Polícia



Sangue na contravenção

 Mortes de empresários do jogo ilegal podem ter relação com extorsões de facções do tráfico

Assédio aos donos da jogatina ilegal vem desde o início da década passada, mas aumentou a partir de 2016

22/05/2021 - 07h00min


Humberto Trezzi
Humberto Trezzi
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Robinson Estrásulas / Agencia RBS
Pelo menos 30 casos de assédio de facções sobre jogos ilegais são investigados pela Polícia Civil no Estado

Os donos da jogatina clandestina estão sob fogo cruzado no Rio Grande do Sul. De um lado sofrem pressão permanente por agirem fora da lei. Ficam abrindo e fechando estabelecimentos, sempre de olho nas autoridades. Por outro lado, são extorquidos pelas facções do tráfico, que há algum tempo ambicionam o lucro do jogo. Quem se nega a colaborar é ameaçado de morte.

O assédio das facções aos donos da jogatina ilegal vem desde o início da década passada, mas aumentou a partir de 2016. Pelo menos 30 casos são investigados pela Polícia Civil nos vales do Sinos, Paranhana, Taquari e do Rio Pardo, no Litoral Norte, na Serra e nas Missões.

É por isso que existe a hipótese de que o assassinato do bicheiro mais conhecido de Porto Alegre, João Carlos Franco Cunha, o Jonca, seja represália de alguma quadrilha do tráfico — tipo de negócio do qual ele jamais foi acusado. A facção criminosa mais influente na área onde o bicheiro mantinha casa de jogos na Azenha é do Vale do Sinos.

A mesma possibilidade de assassinato a mando de facções é analisada para um caso ainda em aberto: a morte a tiros de Marcos Assmus, dono do Bingo Roma e ex-sócio de Jonca. Ele foi executado em 2012, em meio a rumores de que se recusara a pagar dízimo a uma quadrilha do tráfico. Familiares dele informaram que Assmus foi assaltado na mesma semana da sua morte e, um dia antes da sua execução, o Bingo Roma pegou fogo.

O próprio Assmus foi alvo de duas investigações sobre tráfico. Em uma delas, de 2004, policiais civis encontraram numa chácara de sua propriedade um quilo de maconha e porções de crack. Ele foi condenado a 12 anos de prisão por associação para o tráfico, com pena a ser cumprida no regime semiaberto (da qual recorreu). 

Em outro episódio, o bingueiro foi denunciado, em 2008, por supostamente se associar à compra de diversas remessas de cocaína vindas de outros Estados e direcionadas para bairros da zona norte de Porto Alegre, como Vila Farrapos e Rubem Berta. Assmus foi morto antes de o caso ser julgado.

Em Sapiranga, a Polícia Civil conseguiu recentemente a prisão preventiva de 21 suspeitos de praticarem extorsão e ameaças de morte contra donos de caça-níqueis. Eles agem, segundo policiais, a mando da facção do Vale do Sinos. Os autores das ameaças quebraram diversas máquinas e usavam uniformes simulando serem integrantes da Polícia Civil.

Na zona norte da Capital, a extorsão é praticada por outra facção, com origem na Vila Bom Jesus, segundo relatam representantes de bingueiros ouvidos pela reportagem. Algumas salas com máquinas de jogo têm de pagar até R$ 3 mil semanais para a facção, como "proteção" contra assaltos.

A chefe da Polícia Civil, delegada Nadine Anflore, prefere não analisar o caso de Jonca especificamente, mas admite que existe no Rio Grande do Sul assédio das facções aos donos da jogatina ilegal. E que ameaças de morte variadas têm ocorrido, há anos.

"Me recusei a pagar e tive de fechar", diz dono de bingo

Em 2018, Roberto (que prefere ser assim identificado) montou um bingo no centro de Porto Alegre. Apesar de pequena, a casa de jogos empregava 50 funcionários e faturava cerca de R$ 8 mil por dia. 

— Ganhando bem — ressalta o empresário da jogatina ilegal. 

Os vendedores, diz ele, recebiam cerca de R$ 3 mil, sustentavam família, conseguiam pagar consórcio de algum veículo, o gerente ganhava R$ 8 mil. Alguns deram entrada em financiamento da casa própria.

O negócio começou a gorar quando uma facção nascida na zona leste de Porto Alegre se apresentou, 15 dias após a abertura do bingo, descreve ele à reportagem de GZH. Queriam R$ 3 mil por semana. Mesmo sendo pequena parte do valor que Roberto faturava, ele decidiu não pagar. Tinha seguranças no bingo. Em vão.

— Entraram no bingo, roubaram. Fizeram depois várias tentativas de nos intimidar, armados. Isso foi ao longo de um ano. Exigiram fazer parte na sociedade. Ameaçaram que a casa de jogos não seria mais minha.

Roberto diz que, com o tempo, teve de fechar o negócio. Ficou devendo equipamentos, pois decidiu não reabrir.

— Hoje os grandes inimigos do governo e do empresário do jogo são as facções. Bastaria legalizar o jogo que a gente poderia pagar impostos, contar com as polícias. Do jeito que está, não dá. E vem mortes aí — afirma Roberto.

Entidades centenárias poderiam explorar quatro modalidades de sorteios. Do contrário, o jogo sairá cada vez mais do controle dos empresários

MARCELO NASCIMENTO

Advogado

Advogado de pessoas investigadas por explorarem jogo ilegal, Marcelo Nascimento diz que legalizar é a solução e existe uma brecha jurídica, a Lei do Turfe (Lei 7.291, de 1984). Num dos artigos, autoriza as entidades promotoras de corridas de cavalos a explorarem apostas e loterias, desde que paguem impostos.

— Entidades centenárias poderiam explorar quatro modalidades de sorteios. Do contrário, o jogo sairá cada vez mais do controle dos empresários e, definitivamente, irá para o braço armado das facções — conclui Nascimento.

Posição oposta tem o procurador-geral de Justiça do Rio Grande do Sul, Fabiano Dallazen. Ele diz que assassinatos em acertos de conta da jogatina comprovam que a exploração de jogos de azar envolve muitos outros crimes além da contravenção.

O fato é que o Estado ainda não tem uma estrutura de fiscalização a permitir que o jogo possa existir de forma escorreita

FABIANO DALLAZEN

Procurador-geral de Justiça do Rio Grande do Sul

— Há lavagem de dinheiro, facções, e o fato é que o Estado ainda não tem uma estrutura de fiscalização a permitir que o jogo possa existir de forma escorreita, com valores legalmente tributados. A legalização pura e simples seria dar um recibo à criminalidade organizada para continuar atuando, com dano social — opina Dallazen.

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