise e posterior resposta se concorda ou não com o desarquivamento.

Convivendo com o vazio da perda do filho, o pai do rapaz mistura sentimentos de dor e revolta. Gilmar Amaral acredita que o Gustavo foi morto por ser negro.

– É negro e está correndo? É bandido. Se realmente quisessem detê-lo, tinham atirado na perna, no braço. Todos nós achamos que o fato de ele ser negro foi fator fundamental para que o brigadiano tenha atirado nele – afirma o pai.

O fato

Lauro Alves / Agencia RBS
Protestos pediram justiça após morte de Gustavo

A morte de Gustavo se deu na RS-324, em Marau. Ele estava indo trabalhar com a Doblô da empresa do pai, ao lado de colegas, quando deparou com a barreira da BM em busca de assaltantes de carro. O veículo que era procurado surgiu em seguida e bateu no carro dele. Assustado, o engenheiro desceu do seu veículo e tentou se esconder. Naquele momento, um policial se aproximou e abriu fogo, acreditando que Gustavo era um dos criminosos.

Testemunhas afirmam que chegaram a alertar o policial de que ele estava se equivocando. Funcionário que estava no carro com Gustavo, o montador eletricista Evandro Motta, 31, detalhou o que viu.

— Gustavo entrou em choque, estava apavorado, e quis correr para se proteger dos tiros. Nisso, avistei um policial passando e comecei a gritar "não atira, não atira, é o dono da empresa". O policial passou em nossa frente e efetuou os disparos, sendo que um atingiu o ombro do nosso chefe. Em momento algum, ele deu voz de prisão, ou pediu para que o Gustavo levantasse o braço — narrou Motta.

Na conclusão do inquérito, o delegado à frente do caso, Norberto dos Santos Rodrigues, afirmou que houve uma série de "coincidências infelizes, aliado ao comportamento da vítima, que estava em pânico".

— As circunstâncias que se apresentaram para o policial militar, naquele milésimo de segundo, naquela ocorrência, o enfrentamento que teve com a vítima nas coincidências infelizes. O criminoso e a vítima usavam casacos similares. A vítima correu em trajeto semelhante ao que o criminoso fez – justificou, à época, o delegado.

Todos nós achamos que o fato de ele ser negro foi fator fundamental para que o brigadiano tenha atirado nele

GILMAR AMARAL

Pai de Gustavo acredita que racismo tenha influenciado na morte do filho

Após a conclusão do inquérito, o caso chegou a ficar 42 dias parado na delegacia de Marau. Ele foi entregue à Justiça dias após a reportagem de GZH detalhar que o documento não havia sido encaminhado. A chefe de polícia, Nadine Anflor, chegou a reunir-se  com a família para explicar o ocorrido.

Um protesto, em setembro do ano passado, reuniu em Porto Alegre integrantes de movimentos antirracistas, que criticaram a ação policial. A carreata terminou em frente à sede do Ministério Público, onde os manifestantes gritaram por justiça.

Nesta terça (20), a Secretaria da Segurança Pública enviou nota a GZH em que afirma que as instituições respeitam as "manifestações legítimas de familiares de Gustavo" diante da "fatalidade que resultou em sua perda". No entanto, declarou que o caso já foi "exaustivamente analisado  pelas instituições do Sistema de Justiça Criminal". 

Repercussão política

Gustavo Mansur / Palácio Piratini
Eduardo Leite recebeu familiares e líderes do movimento negro para criar grupo de trabalho após o ocorrido com Gustavo

O caso de Gustavo também teve repercussão também em gabinetes políticos. O governo do Estado criou um grupo de trabalho sobre violência policial e racismo após o fato, com discussão por membros do movimento negro. O relatório do grupo, com 23 sugestões de mudanças, foi entregue na semana passada.

Entre outros pontos, o grupo pede maior controle interno da atividade policial pelo MP, uso de câmeras e GPS por todos os agentes de segurança, capacitação frequente, novos protocolos de abordagem e a criação de uma secretaria específica contra o racismo, com verba própria.

O governo do Estado disse que o núcleo do Piratini irá discutir as sugestões do grupo de trabalho.

Julio Câmara / Juntos RS / Divulgação
Família, advogado, parlamentares do Psol e representante de movimento negro fizeram transmissão nas redes sociais sobre pedido de reabertura do caso

Além disso, um projeto de lei de autoria da deputada Luciana Genro (PSol) pede que todos os policiais passem a usar câmeras e aparelhos de GPS acoplados ao uniforme, como ocorre nos Estados Unidos. O projeto, que leva o nome de Gustavo Amaral, está parado para análise desde outubro do ano passado pelo relator na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), deputado tenente-coronel Zucco. 

Nesta terça, Zucco declarou à reportagem que dará parecer favorável ao projeto. Com isso, ele poderá ser levado ao plenário da Assembleia Legislativa.  

O pai de Gustavo também adianta que pretende criar uma ONG que buscaria justiça por casos semelhantes:

– Queremos que o nome dele seja lembrado para sempre.

Lauro Alves / Agencia RBS
Eneida Salete dos Santos, mãe, Guilherme dos Santos Amaral, irmão, e pai, Gilmar Amaral, em protesto no ano de 2020



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