Polícia



Sala Elza Soares

Em cinco meses, sala especializada atendeu 80 mulheres vítimas de violência no Hospital Cristo Redentor

Número representa 24% das 331 pacientes que foram atendidas por algum tipo de violência na rede do Grupo Hospitalar Conceição. Desafio está em reverter as 44% que não aceitaram ser acompanhadas ou não foram localizadas

23/08/2024 - 14h03min


Kathlyn Moreira
Kathlyn Moreira
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Kathlyn Moreira / Agencia RBS
Espaço ganhou o nome da cantora que morreu em 2022 e foi vítima de violência doméstica.

Romper com um ciclo marcado por ameaças, ofensas e violência ainda é um desafio para muitas mulheres. Até que o silêncio, a vergonha de buscar ajuda e o medo sejam vencidos, há um processo marcado pela dor e por muitos traumas. Pode levar um tempo até que a vítima entenda que não precisa enfrentar tudo isso sozinha.

Foi o que aconteceu com uma jovem de Porto Alegre, que conta que o então companheiro, com quem ficou seis anos casada, a agrediu com um soco no rosto. Ela diz que já havia passado por outras agressões, inclusive quando estava grávida.

— Ele estava desempregado. Então, num dia, quando saiu para procurar emprego, eu peguei uma mochila do meu filho, coloquei uma muda de roupa ali, uma fralda, um lenço, coloquei uns dois, três brinquedinhos, umas bolachinhas... Peguei a mochila, o bebê no colo, chamei um aplicativo e fui para o Palácio da Polícia. No que ele saiu, eu já vi tudo isso e fui rápido, para não ter tempo de ele chegar — relembra.

Para acolher pessoas como ela, uma sala foi montada dentro do Hospital Cristo Redentor, na zona norte da Capital, como parte de uma rede de assistência humanizada do Grupo Hospitalar Conceição (GHC). A meta é ajudar mulheres em situação de violência, como a doméstica, ou relacionada a outros contextos, como tráfico de drogas, assalto ou até bullying, por exemplo.

O depoimento acima, da jovem que saiu com o filho para registrar a ocorrência policial, é de uma das pessoas acompanhadas pela iniciativa — para onde foi encaminhada pela unidade de saúde de referência. Por questão de segurança, não divulgaremos seu nome real e passaremos a chamá-la de Elza, o mesmo nome da sala.

A homenagem ao espaço, inclusive, ocorreu porque a cantora Elza Soares, que morreu em 2022, sofreu violência doméstica durante o relacionamento de 16 anos com o ídolo do futebol Mané Garrincha, tornando-se um símbolo de combate ao machismo.

A sala é bem diferente do ambiente mais sóbrio e de tons neutros dos corredores do hospital. Logo que a porta se abre, paredes coloridas em tons de roxo e lilás, e uma imagem pintada de Elza com o verso "Minha voz uso para dizer o que se cala" encorajam que ali é um ambiente seguro e que não há mais motivo para perpetuar o silêncio e o sofrimento.

— Em casa, assim, eu não costumo falar no assunto, nem pensar, porque daí as emoções não vêm, né? E quando eu venho aqui e daí, eu falo, a emoção vem, tudo sai pra fora — confessa Elza, com voz embargada, no dia em que acompanhamos seu atendimento.

O acolhimento faz parte da Rede GHC de Assistência Humanizada às Mulheres em Situação de Violência (Re-Humam). A inauguração oficial da sala ocorreu em 25 março deste ano mas, desde o começo daquele mês, a equipe já estava atuando no projeto.

Além do atendimento às mulheres, a Re-Humam também faz a capacitação das equipes e a qualificação das notificações de violência para melhorar o trabalho de busca ativa, que a principal forma de chegar até as vítimas.

24% das mulheres encontradas no sistema aceitaram atendimento da rede

Em cinco meses, a rede acolheu 80 de 331 pacientes identificadas pelo sistema, o que equivale a 24% dos casos de violência envolvendo mulheres registrados no GHC no período de março a julho (leia mais abaixo). Outras 104 mulheres (31%) estão sendo acompanhadas por outro serviço de assistência, como adolescentes ou pacientes que já recebem atendimento por unidades de atenção básica.

Ainda assim, 106 mulheres não aceitaram ajuda ou não compareceram aos agendamentos, algo que ainda representa uma barreira a ser superada.

"Falar sobre a violência, tu assumir que está sofrendo violência, tu te sente obrigada a fazer alguma coisa com isso. Então quando tu passa a mão por cima e esquece, e não pensa nisso, é mais fácil de lidar. Agora quando a mulher assume: "não, eu sofri violência e eu estou indo num local que vai me atender", eu tenho que tomar uma atitude".

DÉBORA ABEL

assistente social e coordenadora da Sala Elza Soares

Nos casos em que a vítima não aceita o serviço, é encaminhada uma notificação para a unidade de saúde de referência daquela paciente para que tome conhecimento da situação. Há também um cuidado em contatar essa mulher e explicar que o apoio seguirá disponível, caso mude de ideia.

— Na primeira vez, eu ainda estava meio assim... "ai meu Deus, eu vou, não vou"... Na primeira, eu não vim, a gente remarcou. Na segunda, eu também meio que fugi. Aí depois, se não me engano, a (assistente social) Débora me mandou mensagem. Eu não me arrependi de ter vindo, porque consegui chorar, colocar tudo pra fora — relembra Elza, sentada na poltrona da sala.

O levantamento da rede ainda aponta que 41 vítimas (12%), não foram localizadas pelo telefone fornecido. Mesmo assim, os registros são encaminhados para a unidade de saúde de referência e há um esforço para qualificar os cadastros, evitando que isso aconteça novamente.

Se somados esses dois contextos, das mulheres não encontradas e das que não quiseram atendimento, os dados mostram que 44% das pacientes vítimas de algum tipo de violência podem estar sem receber ajuda.

Em cinco meses, 167 mulheres foram vítimas de violência doméstica

De março a julho deste ano, 331 pacientes acima de 13 anos foram socorridas por algum tipo de violência em unidades do Grupo Hospitalar Conceição, em Porto Alegre:

  • 69% (227) foram agredidas fisicamente
  • 20% (66) foram vítimas de violência sexual
  • 11% (38) tiveram registro de outro tipo de violência, podendo ser psicológica, patrimonial ou até bullying, no caso de adolescentes.

Considerando o tipo de violência, a rede constatou que cerca de metade das 331 mulheres (167) sofreu violência doméstica, que é praticada por parceiros íntimos ou parentes.

A escolha do Hospital Cristo Redentor para instalar a Sala Elza Soares não foi ao acaso. A instituição é a que atende o maior número de violências no âmbito doméstico.

Das 331 mulheres contabilizadas pela rede do GHC, 66% foram atendidas no hospital, que tem por característica receber casos de lesões mais severas, como ferimentos por armas ou queimaduras. Todas essas 219 pacientes sofreram violência física, e 53% delas, a maioria portanto, se enquadram nos casos de violência doméstica, ou seja, tiveram agressores próximos a elas.

— Teve um dia que o meu ex-marido me mandou várias mensagens, ligações e, na hora do desespero, eu não sabia o que fazer, mandei WhatsApp pra elas e me responderam (...). Eu estava com muito medo por causa do meu filho. Ele estava me ameaçando, e o meu medo era se ele pegasse o menino e fizesse mal, uma coisa pra me ferir — desabafa Elza.

Nessas situações, além de oferecer um ambiente seguro e apoio emocional, a equipe da Sala Elza Soares também consegue dar assistência jurídica para as usuárias, fazendo parcerias com a Defensoria Pública do Estado, como no caso de Elza.

— Nesse caso específico, a assistente social fez contato com o Núcleo de Defesa da Mulher, da Defensoria Pública do Estado, buscando orientação jurídica, mas especialmente uma atuação para que a medida protetiva deferida à mulher fosse também estendida aos filhos. Isso porque existia especialmente uma violência psicológica no núcleo familiar. E a atuação da Defensoria, então, foi nesse sentido, buscando e postulando a extensão dessa medida protetiva, o que acabou sendo deferido — explica a dirigente do Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública, Paula Britto Granetto.

A Defensora Pública salienta que o Núcleo de Defesa da Mulher mantém esse contato com a equipe da Re-Humam para que as mulheres tenham consciência de seus direitos e possam garantir sua proteção e a dos filhos, quando necessário.

—  Justamente em situações em que eles necessitam de uma orientação jurídica, de encaminhamento, por exemplo, para ações específicas de saúde, para ações de guarda, para ações de divórcio, de creche, tudo que pode auxiliar aquela mulher que está em atendimento e acolhimento por eles, juridicamente, eles pedem esse auxílio da Defensoria Pública numa forma de parceria e de rede de apoio a essa mulher — esclarece Paula.

O atendimento na Rede GHC de Assistência Humanizada às Mulheres em Situação de Violência é dedicado às pacientes que dão entrada no sistema pelos hospitais Cristo Redentor, Conceição, Fêmina, na UPA Moacyr Scliar e em 12 postos de saúde (vinculadas ao GHC), além do serviço de saúde comunitária do grupo hospitalar.

Kathlyn Moreira / Agencia RBS
Débora é assistente social e coordenadora da Sala Elza Soares.

Nas unidades de saúde, cartilhas são distribuídas para divulgar a existência do serviço e até ajudar mulheres a compreenderem que podem estar passando por uma situação de abuso sem se dar conta.

—  Tem um caso aqui, que a gente está atendendo ainda, que é bem recente, que o filho de oito anos foi com ela ao posto de saúde e ele viu aquela cartilhazinha branca ali, sabe? E ele entregou pra mãe, dizendo "mãe, acho que isso é pra ti". E aí quando ela leu é que se deu conta de que estava sofrendo a violência — conta a assistente social.

Segundo a coordenadora do projeto, são esses relatos que demonstram a importância de aprimorar cada vez mais o serviço, para que mais "Elzas" possam ser beneficiadas e se sintam seguras para usar a sua voz e dar um basta a todas as agressões.

— Se a mulher está receptiva, a gente sempre termina o atendimento com um abraço. Tu não está sozinha, né? Chama a gente no WhatsApp, se quiser conversar, vem aqui, mesmo que não esteja com a hora marcada. Então, a gente sempre se coloca à disposição — enfatiza Débora.

Por que a sala se chama Elza?

A Sala no Cristo Redentor se chama Elza Soares, em homenagem à artista, símbolo de luta contra o machismo e racismo. O relacionamento de 16 anos que a cantora manteve com o ídolo do futebol Mané Garrincha foi marcado por episódios de violência doméstica, segundo a cantora, que morreu em janeiro de 2022.

A história é contada no documentário Elza & Mané — Amor em linhas tortas, da Globoplay. As agressões foram retratadas também no disco A mulher do fim do mundo, no qual Elza interpretou a música Maria da Vila Matilde. "Cadê meu celular? Eu vou ligar para o 180. Vou entregar teu nome e explicar meu endereço. (…) ‘Cê’ vai se arrepender de levantar a mão pra mim", cantou Elza.

Como buscar ajuda

Se a violência estiver acontecendo, a vítima ou qualquer outra pessoa deve ligar imediatamente para o 190. O atendimento ds Brigada Militar é 24 horas em todo o Estado.

Para denunciar casos de violência contra a mulher contate o Disque-Denúncia pelo telefone 181.

  • Centro de Referência em Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul – 0800-644-5556
  • Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher – (51) 3288-2172
  • Centro de Referência de Atendimento à Mulher Vítima de Violência (Cram) - (51) 3289-5110, (51) 3289-5101 e (51) 3289-5117
  • Centro Estadual de Referência da Mulher "Vânia Araújo Machado" (CRMVAM) - 0800-541-0803

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