Polícia



Violência doméstica

Quais os caminhos para impedir feminicídios quando a medida protetiva não é o suficiente

No primeiro semestre deste ano, 55 mulheres foram mortas por questões de gênero, 11 delas tinham a determinação judicial

25/07/2022 - 08h57min

Atualizada em: 25/07/2022 - 08h59min


Leticia Mendes
Leticia Mendes
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IGP / Divulgação
Em fevereiro, mulher foi assassinada em Canoas pelo ex, que tinha prisão decretada por descumprir medida

No primeiro semestre deste ano, o Rio Grande do Sul concedeu 60.632 medidas protetivas de urgência para mulher vítimas de violência doméstica. Mas há casos nos quais a determinação judicial não basta para impedir a violência. De janeiro a junho de 2022, 55 mulheres foram vítimas de feminicídio no RS. Do total, 11 tinham medida protetiva e 25 já tinham feito algum registro contra o autor.  

Em Canoas, na Região Metropolitana, uma mulher de 26 anos foi morta a tiros em fevereiro em frente ao condomínio onde morava. Ela tinha medida protetiva contra o ex, de 23 anos, que foi preso cinco dias depois — ele já tinha prisão preventiva decretada por descumprimento da medida quando houve o feminicídio

Em Santa Cruz do Sul, no Vale do Rio Pardo, no início deste mês, Heide Juçara Priebe, 63 anos, foi morta a tiros no meio da rua, quatro dias após fazer registro contra o ex que passou a persegui-la por não aceitar o término. Servo Tomé da Rosa, 69, foi preso em flagrante e admitiu o assassinato, registrado por imagens de câmeras.  

— Infelizmente, minha mãe não teremos de volta — lamentou o filho Franklin Fetzer, 40 anos, que chegou a acompanhar a mãe até a Delegacia de Polícia.  

A orientação é para que as vítimas com medida protetiva sempre notifiquem as autoridades caso o agressor descumpra a ordem judicial. Por outro lado, nem sempre a vítima consegue buscar ajuda a tempo. Um estudo do qual a advogada Carmen Campos, conselheira da ONG Themis — Gênero, Justiça e Direitos Humanos de Porto Alegre, foi uma das integrantes aponta que nestes casos as mulheres costumam ser pegas de surpresa e o crime é premeditado. Foi o que aconteceu com Heide, onde a polícia descobriu que o autor confesso mantinha um caderno no qual planejava o crime. A vítima foi alvejada no momento em que seguia até seu veículo estacionado, na saída do trabalho.  

— A medida protetiva é importante, mas é insuficiente como medida de prevenção sozinha. Ela pode afastar alguns sujeitos, que pensam que podem ter muito a perder. Quando ele está decidido a matar, a medida protetiva não vai sozinha proteger a mulher. Há responsabilidade dos poderes públicos de prevenir essas mortes. É preciso avançar na elaboração de políticas de prevenção, tendo em conta esses elementos, ou não vai preservar a vida das mulheres  — afirma Carmen.   

Estudo

O levantamento analisou processos no Tribunal de Justiça do Estado, dos anos de 2016 a 2021, nos quais mulheres com medida protetiva foram vítimas de feminicídios ou tentativas. Ao todo, 24 casos foram detalhados. Os crimes, em sua maioria, foram motivados pela não aceitação do rompimento e aconteceram no período de até dois anos após o fim. A presença de crianças no local não inibiu os assassinatos, muitas vezes presenciados pelos filhos. Outro fator que desperta a atenção é o anúncio da morte pelo agressor.  

— Ele diz que vai matar antes de matar, e isso é um elemento a se considerar. Precisamos saber como essa morte anunciada está sendo valorizada pela polícia, Poder Judiciário e Executivo. Como esse fator de risco é analisado. A medida protetiva não coloca a mulher em segurança numa situação em que ele está disposto a matar. Temos de aumentar os mecanismos de prevenção. As Patrulhas Maria da Penha da BM têm papel muito importante, de proteção. Mas ainda são reduzidas. Não adianta só dizer para a mulher denunciar. O Executivo tem de levar a sério as mortes de mulheres. Vários outros crimes reduziram e o feminicídio aumentou. O Estado está falhando — critica a advogada.  

Importância da rede

O fortalecimento da rede de proteção à mulher é citado pelos envolvidos no combate à violência doméstica como essencial para garantir maior proteção às vítimas e que as medidas sejam mais efetivas. Isso passa tanto por investimento nos órgãos que atuam no combate à violência doméstica, quanto incremento de policiais, na criação de políticas e projetos voltados ao tema. 

— As medidas são fundamentais e, quanto mais estruturada e articulada a rede, mais eficaz ela é. Ter um fluxo bem organizado é essencial. Porto Alegre realmente tem um fluxo bem organizado. A Deam teve algumas evoluções, tem serviço social e psicóloga, tem uma sala de acolhimento (Sala das Margaridas), tem plantão 24 horas, passou a atender flagrantes de violência doméstica. O atendimento é especializado — analisa o promotor Marcelo Ries, da Promotoria de Justiça Especializada de Combate à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Capital.

Para além das medidas protetivas, a magistrada do 1° Juizado da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Porto Alegre Madgéli Frantz Machado enfatiza a necessidade de implementação de políticas públicas para facilitar o acesso daquelas mulheres que encontram desafios para buscar ajuda e romper o ciclo de violência. 

— Não temos aluguel social para mulher vítima de violência doméstica. Para os benefícios assistenciais, elas têm de acessar uma fila comum. Há casos em que a mulher não tem passagem para ir até a delegacia. Muitas mulheres que chegam até aqui não conseguem fazer o curso porque não tem com quem deixar os filhos. Temos de entender por que as mulheres não estão conseguindo pedir ajuda. Elas têm essas barreiras, que fazem com que não acreditem que seja possível sair da situação. Ao mesmo tempo, mostrar que o que existe é efetivo e aprimorar o que é preciso — afirma a magistrada. 

Monitoramento do agressor 

Criado para concentrar projetos de combate a esse tipo de violência no Estado, o Comitê Interinstitucional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher (EmFrente, Mulher) vem discutindo e implementando série de ações.  Entre elas, está o projeto de monitoramento do agressor, para o qual tem sido testadas tecnologias. A expectativa é de que em agosto seja aberta licitação para contratação de empresa e que o piloto seja colocado em prática até o fim do ano. A iniciativa deve começar pela Grande Porto Alegre.  

Por meio do projeto, o agressor deve ser monitorado por tornozeleira, semelhante à usada por apenados. O homem não poderá se aproximar de áreas consideradas zonas de exclusão, como o trabalho ou moradia da mulher. Se fizer isso, a central de monitoramento será alertada. Ao mesmo tempo, a vítima deverá ter dispositivo, que gerará aviso se o agressor se aproximar. A medida deverá ser aplicada em casos específicos, por meio de decisão judicial.  

— A mulher tem de ter chance de ser alertada, para saber que ele está se aproximando, e elaborar plano de fuga. Esta solução sozinha não vai resolver todos os casos. É preciso tudo isso que se tem pensado para diminuir a violência doméstica. É necessário mudar essa cultura machista da nossa sociedade, onde alguns homens acham que podem resolver as relações de maneira violenta — afirma o coordenador do programa RS Seguro, delegado Antônio Carlos Pacheco Padilha.

Raio X dos feminicídios 

Em relação ao mesmo período do ano passado, houve acréscimo de 12,2% nos feminicídios no Estado. A maior parte das vítimas, segundo a Polícia Civil, foi morta com arma branca, como facas, por exemplo, seguida por arma de fogo. Das 55 mulheres assassinadas, 47 eram mães, sendo 20 com o próprio autor. Ao todo, elas deixaram 118 filhos — desses, 56 eram crianças ou adolescentes, que ficaram órfãos.  

— É preciso aprimorar o trabalho da rede de proteção como um todo. Quando a mulher busca ajuda, ela precisa ter para onde ir, o abrigamento, ter auxílio para fazer a separação, via defensoria, auxílio de assistência social. Isso temos de aprimorar. Precisamos de políticas públicas para melhorar o atendimento como um todo. Além da educação em relação às violências. Combater os feminicídios vai muito além da atuação dos agentes de segurança pública, é uma questão sociocultural — diz a delegada Cristiane Ramos, da Delegacia da Mulher de Porto Alegre e diretora da Divisão de Proteção à Mulher do RS. 

Somente na Delegacia da Mulher de Porto Alegre há 10 mil inquéritos em andamento, destes 18 são por tentativa de feminicídio e dois por feminicídio. Cerca de 1 mil ocorrências novas são registradas por mês na Capital — 80% delas com pedido de medida protetiva. Na delegacia, cerca de 1 mil inquéritos são encaminhados por mês ao Judiciário.   

Parte 1 -   RS tem 335 medidas protetivas concedidas por dia para mulheres vítimas de violência doméstica

Tire suas dúvidas 

Quem pode pedir medida protetiva?

  • Qualquer mulher que esteja em situação de violência doméstica. Não é preciso ser casada com o agressor. 

 O que é considerado violência doméstica?

  • A Lei Maria da Penha prevê não somente a violência física, mas também a sexual (forçar relação ou forçar gravidez, por exemplo), patrimonial (subtrair bens, valores, documentos), moral (calúnia, difamação ou injúria) e psicológica (ridicularizar, chantagear, ameaçar, humilhar, isolar e impedir contato com amigos e familiares, vigiar, controlar, impedir de trabalhar e/ou de estudar, impedir de usar telefone/redes sociais).

 Como posso obter a medida protetiva?

  • A mulher agredida deve se dirigir à Delegacia de Polícia ou Delegacia da Mulher mais próxima. Se precisar de proteção para si ou para os filhos, pode solicitar as medidas protetivas específicas e a própria Delegacia de Polícia encaminha o pedido ao juiz. Se for agredida em casa, a vítima deve sair do local para evitar que o agressor utilize objetos como faca e arma de fogo.

Quais tipos de medidas protetivas possíveis?

  • Entre as possíveis, está o afastamento do agressor do lar, proibição da comunicação entre o agressor e a vítima ou seus familiares, prestação de alimentos aos filhos menores, suspensão do porte de arma de fogo do agressor, proibição de contato ou aproximação com a vítima, restrição ou suspensão das visitas a dependentes menores, restituição de bens indevidamente subtraídos e encaminhamento da vítima a programa de proteção.

Quanto tempo dura a medida protetiva?

  • A Lei Maria da Penha não estabelece prazo, já que ela deve estar vigente enquanto houver risco à vítima. A validade da medida protetiva é determinada pela Justiça, dependendo de cada caso. Pode durar por exemplo, quatro meses, seis meses ou um ano. A vítima deve ficar atenta à validade e pode pedir que ela seja prorrogada, justificando a necessidade. Para isso, deve comparecer no cartório do Juizado/Vara ou procurar a Defensoria Pública ou advogado constituído. 

E se ele descumprir?

  • Se o agressor descumprir alguma das medidas protetivas, a vítima deve comunicar a polícia. Se o descumprimento estiver acontecendo no momento, chame a Brigada Militar, pelo 190. Se já aconteceu, é possível procurar a Polícia Civil, por meio da delegacia ou da Delegacia Online, a Defensoria Pública, o advogado ou diretamente no Juizado da Violência Doméstica. 

Descumprimento da medida pode ser punido?

  • O descumprimento das medidas protetivas também é crime. A pena é de três meses a dois anos de prisão. O juiz poderá decretar a prisão preventiva do agressor para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.

O que é a Patrulha Maria da Penha?

  • A patrulha é formada por policiais da Brigada Militar capacitados para atuar em situações de violência doméstica e familiar contra a mulher. Sua função é a de fiscalizar o cumprimento das medidas, esclarecer dúvidas, fornecer informações e orientações, visando prevenir e evitar novas violências. As informações obtidas são repassadas ao Juizado de Violência Doméstica para que sejam adotadas as providências necessárias, inclusive a prisão do agressor, se for o caso.

Onde posso obter mais informações?

  • Um dos canais que possui diversas informações para as vítimas é Coordenadoria Estadual da Mulher em situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ-RS. Acesse este link

Como pedir ajuda 

Brigada Militar – 190

  • Se a violência estiver acontecendo, a vítima ou qualquer outra pessoa deve ligar imediatamente para o 190. O atendimento é 24 horas em todo o Estado. 

Polícia Civil

  • Se a violência já aconteceu, a vítima deverá ir, preferencialmente à Delegacia da Mulher, onde houver, ou a qualquer Delegacia de Polícia para fazer o boletim de ocorrência e solicitar as medidas protetivas. 
  • Em Porto Alegre, a Delegacia da Mulher na Rua Professor Freitas e Castro, junto ao Palácio da Polícia, no bairro Azenha. Os telefones são (51) 3288-2173 ou 3288-2327 ou 3288-2172 ou 197 (emergências).
  • As ocorrências também podem ser registradas em outras delegacias. Há DPs especializadas no Estado. Confira a lista neste link

Delegacia Online

  • É possível registrar o fato pela Delegacia Online, sem ter que ir até a delegacia, o que também facilita a solicitação de medidas protetivas de urgência.

Central de Atendimento à Mulher 24 Horas – Disque 180

  • Recebe denúncias ou relatos de violência contra a mulher, reclamações sobre os serviços de rede, orienta sobre direitos e acerca dos locais onde a vítima pode receber atendimento. A denúncia será investigada e a vítima receberá atendimento necessário, inclusive medidas protetivas, se for o caso. A denúncia pode ser anônima. A Central funciona diariamente, 24 horas, e pode ser acionada de qualquer lugar do Brasil. 

Defensoria Pública – Disque 0800-644-5556

  • Para orientação quanto aos seus direitos e deveres, a vítima poderá procurar a Defensoria Pública, na sua cidade ou, se for o caso, consultar advogado(a).

Centros de Referência de Atendimento à Mulher

  • Espaços de acolhimento/atendimento psicológico e social, orientação e encaminhamento jurídico à mulher em situação de violência. 

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