Violência doméstica
Uma mulher é agredida no RS a cada 30 minutos
De janeiro a novembro deste ano, foram 16 mil casos de lesão corporal registrados no Estado
Nos 11 primeiros meses deste ano, em média, uma mulher foi agredida a cada 30 minutos no Rio Grande do Sul. Embora este tipo de registro tenha se reduzido 6,1% no comparativo com igual período de 2020, a incidência alarma autoridades. Ainda mais quando a estimativa é de que somente 10% dos casos sejam comunicados à polícia.
No cenário da violência doméstica, a subnotificação — quando se deixa de comunicar o crime — é empecilho para identificar a vítima, antes que evolua para algo ainda mais grave, como feminicídio. Esse, por sinal, está em crescimento no Estado.
Nessa empreitada para tentar encorajar mulheres a romper com o ciclo violento, o aumento de registros de crimes como ameaça ou lesão corporal não é encarado necessariamente como negativo. Por outro lado, quando reduzem, a tendência é de que mais vítimas tenham sido silenciadas.
A maioria dos crimes não é registrada, seja por medo, dependência financeira, receio de afetar a vida dos filhos ou mesmo os julgamentos da família e da sociedade.
— A violência de gênero é muito silenciosa. Muitas sofrem anos de violências psicológicas, ameaças, injúrias. O tempo médio para buscar ajuda é de 10 anos, até que rompa o silêncio. É preciso levantar essa cifra oculta, fazer com que mais mulheres procurem ajuda nos estágios iniciais da violência. Mais de 80% das que morreram no Estado não tinham solicitado medida protetiva — afirma a delegada Jeiselaure Rocha de Souza, diretora da Divisão de Proteção e Atendimento à Mulher.
Assim como as lesões corporais, os registros de ameaças também tiveram queda no comparativo com o ano passado — foram 1,5 mil registros a menos, de 30.696 para 29.153 (-5%). Para a delegada, isso sinaliza que as mulheres estão registrando menos os casos em seus estágios iniciais. Fortalecer os canais de denúncias e a rede de acolhimentos são apontados como essenciais para fomentar a busca por ajuda.
— É preciso que as mulheres acreditem que as ameaças podem se concretizar, e ter desdobramento mais grave ali na frente. Se elas nos procuram nos primeiros sinais de violência psicológica, conseguimos fazer a intervenção para ajudar a mulher a sair do ciclo da violência — enfatiza a delegada.
O feminicídio, único delito no âmbito da violência doméstica no qual se entende que não há subnotificação, teve aumento de 23,2%. Em contrapartida, os casos de tentativa de feminicídio tiveram queda de 20,4%.
Esse tipo de delito está no foco de um estudo do qual a doutoranda em Sociologia na UFRGS Suelen Aires Gonçalves faz parte. Ela aponta fatores por trás da violência doméstica, como as relações de poder:
— O que a sociedade espera de um homem é que seja forte, viril, não expresse sentimentos, medeie suas frustrações pela violência. Isso é provocado desde a infância até a fase adulta. Das mulheres se espera que sejam submissas. Os papéis são importantes para compreender o fenômeno da violência. O feminicídio é um ponto final de uma série de violências.
Muitas vezes, o histórico de violências sofridas só é descoberto tarde demais, quando chega ao ápice: o feminicídio. Após o crime, familiares ou vizinhos descrevem anos de abusos psicológicos, ameaças e agressões sofridos por aquela mulher. Tirar essa responsabilidade somente dos órgãos de segurança, e fazer com que a sociedade se conscientize sobre a necessidade de interferir, denunciando os crimes, e dar apoio à vítima de violência doméstica é um dos desafios.
— As mulheres que morrem, quase todas têm histórico de violência anteriores. Mas nem todo o histórico corresponde aos registros. Quando há medida protetiva, o índice de feminicídio é muito baixo — ressalta a promotora de Justiça Bianca Acioly, do Grupo Especial de Prevenção e Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
O ciclo da violência
A violência doméstica normalmente passa por uma série de estágios. Antes das agressões, em geral, há o abuso psicológico, com xingamentos, humilhações, controle de redes sociais, do celular e afastamento da família e dos amigos. É nessa etapa que muitas encontram dificuldade para identificar o relacionamento abusivo, por confundir o comportamento com amor, afeto e ciúmes. A frase mais ouvida nessa fase é: “Ele nunca me bateu”.
Mas o controle sobre a mulher costuma evoluir, e a violência física, na maioria das vezes, se inicia por meio de empurrões e puxões de cabelo, ficando cada vez mais graves. E, mesmo quando a mulher passa a ser agredida, outros fatores incidem, como o receio de afastar os filhos do pai.
— Muitas pensam que, mesmo sendo agressivo com ela, ele é um bom pai. Mas crianças que crescem num ambiente de violência doméstica são vítimas secundárias. Trazem traumas para a vida adulta. É importante que se diga às mulheres como mães, formadoras de indivíduos, que tenham coragem de romper o silêncio, e prosseguir longe do cenário de violência. Ela estará protegendo os filhos e a si mesma — alerta a delegada Jeiselaure Rocha de Souza.
O primeiro registro, muitas vezes, só ocorre quando a mulher não consegue mais resolver a situação sozinha, como numa lesão mais grave ou mesmo num estupro, onde precisa buscar ajuda em posto de saúde, por exemplo.
De janeiro a novembro deste ano, em média, um estupro foi registrado a cada quatro horas no Estado. Foram 1.906 casos — três a menos do que os comunicados nos 11 primeiros meses do ano passado. Há dois tipos de caso: aqueles praticados dentro dos relacionamentos, onde as mulheres são obrigadas a manterem relações sexuais, ainda que contra a vontade, e, por vezes, nem sequer entendem que isso é uma violência, o que incide na subnotificação, e os praticados por desconhecidos.
O estupro chama atenção por, via de regra, a mulher não denunciar, pela situação, medo do julgamento, violência institucional que pode vir a passar. É situação de violência extrema.
BIANCA ACIOLY
Promotora
— O estupro chama atenção por, via de regra, a mulher não denunciar, pela situação, medo do julgamento, violência institucional que pode vir a passar. É situação de violência extrema — diz a promotora Bianca Acioly.
Alternativas
Entre as iniciativas que tentam reduzir a subnotificação e impedir que mais mulheres sejam mortas está a implantação das salas das Margaridas (espaços em plantões de delegacias com atendimento reservado e humanizado), fomento de canais de denúncia, como Delegacia Online e WhatsApp, e operações contra agressores. Em 2021, quase 700 policiais civis foram capacitados para acolher as mulheres nas delegacias, encaminhar para exames, perícias, atendimento psicológico, profilaxia, e dar orientação de como ela deve prosseguir.
Em maio deste ano, a aplicação de formulário de risco para mulheres que sofrem violência doméstica se tornou lei nacional — a medida já vinha sendo aplicada no RS. A ação busca mapear cada caso no primeiro atendimento. Por meio das respostas, é possível avaliar o grau da violência e o risco que aquela mulher corre de ser mais uma vítima de feminicídio.
Entre as respostas que sinalizam para grau elevado, está o acesso às armas de fogo pelo agressor e lesões como queimadura, quebradura ou esganadura. Conscientizar a vítima de que está em uma relação abusiva e fortalecer o apoio que ela recebe, seja de familiares ou da rede de acolhimento, são considerados essenciais no combate a esse tipo de crime.
— É difícil para a família entender a dinâmica do ciclo da violência, no qual a mulher rompe e retoma a relação. Mas o apoio das famílias é essencial — diz a promotora Bianca Acioly.
O fortalecimento da rede de políticas para atendimento após o registro, como o abrigamento de mulheres, é apontado como determinante no enfrentamento.
— Ter espaços seguros de denúncia, mas também centros de referência, com acolhimentos, atendimento psicossocial. É algo que temos uma carência gigante no Estado do RS. Infelizmente para algumas mulheres a casa é o local menos seguro para se viver — pondera Suelen.
Mulheres negras
Na tese que desenvolve na UFRGS, Suelen analisa os assassinatos de mulheres negras em comparação com o de não negras no Estado, num recorte somente de casos que chegaram ao Judiciário, desde a década de 1960. Ao todo, para o estudo, selecionou 140 processos, e concluiu que a maior parte das mulheres brancas foi assassinada em feminicídios íntimos — aqueles cometidos por pessoas com quem mantinham ou mantiveram relacionamento. Quando se olha para as mulheres negras e periféricas, o cenário é diferente.
São mulheres mortas nos espaços públicos ou que têm os corpos encontrados na rua. E os casos apresentam baixíssima resolutividade, muitos não se encontrou a autoria e foram arquivados. Isso diz muito sobre a desigualdade social e racial
SUELEN AIRES GONÇALVES
Doutoranda em Sociologia na UFRGS
— Os autores não são companheiros. São casos de violência sexual, seguida de feminicídio, por exemplo. São mulheres mortas nos espaços públicos ou que têm os corpos encontrados na rua. E os casos apresentam baixíssima resolutividade, muitos não se encontrou a autoria e foram arquivados. Isso diz muito sobre a desigualdade social e racial — explica.
Onde pedir ajuda
Brigada Militar
- Telefone - 190
- Horário - 24 horas
- Serviço - atende emergências envolvendo violência doméstica em todos os municípios. Para as vítimas que já possuem medida protetiva, há a Patrulha Maria da Penha da BM, que fiscaliza o cumprimento. Patrulheiros fazem visitas periódicas à mulher e mantêm contato por telefone
Polícia Civil
- Endereço - Delegacia da Mulher de Porto Alegre (Rua Professor Freitas e Castro, junto ao Palácio da Polícia), bairro Azenha. As ocorrências também podem ser registradas em outras delegacias. Há 23 DPs especializadas no Estado
- Telefone - (51) 3288-2173 ou 3288-2327 ou 3288-2172 ou 197 (emergências)
- Horário - 24 horas
- Serviço - registra ocorrências envolvendo violência contra mulheres, investiga os casos, pode solicitar a prisão do agressor, solicita medida protetiva para a vítima e encaminha para a rede de atendimento (abrigamentos, centros de referência, perícias, Defensoria Pública etc), entre outros serviços