Polícia



Crime sem solução

Crianças esquartejadas em Novo Hamburgo: assassinato de testemunha-chave atrasa investigação contra delegado

Policial é investigado por forjar versão para prender cinco pessoas; homem morto é apontado como o principal informante do agente

28/05/2021 - 12h59min


Vitor Rosa
Vitor Rosa
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André Ávila / Agencia RBS
Corpos das vítimas foram encontradas na Estrada Porto das Tranqueiras, no bairro Lomba Grande, área rural de Novo Hamburgo

 Entenda a reportagem em cinco pontos:

  1. Duas crianças foram encontradas esquartejadas em Novo Hamburgo em setembro de 2017
  2. O delegado Moacir Fermino assumiu o caso e disse se tratar de um ritual satânico, prendendo cinco pessoas após ter uma "revelação divina"
  3. A polícia fez nova apuração e constatou ausência de provas. Todos os presos foram soltos
  4. O delegado passou a responder a procedimento disciplinar, que ainda não chegou ao fim
  5. Morte da principal testemunha irá atrasar ainda mais o processo. Até hoje, não se sabe nem os nomes das duas crianças mortas e nem quem cometeu o crime

O caso das duas crianças encontradas esquartejadas em Novo Hamburgo, em setembro de 2017, ganhou mais um ponto de interrogação no final de 2020. O homem apontado como o principal responsável pela versão de que as duas vítimas foram mortas em um ritual de magia negra foi localizado assassinado em uma rua no bairro Lomba Grande, na mesma cidade. Paulo Sérgio Lehmen, 44 anos, seria intimado no mesmo dia a depor no procedimento administrativo disciplinar da Polícia Civil que busca responsabilizar os culpados pela trapalhada na investigação.  

Até hoje, a morte da crianças segue sem resposta e sequer o nome das vítimas foi descoberto. O delegado Moacir Fermino e Lehmen, seu informante, foram condenados em novembro de 2020 por inventar a versão de que ocorreu um ritual satânico e prender cinco pessoas que, para a Justiça, são inocentes.

Lehmen foi morto em 14 de dezembro com uma facada no pescoço, perto da casa onde morava, em um crime que ainda não foi esclarecido. Um familiar, que preferiu não se identificar, disse que ele saiu voluntariamente da residência, chamado por alguém que possivelmente o conhecia. A delegada Ariadne Langanke, da Delegacia de Homicídios, afirma que nenhuma hipótese está descartada e não encontrou indícios de que a morte possa estar ligada ao caso das crianças esquartejadas. 

Antes de morrer, Lehmen gravou um vídeo. Na mensagem, ele dizia que vinha sendo acusado de estupro de uma criança na cidade, crime que, segundo ele, não teria cometido. Afirmou que temia por sua vida. O relato foi publicado em uma rede social apenas cinco dias antes de ele ter sido assassinado.

– Pode ser mera coincidência, e não temos nenhum indício de vinculação com o inquérito passado (sobre a morte das crianças). Ainda não há elucidação. Estamos trabalhando – declarou a delegada Ariadne. 

A morte do informante acabou sendo uma surpresa para a equipe à frente do procedimento administrativo disciplinar ainda em tramitação no Conselho Superior de Polícia. Essa instância é a que pode definir pela cassação ou punição do delegado Fermino e de um agente.

Testemunha-chave por saber os detalhes da investigação de Fermino, Lehmen receberia em 14 de dezembro, mesmo dia em que foi morto, a intimação para depoimento que seria marcado na semana seguinte. Os policiais que o ouviriam foram informados pelos colegas da delegacia de homicídios de Novo Hamburgo sobre a morte.

O delegado Cristiano Reschke, que é responsável pelo procedimento administrativo-disciplinar, reconhece que o homicídio irá atrasar ainda mais a extensa investigação – agravada pela interrupção dos trabalhos durante os períodos mais críticos da pandemia. Mais de três anos depois do caso, Fermino está aposentado e segue recebendo o salário de quase R$ 30 mil integralmente enquanto não há resolução interna da polícia.

– A ausência da testemunha em razão de morte vai impedir o depoimento no processo administrativo-disciplinar e atrasa um pouco o procedimento. Iremos solicitar ao juízo competente a autorização para utilização como prova emprestada o depoimento judicial prestado pelo Lehmen – adianta Rechscke.

Quem era Lehmen

Lehmen, ainda segundo o familiar, era uma pessoa que havia colecionado desafetos. Foi informante da polícia em outros casos.

Em 2016, foi candidato a vereador em Novo Hamburgo pelo Partido da Mobilização Nacional (PMN). Na campanha, apresentava-se como líder comunitário e empresário "do ramo da indústria de transformação". Foi exatamente na política que ele e Fermino se aproximaram, em 2002, quando ambos atuaram juntos em uma campanha para vereador.

Ao apresentar versão à imprensa, Fermino referiu-se a Lehmen como "um profeta de Deus".

— Essa pessoa que passou é um profeta de Deus e estava comigo. Disse: "Deus tem uma revelação para ti, é uma coisa de repercussão internacional e mundial".  Aí, eu digo: opa. Quando cheguei na delegacia, desci do carro, outro profeta de Deus me ligou: "Fermino, vem aqui que eu só confio em ti e tenho tudo para te passar das crianças que tiveram as partes dos corpos encontradas na Lomba Grande" — detalhou o delegado, em entrevista à Rádio Gaúcha, em 8 de janeiro de 2018.

Lehmen chegou a ser preso logo após a descoberta da versão falsa sobre o ritual satânico, mas passou a responder em liberdade. Em depoimento à Polícia Civil em 2018, ao qual GZH obteve acesso, alegou que fez uma "investigação mental" durante uma "viagem astral" para descobrir indícios do suposto ritual satânico. Depois, culpou o delegado por ter levado a versão como prova antes de fazer nova investigação:

"Ele (Fermino) até disse que poderia ser uma ilusão, mas para mim era um indício do crime. O que não pensava era que o Moacir fosse, antes de fazer toda a investigação, decretar as prisões."

Ouça trecho do depoimento obtido pela reportagem:


A condenação

Cid Martins / Agência RBS
Delegado Moacir Fermino na coletiva em que declarou ter tido "revelação divina"

Fermino foi condenado em primeiro grau pelos crimes de falsidade ideológica (três vezes) e corrupção ativa de testemunha (quatro vezes). 

No cálculo do tempo de prisão, o juiz Ricardo Carneiro Duarte aplicou penas próximas da mínima, acrescidas de alguns meses. Ainda assim, afirmou na decisão que as "consequências ocasionadas pelo delito praticado exigem aumento considerável de pena, eis que as ações ocorreram durante inquérito policial e afetaram o curso da investigação de homicídio de duas crianças – ressalta-se que até a data da publicação desta sentença não houve resolução do caso".

A sentença também condenou Paulo Sérgio Lehmen a quatro anos, dois meses e 12 dias de reclusão. Ele foi considerado culpado pelo crime de corrupção ativa de testemunhas. Contra ele, também foi observado que houve continuidade delitiva, já que teria agido de forma semelhante para convencer quatro pessoas a depor e confirmar a narrativa. 

O outro policial que era réu, o inspetor Marcelo Cassanta, que assinou um dos relatórios do delegado Fermino em que constava a versão falsa, foi absolvido no processo. Foi considerado pelo juiz que ele assinou o documento ordenado pelo superior, e que não possuía independência para tal decisão. Cassanta ainda responde ao procedimento administrativo-disciplinar da polícia.

A situação do inquérito das crianças

A morte das duas crianças segue um mistério até hoje, em aberto também na delegacia de homicídios de Novo Hamburgo. O máximo que se conseguiu descobrir, por meio de análise do Instituto-Geral de Perícias (IGP), é que as duas vítimas são um menino e uma menina, entre oito e 12 anos, e que possuíam material genético compatível pelo lado materno. Ou seja, podem ser irmãos, primos ou mesmo tia e sobrinho. Não se descobriu nome, familiares, nem mesmo de onde eram.

Os dois corpos foram sepultados em dezembro de 2019, após mais de dois anos armazenados no Departamento Médico-Legal. GZH visitou o túmulo onde ambas estão enterradas no cemitério de Novo Hamburgo. Não havia nome algum, somente a palavra "ignorado", escrita grosseiramente em tinta azul nas gavetas 710 e 721. 

Ronaldo Bernardi / Agencia RBS
No cemitério de Novo Hamburgo, corpos das crianças foram sepultados como indigentes e receberam números

O primeiro delegado que atuou no caso foi Rogério Baggio, que admite que o fato marcou para sempre sua carreira. Em 4 de setembro de 2017, quando as vítimas foram localizadas por um catador, era a primeira hora do primeiro dia de expediente do policial à frente da Delegacia de Homicídios. Ainda sob o comando dele, a polícia deu início às investigações, repleta de dificuldades em razão da cena do crime e das poucas informações.

Os corpos das vítimas foram encontradas na Estrada Porto das Tranqueiras, e nenhum morador disse ter visto o descarte. O estado dos corpos levava a polícia a suspeitar de que o crime havia acontecido poucos dias ou até horas antes. Não havia marcas de sangue no local, o que permitia concluir que os assassinatos não ocorreram ali.

As cabeças das crianças nunca foram encontradas. Com elas, seria possível tentar reconstituir a face das vítimas. As digitais e o DNA foram coletados, mas não havia registros compatíveis no Estado.

Na época, a polícia também checou a lista de pessoas desaparecidas, mas não havia casos de duas crianças sumidas. Suspeitou do caso de dois irmãos desaparecidos na Bahia, mas as crianças foram encontradas vivas. Depois disso, chegou a se levantar a hipótese de que os pais das vítimas estariam mortos, mas o material genético permitiu descartar ligação com outros casos de pessoas assassinadas. Verificou-se também, em escolas gaúchas, crianças que estariam ausentes, mas também se obteve retorno. Nenhuma investida deu resultado.

Três meses depois, o delegado Baggio saiu de férias. Foi quando Moacir Fermino, delegado de quarta classe (a última na carreira) e experiente na região, assumiu temporariamente a investigação. Em pouco tempo, o veterano anunciou ter resolvido o crime após ter tido “uma revelação divina”, em coletiva de imprensa que contou até com a cúpula da instituição.

Depois, a polícia voltou atrás e assumiu o erro de Fermino, num caso que até hoje é digno de constrangimento para a corporação.

Nenhuma novidade sobre o crime foi descoberta desde então. 

Polícia Civil / Divulgação
Corpos de crianças foram encontrados em matagal no interior de Novo Hamburgo

Contraponto

GZH ligou para os telefones de Fermino, mas estão desligados. José Claudio de Lima da Silva, advogado do delegado, disse que não comentaria o caso. Apenas informou que vai recorrer da sentença que condenou o seu cliente. 


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