Inteligência policial
Crime organizado é responsável por oito de cada 10 homicídios em Porto Alegre
Levantamento inédito considera casos do primeiro semestre de 2023; 20% dos assassinatos são motivados por questões pessoais — ciúmes e brigas entre vizinhos, por exemplo
De cada 10 homicídios registrados em Porto Alegre no primeiro semestre de 2023, oito foram decorrentes do crime organizado. As demais mortes violentas — duas a cada 10, ou cerca de 20% — tiveram motivações pessoais, como conflitos entre conhecidos, vizinhos ou ciúmes. Os dados estão em um levantamento inédito do Departamento de Homicídios da Capital, criado em 2013.
O estudo, que utilizou método científico, encomendado pela diretor do departamento, delegado Mario Souza, tem auxiliado no combate a este tipo de delito. Os dados servem para direcionar operações, investigações e até mesmo verbas ou pessoal.
Dos 134 homicídios dolosos, com intenção de matar, ocorridos na cidade entre 1º de janeiro e 30 de junho, 107 (79,85%) têm ligação com o crime organizado, principalmente ligado ao tráfico de drogas e armas. Outras 27 mortes (20,15%) tiveram motivação interpessoal.
Souza diz que o estudo considera, por enquanto, apenas dados de Porto Alegre, por ser a capital do Estado, a sede do Departamento e também por ter mais homicídios do que as demais cidades gaúchas em números absolutos — ou seja, sem considerar a proporcionalidade em relação ao número de habitantes.
A pesquisa foi iniciada em fevereiro, a partir de uma disparada no número de mortes e a percepção de que era preciso fortalecer o trabalho de inteligência para investigar e prevenir assassinatos.
Além disso, pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou, neste mês, Porto Alegre como a capital mais violenta das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Para o diretor do Departamento de Homicídios, apesar deste cenário, a situação vem mudando e os números de assassinatos tiveram redução a partir de março, com pequeno aumento em junho.
Dos 18 homicídios relacionados ao crime organizado registrados na Capital em junho, três ocorreram num intervalo de cerca de 24 horas. Duas pessoas foram mortas a machadadas dentro de uma casa na Vila Jardim, Zona Norte, no dia 19. No dia seguinte, um homem de 35 anos foi assassinado a tiros no bairro Bom Jesus, Zona Leste. Conforme a Polícia Civil, o crime teria sido uma retaliação ao duplo homicídio. As três mortes teriam relação, segundo apurado pelo Departamento de Homicídios, com a disputa por pontos de venda de drogas.
Pesquisa pode ser ampliada
Segundo Souza, a estratégia adotada, baseada em inteligência e investigação, resultou em um mapeamento contínuo dos homicídios, ocorrência por ocorrência, e irá prosseguir no segundo semestre, podendo ser estendida para a Região Metropolitana no próximo ano.
— O trabalho mostra o que todos já sabem: a maioria das mortes é decorrente, sim, do crime organizado. Mas agora se tem isso comprovado cientificamente, se tem números, sendo que a diferença é o fato de se poder direcionar ações conforme o tipo de apuração. Apesar deste levantamento inédito, lembro que todo o tipo de crime de homicídio é nossa prioridade e todos os casos são investigadas, sem distinção — diz o diretor.
Com o trabalho de inteligência, Souza projeta que o número de homicídios, que cresceu entre 2021 e 2022, registre queda a partir de julho.
Identificação de mandantes
O Departamento de Homicídios prendeu 454 suspeitos de assassinatos e tentativas de homicídio na Capital no primeiro semestre de 2023. O diretor diz que, com a intensificação do trabalho para entender o contexto das mortes, foi possível chegar não só aos executores, mas aos mandantes. A análise também tornou possível a realização de ações preventivas e o aumento de prisões em flagrante em crimes de homicídio, o que não é comum.
— A autoria deste tipo de homicídio, com esta motivação ligada ao crime organizado, é mais difícil de se apurar, mas estamos conseguindo a identificação de todos os envolvidos com o aumento da responsabilização de toda a cadeia criminosa ligada a uma morte, do atirador ao que deu ordem, muitas vezes de dentro da cadeia. O estudo legitima a nossa metodologia, que tem como foco as organizações criminosas — explica o diretor.
Segundo Souza, em todas as mortes relacionadas ao crime organizado contabilizadas no estudo e cujos inquéritos estão concluídos, as vítimas também eram pessoas envolvidas com a criminalidade. Há dois casos que ainda são investigados, em que há indicativo de que os autores sejam integrantes de facções, mas nos quais as vítimas eram inocentes: uma morte por bala perdida e o ataque em que morreram dois irmãos adolescentes no bairro Cascata. Portanto, das 107 vítimas, três não teriam envolvimento com o crime.
Para sociólogo, trabalho precisa ser intensificado
O sociólogo Rodrigo Azevedo, coordenador do Observatório de Segurança Pública da Escola de Direito da PUCRS, diz que este levantamento da polícia confirma uma hipótese que vem sendo trabalhada e evidenciada também por estudos no meio acadêmico. Segundo ele, já há consenso sobre a vinculação com as facções na maioria dos homicídios no Rio Grande do Sul, principalmente na Região Metropolitana.
— Apesar do trabalho apontar homicídios decorrentes do crime organizado, eu prefiro chamar de dinâmicas envolvendo mercados ilegais e facções criminais — explica o sociólogo.
Azevedo destaca que estas dinâmicas têm sido objeto de estudo de pesquisadores desde os anos 1990. Para ele, os casos com motivação pessoal são mais fáceis de investigar, porque, como o autor é alguém próximo da vítima, a responsabilização criminal é praticamente garantida.
No caso das mortes envolvendo grupos criminosos, o sociólogo ressalta a importância do trabalho de inteligência do Departamento de Homicídios, porque a identificação da autoria é mais difícil e muitas ocorrências ficam até sem solução.
Por outro lado, Azevedo entende ser importante aprofundar mais este trabalho e até relacionar os dados da polícia com outros, por exemplo, do Instituto Sou da Paz, que apura as taxas de esclarecimento de homicídios no Brasil. Segundo o pesquisador, o levantamento do Sou da Paz divulgado em 2022, com dados referentes a 2019, mencionou a baixa confiabilidade das informações disponíveis no Rio Grande do Sul, e isto precisa ser cobrado da polícia. Até porque não basta esclarecer o crime, é preciso dar condições para o oferecimento da denúncia pelo Ministério Público, para que a investigação vire um processo judicial, permitindo a responsabilização dos autores.
Políticas públicas e prevenção
O sociólogo diz que o papel das polícias — ostensiva, investigativa e penal — na prevenção deste tipo de crime ainda é limitado, tanto nas ocorrências relacionadas ao crime organizado, quanto nas com motivações particulares. Segundo ele, é preciso ir além do mapeamento destes grupos nos presídios e nas ruas, onde já atuam.
— É preciso lembrar sempre a importância de efetivar um trabalho paralelo ao da polícia que envolva estas pessoas, já quando adolescentes e muitas vezes em situação de risco. Elas não conseguem ir à escola, não têm acompanhamento da polícia e se tornam presas fáceis destas facções. Precisamos de políticas públicas e também de segurança — explica Azevedo.
O sociólogo diz que estas medidas devem ser estendidas também para os jovens que já cometeram atos infracionais, oferecendo a eles garantias de vida, para que se desliguem das organizações criminosas.