Luto
"A lembrança vem a todo segundo, tem hora que a gente desaba", diz pai de jovem morto há dois meses após abordagem policial em São Gabriel
Em 19 de agosto, corpo de Gabriel Marques Cavalheiro era retirado de um açude, na localidade de Lava Pé; algumas perguntas seguem sem resposta
Na tarde de 19 de agosto, o corpo de Gabriel Marques Cavalheiro era retirado de um açude, na localidade de Lava Pé, interior do município de São Gabriel. O jovem de 18 anos que sonhava ser militar estava desaparecido havia uma semana, após ser abordado por uma equipe de policiais militares. A localização do corpo só deu ainda mais volume aos questionamentos que a família do jovem já fazia desde o dia 12 de agosto, quando Gabriel não voltou para casa e foi dado como desaparecido.
Dois meses depois, o relato dos pais de Gabriel, Anderson da Silva Cavalheiro, 40, e Rosane Marques, 48, indicam que tudo ainda está fora de lugar. A dor do casal não permite o retorno à rotina de trabalho nem o sono sem ajuda de remédios.
A única coisa que permanece igual é o quarto de Gabriel, um espaço intocado na casa, onde os pais ainda não conseguiram entrar.
— Eu só vou até a porta, mas não consigo entrar. Está tudo dele ali, o cheiro, as coisas. Eu ouço o barulho da porta do quarto dele, vejo a xícara que ele usava para tomar café, a parte do sofá que deitava a cabeça. É tão recente que parece que a qualquer momento ele vai surgir e dizer: "Mãe, voltei". É tão difícil aceitar que ele foi embora de um jeito tão brutal. A saudade, a falta, é muito grande. É uma dor que arde o peito o tempo todo — diz a mãe.
O casal precisa se deslocar com frequência entre a casa onde vive, em Guaíba, e a residência de familiares, em São Gabriel, para acompanhar o caso. Após as viagens, o reencontro com o lar onde antes Gabriel vivia com os pais e as duas irmãs é pesaroso a ponto de a família colocar o imóvel à venda.
— Aqui em casa, a lembrança vem a todo segundo, toda hora, 24 horas por dia. Tem hora que a gente desaba. Cada hora um de nós está chorando, e o outro tenta ficar firme. É algo muito doloroso. Um vazio que nunca vai se preencher — conta Anderson.
Para dar conta dos custos de deslocamento entre as cidades e demais gastos, a família criou uma vaquinha online. Segundo o casal, eles não receberam nenhum tipo de ajuda do governo do Estado até o momento — GZH questionou a Secretaria da Segurança Pública do Estado, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem, na noite de sexta-feira (14). Os pais afirmam também não receber informações sobre o andamento do caso.
— Não tivemos mais nenhum contato, nenhuma resposta de ninguém. Falaram que iriam tomar providências, mas eles (os três PMs envolvidos) seguem brigadianos, não foram exonerados. A Brigada Militar não nos informa o que vem sendo feito. Mas a gente precisa se manter firme. Vou seguir falando sobre o meu filho até que a Justiça seja feita — diz Anderson.
Na quarta-feira (12), quando se completaram dois meses da morte de Gabriel, parentes e amigos do jovem se reuniram em uma vigília em frente a uma igreja em São Gabriel, para lembrar a perda e pedir Justiça.
GZH fez contato com a Brigada Militar para questionar pontos do caso. A instituição informou apenas que está em andamento o processo que avalia a permanência ou não dos três PMs na instituição.
A investigação
De acordo com a investigação do caso, Gabriel morreu após ser brutalmente agredido durante uma abordagem policial em São Gabriel. Depois, foi colocado em uma viatura contra a vontade. Uma semana depois, o corpo dele foi encontrado dentro de um açude, a dois quilômetros de onde ocorreu a abordagem. O laudo de necropsia do Instituto-Geral de Perícias (IGP) apontou que Gabriel morreu por hemorragia interna causada por uma agressão na coluna cervical. Ele também tinha um hematoma na cabeça.
A abordagem foi feita por três policiais militares: os soldados Raul Veras Pedroso e Cléber Renato Ramos de Lima, e o segundo-sargento Arleu Júnior Cardoso Jacobsen. Eles estão presos desde 19 de agosto por determinação da Justiça Militar. Os três foram denunciados pelo Ministério Público e viraram réus na Justiça comum e na militar.
Segundo a polícia, durante a abordagem, Gabriel teria sido agredido com um tapa, depois caiu e bateu com a cabeça num paralelepípedo. Na sequência, teria sido agredido com um cassetete e então posto contra a vontade na viatura. A investigação concluiu que o crime foi motivado porque Gabriel estaria embriagado e teria se dirigido a um policial, chamando-o de fraco.
Processo em andamento
O processo sobre o caso está em andamento em duas esferas diferentes: na Justiça comum (que tem competência para julgar casos de crime doloso contra a vida de civis) e na militar (que julga crimes praticados por militares em serviço).
Na Justiça comum, os três policiais respondem por homicídio doloso triplamente qualificado (motivo fútil, meio cruel e recurso que dificultou a defesa da vítima). Na denúncia do Ministério Público, a promotora de Justiça Lisiane Villagrande Veríssimo da Fonseca descreve que os policiais militares em serviço, durante patrulhamento ostensivo, abordaram a vítima, "que foi algemada e brutalmente agredida com golpes de cassetete na região cervical". Na sequência, conforme o órgão, os denunciados colocaram o jovem no interior da viatura e se deslocaram até a localidade de Lava Pé, local em que ocultaram o corpo de Gabriel. Essa denúncia foi feita com base no indiciamento da Polícia Civil.
Já na Justiça Militar, os PMs respondem por ocultação de cadáver e falsidade ideológica (em razão de informações falsas que teriam sido inseridas no boletim de ocorrência). A denúncia foi feita pelo promotor de Justiça Diego Corrêa de Barros, do MP, que tem atribuições junto à Justiça Militar. Segundo ele, após a morte da vítima, o trio de policiais ocultou o corpo de Gabriel levando-o até o interior do município e escondendo-o dentro de um açude.
Além disso, para o MP, os acusados fizeram constar no boletim de ocorrência declaração falsa de que "a guarnição abordou o Sr. Gabriel, que consultado estava sem novidades, sendo então orientado e liberado", quando, na verdade, havia sido agredido, algemado, preso e posto no interior da viatura pelos denunciados, diz a acusação.
Perguntas em aberto
Dois meses após a morte do jovem, algumas perguntas seguem sem resposta sobre o caso.
Um dos pontos que ainda não foi esclarecido é como Gabriel teve o corpo levado até o açude, já que a viatura onde estavam os PMs que abordaram o jovem fez uma parada de cerca de um minuto e 50 segundos no local, o que não seria suficiente para que a ação fosse realizada.
No dia da denúncia, o promotor Barros afirmou que no inquérito existem provas da participação dos denunciados nesse crime, mas não detalhou quais elementos são esses, em razão do sigilo do caso. O promotor recordou ainda que a perícia apontou que não houve afogamento e que o corpo de Gabriel foi inicialmente deixado numa posição e, depois, colocado numa segunda posição.
Outro ponto a ser esclarecido é se mais pessoas estão envolvidas ou não na morte de Gabriel — até o momento, as autoridades afirmam que apenas os três PMs são os responsáveis pelo caso. Para confirmar isso, algumas perícias ainda são aguardadas, como a que fará a extração de dados de celulares dos PMs.
Além disso, o Instituto-Geral de Perícias (IGP-RS) pretende fazer a reprodução simulada dos fatos, popularmente chamada de reconstituição, até o fim de novembro. A análise ajudará a entender a dinâmica do crime e é considerada pelo MP complementar ao caso.
Sem data para julgamento
Em nenhuma das esferas há ainda previsão de data para o julgamento dos PMs. De acordo com o Tribunal de Justiça do Estado (TJ-RS), o processo está na fase de citação e apresentação de defesa pelos réus.
Na Justiça Militar, a oitiva do pai de Gabriel está marcada para 1º de novembro, em Porto Alegre. Depois, no dia 4, serão ouvidas demais testemunhas em São Gabriel, onde estão previstas 10 oitivas. Segundo a instituição, são organizados os deslocamentos e os espaços físicos para a realização das oitivas.
Contrapontos
O que diz a defesa do segundo-sargento Arleu Júnior Cardoso Jacobsen
"Encerramos uma fase importante em que discutimos os termos da denúncia acusatória, tanto na justiça estadual como militar. Formulamos requerimentos de provas e esclarecimentos periciais que com certeza irão elucidar o caso, em especial na comprovação da não participação do nosso constituinte em qualquer fato criminoso. Continuamos e agora buscaremos a demonstração judicial da inocência do sargento Jacobsen no óbito de Gabriel", disse o advogado Ivandro Bitencourt Feijó em nota.
O que diz a defesa dos soldados Raul Veras Pedroso e Cléber Renato Ramos de Lima
"A defesa dos soldados afirma que ambos são completamente inocentes das acusações e que durante a instrução processual momento o qual a prova vai ser produzida tudo ficará esclarecido! Ambos soldados estão sofrendo uma grande injustiça!", disse o advogado Jean Severo em nota.