Julgamento frustrado
O que está por trás do cancelamento do júri e o que pode acontecer com o Caso Rafael
Adiamento pode resultar em recurso acatado, novo julgamento ou até abandono da causa pelos advogados
A comunidade de Planalto, cidade agrícola de 10 mil habitantes no norte do RS, foi da notoriedade temporária à frustração com o adiamento do júri de maior impacto já realizado naquele município. A dona de casa Alexandra Salete Dougokenski, 34 anos, ganhou tempo antes do veredito sobre seu papel no assassinato do filho caçula Rafael Winques, 11 anos. O julgamento dela durou 11 minutos. Foi adiado após seus advogados de defesa apresentarem um áudio extraído do celular do pai do menino, Rodrigo Winques, no qual uma criança fala. Há suposição de que seria o próprio Rafael. E que teria sido gravado um dia após a data estimada para a morte do menino, oficialmente ocorrida no município de Planalto em 14 de maio de 2020.
Diante das dúvidas, os advogados exigem perícia do material, recusada pela juíza Marilene Campagna. Aí os defensores de Alexandra abandonaram o plenário.
Conforme o pós-doutor e professor de Direito Penal e Processo Penal da Pontifícia Universidade Católica do RS (PUCRS) Marcelo Caetano Guazzelli Peruchin, em casos como esse ocorre o cancelamento do júri porque não haveria tempo hábil para uma nova defesa estudar o processo.
O que pode acontecer agora em relação a prazos?
Três são as hipóteses que se desenham, num primeiro momento:
- Realizar a perícia: mesmo com a recusa da juíza em autorizar a perícia, os advogados podem recorrer a instâncias superiores e alguém do Tribunal de Justiça determinar que isso seja feito. A perícia precisa ser juntada aos autos até três dias antes do julgamento, salienta o professor Marcelo Peruchin. A perícia pode ser contratada pela própria defesa ou pode ser feita pelo Instituto-Geral de Perícias (IGP) em caso de eventual habeas corpus solicitado pela defesa e concedido pelo Tribunal de Justiça. Diante do acúmulo de análises no IGP, é provável que esse exame no áudio demore meses ou até anos. Enquanto isso, os advogados de Alexandra podem alegar que ela ficou muito tempo presa (está em presídio desde 2020) e tentar que seja libertada provisoriamente. Pessoas que acompanham o caso acreditam que seja grande essa possibilidade.
- Julgamento remarcado para breve: caso não seja aceita pelo Judiciário a marcação de perícia, o júri é remarcado e a tendência é que isso ocorra rapidamente, diz um dos advogados de acusação (que auxiliam o Ministério Público) no caso, Daniel Tonetto. Mas há possibilidade de que os jurados sejam substituídos, porque eles já teriam sido influenciados pelo clima turbulento do caso.
- Abandono do caso por parte dos advogados: é sempre uma possibilidade, embora Jean Severo, o cabeça da banca de defensores de Alexandra, assegure que continuará com sua cliente e que só abandonou o plenário do júri. Até o momento não se sabe se a ré concorda com a exigência de perícia, porque ela não foi ouvida a respeito. Caso os seus defensores desistam, podem ser nomeados defensores dativos (gratuitos) para ela ou alguém da Defensoria Pública, já que nenhum acusado pode ser julgado sem defesa.
Uma reviravolta não seria surpreendente, já que Alexandra deu quatro versões diferentes para o sumiço do filho. Na primeira ela disse que ele desapareceu, na segunda admitiu que o matou com sonífero, na terceira confessou que o arrastou com uma corda (ainda vivo) e na quarta, ela disse que o autor do assassinato é o pai do menino.
Decepção e prejuízos com o cancelamento
Excetuados os advogados de Alexandra e seus familiares, os demais envolvidos no júri em Planalto, ouvidos pela reportagem, demonstram decepção com o cancelamento. A juíza Marilene Campagna, que tentou evitar o adiamento ao negar a perícia de última hora, adverte até que pode ser aplicada multa aos defensores da ré por abandono de plenário. Será calculado quanto foi gasto para montar o aparato necessário ao julgamento – entre reservas de hotéis, aluguel de clube, refeições canceladas e deslocamento de veículos. Com base nisso podem ser penalizados. A magistrada preferiu não falar com a imprensa, ao deixar o plenário.
A promotora Michele Dumke Kufner diz que o Ministério Público está pronto para trabalhar e que apenas aguarda a juíza designar a nova data.
— Vamos oficiar a OAB para apurar a conduta dos advogados e ver se cabe algum tipo de sanção. É o órgão de classe que tem que fazer essa análise — adianta ela.
A promotora ressalta que toda a estrutura montada para o Tribunal do Júri (e que foi motivo de licitação) terá de ser refeita e isso leva tempo. É um pouco complexo, porque envolve questões administrativas e jurídicas que terão que ser resolvidas. Há ainda possibilidade de novos jurados serem escolhidos, mediante sorteio.
O impacto do adiamento também é grande no comércio. Pelo menos 50 integrantes da mídia iriam se revezar na cobertura do julgamento e todas os quartos de hotéis que eles ocupariam agora ficarão vagos.
No segundo andar da sede do Independente Futebol Clube, onde ocorreria o júri, estava montado um restaurante temporário para servir almoço e janta durante as sessões. Foram encomendadas 30 refeições em cada turno, mas os comerciantes esperavam que o movimento fosse maior, devido à presença de público e imprensa. Tudo foi cancelado.
— Claro que sentimos pelo prejuízo, estou com freezer cheio de produtos que compramos para as refeições. Mas sentimos mais pela falta de resultado. Sou mãe. Planalto estava esperando por esse júri. Isso que mais machuca a gente — diz Adriana Ferreira dos Santos, 39 anos.
Quando Rafael desapareceu em maio de 2020, Adriana e o marido, Joel Antônio Zaleski, 33, empenharam-se nas buscas ao menino. Reviraram matagais atrás de pistas do paradeiro do garoto, enquanto a mãe dizia que ele havia sumido de casa durante a noite.
— A gente passava na frente da casa dela e estava lá sentada, tomando chimarrão. E o filho morto ali perto. É muito triste isso — recorda Adriana, que costumava visitar o túmulo de Rafael, no Cemitério Municipal de Planalto.
Outros moradores também preservam o hábito de levar flores ao local, numa espécie de afago à memória do menino que morreu de forma precoce e trágica.