Vale do Paranhana
Sete indícios que levaram a polícia e o MP a apontar a mãe como suspeita de matar gêmeas em Igrejinha
Manuela e Antonia Pereira, seis anos, morreram com intervalo de oito dias de diferença. Gisele Beatriz Dias, 43 anos, é ré pelos assassinatos das filhas, mas perícia não apontou causa da morte


As irmãs Manuela e Antonia Pereira nasceram em 30 de julho de 2018 e morreram com apenas oito dias de diferença, dentro da casa onde viviam com os pais, em Igrejinha, no Vale do Paranhana. As mortes, em circunstâncias semelhantes, levaram à suspeita de que as duas pudessem ter sido vítimas do mesmo crime. A mãe, Gisele Beatriz Dias, 43 anos, está presa e se tornou ré pelos assassinatos das meninas — a mulher nega que tenha matado as crianças.
Foi a morte de Antonia, em 15 de outubro do ano passado, que fez a polícia suspeitar que pudesse estar diante de um crime. Em 7 de outubro, Manuela havia morrido, e teve a causa apontada como hemorragia pulmonar. As meninas viviam com a mãe e o pai, Michel Persival Pereira, 43 anos, no bairro Morada Verde. Desde o início, uma das principais suspeitas era de envenenamento, apontado inclusive pela equipe médica como uma possibilidade.
O pai das gêmeas foi ouvido no inquérito como testemunha, não sendo considerado suspeito. Ainda em outubro, a Polícia Civil apontou que ele mantinha relacionamento afetuoso e comprometido com o bem-estar das filhas. Já a mãe, devido ao histórico e por ser, segundo a apuração, a última a estar com as filhas, passou a ser investigada como principal suspeita. Gisele foi presa em outubro, vindo a ser indiciada e denunciada ainda em dezembro. A polícia optou por concluir o indiciamento antes da conclusão das perícias.
No entanto, as análises realizadas pelo Instituto-Geral de Perícias (IGP) não identificaram, entre centenas de substâncias testadas, veneno ou medicamento que pudesse ter provocado a morte das irmãs. A acusação sustenta que Gisele pode ter sufocado as filhas, usando algum objeto macio, como um travesseiro, ou mesmo saco plástico, por exemplo.
A defesa, por outro lado, argumenta que existem dúvidas acerca da causa das mortes e se elas realmente morreram pelo mesmo motivo.
Nesta semana, o Tribunal de Justiça negou o pedido de soltura de Gisele. Em sua análise, a desembargadora Viviane de Faria Miranda, relatora do pedido, afirmou que, embora não tenha sido identificada substância que possa ter causado a morte das meninas, existem outros elementos e provas que devem ser considerados.
Zero Hora elencou sete pontos indicados pela investigação da Polícia Civil e pela acusação, realizada pelo Ministério Público, que levaram a mãe a se tornar suspeita do crime. A reportagem também ouviu o advogado José Paulo Schneider, responsável pela defesa de Gisele, que apresentou a versão da mãe.
1 – Semelhança das mortes
Um dos pontos levantados pela acusação é o fato de as vítimas terem morrido de forma idêntica, em um curto espaço de tempo, tendo ambas sido encontradas sem vida e urinadas na cama, com sangramento e hemorragia, mortas por asfixia.
No caso de Manuela, o pai relatou à polícia que saiu para trabalhar no início da manhã e que, menos de uma hora depois, recebeu ligação de Gisele, dizendo “A Manu morreu”. Michel contou que foi até a casa e encontrou a filha deitada na cama, com a boca e mãos roxas, sangue no nariz e espuma na boca. Então, pegou a menina no colo e levou até o hospital.
Gisele disse ter percebido que a filha estava morta no momento em que levou uma mamadeira para ela. Narrou que sacudiu a criança e a menina não reagiu. A mãe disse que pouco antes “ouviu um gritinho” de Manu, mas que isso era normal, porque as irmãs costumavam brincar. A necropsia apontou a possibilidade de intoxicação por substância tóxica, tendo como causa do óbito a hemorragia pulmonar.
No mesmo laudo, os peritos afirmam que "não foram encontradas lesões em mucosa labial que levasse ao diagnóstico de sufocação direta por obstrução de orifícios respiratórios". Logo depois, ponderam, afirmando que "esses sinais podem não estar presentes quando a obstrução dos orifícios se dá por objeto macio ou por saco plástico envolvendo a cabeça".
Oito dias depois, em 15 de outubro, Antonia foi encontrada na cama pelo pai. Michel relatou que a mulher pediu que ele levasse uma mamadeira para a filha, por volta das 10h, e que neste momento encontrou a filha roxa, sem sinais vitais. O pai acionou os bombeiros, que levaram a menina até o hospital.
A garota chegou à casa de saúde já morta, apresentando sangramento pela traqueia. No caso de Manuela, a perícia não conseguiu estabelecer a causa da morte, sendo considerada indeterminada. Os peritos concluem no laudo que "do mesmo modo como não é possível excluir que a morte tenha sido decorrente de uma causa natural que não deixou vestígios, também não é possível à presente perícia descartar a hipótese de uma causa de morte violenta, como por exemplo pela administração de substâncias não detectáveis nos exames laboratoriais realizados".
O que diz a defesa:
“Desde o início, a investigação e o MP trataram as mortes como ocorridas em circunstâncias idênticas. No entanto, as necropsias demostram que isso não é verdade. A Manuela teve hemorragia pulmonar e parada cardiorrespiratória, não tendo sido localizado achados macroscópicos a indicar a real causa da hemorragia. Já em relação à Antonia a necropsia não identificou a causa, tendo descartado a hemorragia pulmonar. Em ambas não se descarta a morte natural por motivos indeterminados, bem como não se descarta eventual morte por envenenamento ou intoxicação. Porém, tanto nas necropsias como nos laudos do IGP, foram testadas mais de 350 substâncias e nada foi localizado no material genético das meninas. Logo, não é verdade que as concordâncias das mortes sejam idênticas."
2 – Última a estar com as filhas

Outro aspecto enfatizado pela investigação e pela acusação é que Gisele teria sido a última pessoa a estar com as filhas, antes de serem encontradas mortas. No caso de Manuela, o pai havia saído para trabalhar e no de Antonia, segundo a apuração, Michel foi comprar frutas. Em ambos casos, as meninas ficaram cerca de 40 minutos sozinhas com a mãe. Para a acusação, a mãe se aproveitou desses momentos em que estava sozinha para matar as filhas.
Na morte da segunda filha, o pai disse que saiu de casa pouco depois das 9h a pedido da mulher, e, logo após retornar, foi até o quarto de Antonia levar uma mamadeira e ela já estava sem vida. Nesse meio tempo, uma menina, vizinha da família, foi até o local pedir para brincar com Antonia. No entanto, o pai disse que ela estava dormindo.
Um pedreiro que estava na casa narrou que o pai teria levado a criança até o quarto para mostrar que a filha dormia. No entanto, em escuta especializada, segundo a polícia, a criança negou que Michel tenha ido com ela até o quarto, afirmando que foi sozinha e viu Antonia deitada na cama, aparentemente dormindo.
O que diz a defesa:
“Não é inteiramente verdade. No dia da morte de Antonia estavam em casa o pai, a mãe e um pedreiro. Momentos antes da morte, uma amiguinha de Antonia foi até a sua casa e conversou com o senhor Michel. Ela queria brincar. Michel, então, informa que Antonia estaria dormindo. A menor entra e na companhia de Michel visualiza Antonia “dormindo” e coberta. Esse fato é confirmado pela menor, por sua mãe e pelo pedreiro. Quem garante que neste momento Antonia já não estava morta? Para a defesa, esse elemento foi criado por Michel, que previamente preparou seus álibis, retirando-se do local do crime nos seus momentos.”
3 – Veneno de rato
Em 10 de janeiro, foram realizadas pesquisas pela conta Google de Gisele com intuito de saber se veneno de rato é capaz de matar uma pessoa e se fluoxetina dava sono. As pesquisas foram apagadas e localizadas somente após a quebra do sigilo.
No relatório de investigação, a polícia aponta que Gisele em 3 de outubro foi até o um mercado em Parobé, onde havia raticidas à venda, e que também foi a duas agropecuárias, em Igrejinha, em agosto. Numa das agropecuárias, a atendente confirmou que Gisele e o marido frequentavam o local e que Michel “havia comprado oito pacotes de veneno de rato no mês de setembro de 2024”.
Em julho do ano passado, três gatos filhotes mantidos pela família foram encontrados mortos no mesmo dia, um no quarto das meninas e dois na lavanderia. A denúncia aponta que Gisele teria, em tese, causado a morte dos animais. Os gatos eram de Manuela e Antonia. Esses elementos eram considerados importantes porque a polícia acreditava que pudesse ter havido envenenamento das vítimas, porém, a perícia não identificou, no entanto, nos corpos das meninas qualquer substância compatível com isso.
O que diz a defesa:
“As pesquisas feitas foram em janeiro. O fato foi em outubro. Além disso, não há nada que prove quem realmente fez essas pesquisas. O celular de Gisele era livremente utilizado por Michel. A maior prova disso é que as pesquisas sobre a morte misteriosa dos gatos da família foram feitas tanto no Gmail da Gisele quanto do Michel. Há pesquisas idênticas sobre os gatos em ambos Gmalis. Não há qualquer prova de que a pesquisa de veneno foi de fato feita pela Gisele. Porém, ainda que tenha sido feita por ela, é importante lembrar que ela tentou o suicídio. É curioso que as pessoas dão tanto valor para essa pesquisa dos venenos, mas não dão o mesmo valor para o fato de que há provas no inquérito de que o Michel comprou veneno de ratos. Quer dizer, a pesquisa pela minha cliente é algo indicativo de crime. E o fato de Michel ter comprado tais venenos? A pesquisa é de janeiro. A compra é de um mês ante das mortes. Dois pesos e duas medidas. É nítido o machismo estrutural nessa diferença de análise das condutas de um homem e de uma mulher doente”.
4– Ciúmes do marido
O casal tinha um histórico conturbado, com brigas e separações. Para a acusação, foi o ciúme excessivo que ela tinha do marido o que motivou o crime. Segundo o MP, Gisele, ao perceber que seu casamento estava chegando ao fim, matou as filhas com o objetivo de atingir Michel.
Quando ouvido, o marido confirmou que a mulher tinha ciúme dele e era controladora. O pai disse que na noite anterior à morte de Manuela discutiu com Gisele, após a mulher brigar com a filha, por ela comer rápido e regurgitar fora do vaso sanitário. A mulher teria ficado chorosa, e reclamado que o marido nunca ficava ao lado dela, e sempre do lado das filhas nos conflitos.
O que diz a defesa:
“A relação de ambos era caótica. Uma relação abusiva e de muito controle. Há notícias, sim, de ela ter e ciúmes e controle. Assim como há notícias de que o marido fazia diversos atos de violência psicológica e física contra ela. A filha mais velha do casal informa, no inquérito, que a mãe era obrigada a se prostituir pelo Michel”.
5– Câmera de segurança
Uma vizinha ouvida na investigação relatou que um dia antes da morte de Manuela Gisele relatou que tinham furtado R$ 600 de sua residência e devolvido posteriormente, deixando debaixo do portão. No entanto, Gisele teria dito que o criminoso havia danificado a câmera de vigilância no interior da casa e furtado o cartão de memória. A mesma vizinha relatou que Gisele aparentava frieza após a morte das filhas.
No entendimento da investigação, a mãe teria danificado a câmera com intuito de que suas ações não fossem filmadas. Michel relatou à polícia que verificou a câmera pelo aplicativo do celular e que a última imagem era a de Gisele. Para a polícia, esse é um indício de que ela que danificou a câmera e inventou a subtração e a devolução dos valores.
O que diz a defesa:
“Esse é um fato que ainda não questionei minha cliente. Essa situação, se aconteceu dessa forma, pode ser atribuída tanto a Gisele quanto a Michel. A acusação atribui somente à acusada. E, sim, a minha cliente não demonstrou abalo ou diferença com a situação. Ela é portadora de importante patologia psiquiátrica. Ela tem um importante transtorno de personalidade, tendo atentado contra a própria vida em diversas oportunidades. O machismo está em só exigirem dela. Segundo os vizinhos ouvidos, o pai das meninas também se mostrou indiferente e não se abalou. Isso não importa?”.
6 – Perturbação psicológica
Segundo a investigação, Gisele sofria com depressão grave, tinha histórico de tentativas de suicídio e chegou a ser internada em razão disso. Um dos motivos seria a perda do filho mais velho, num conflito do tráfico de drogas, em Santa Maria. A apuração apontou que a mulher relatava ouvir a voz de seu filho lhe chamando.
Uma das testemunhas ouvidas disse que, após a morte de Manuela, ouviu a mãe dizer que o filho estava chamando por ela e pelas duas irmãs. Quando aconteceu a morte da primeira filha, fazia cerca de 15 dias que Gisele havia recebido alta da internação psiquiátrica.
O que diz a defesa:
“É inegável que Gisele tenha importantes patologias psiquiátricas. Ela atentou contra a própria vida em várias oportunidades. Chegou a ser internada. A morte violenta do seu filho foi um episódio que desencadeou surtos psicóticos, sim. Ela recebeu o tratamento hospitalar e está em tratamento medicamentoso. Mesmo sendo possuidora de todas essas patologias, Gisele foi jogada numa prisão. O Estado até agora não se preocupou em analisar a sua real capacidade de compreensão de seus atos (imputabilidade criminal) e tampouco se preocupou em fornecer o tratamento médico adequado”.
7 – Histórico de abandono e falta de afeto
A investigação ouviu testemunhas que relataram que Gisele não demonstrava afeto pelas filhas e tinha conduta perversa. Segundo a acusação, em 2022 ela abandonou as gêmeas, sem fazer mais contato, e isso levou as crianças a serem acolhidas num orfanato.
Outra testemunha ouvida relatou que, no período em que vivia em Santa Maria, o casal mantinha as meninas num quarto, com salgadinhos e pizzas, e que “passavam o dia inteiro encerradas naquele quarto que nem um leãozinho na jaula”.
A acusação aponta que a mãe dizia que estava cansada de cuidar das filhas, já que elas davam muito trabalho. Uma das médicas psiquiatras relatou que a mulher “nunca demonstrava qualquer tipo de sentimento e afeto por elas, era muito fria, como se não se importasse com as crianças”.
O que diz a defesa:
“Esse histórico realmente é relatado nas provas. Mas é algo também atribuído ao pai. Aliás, o contexto familiar era muito tumultuado. Há notícias no inquérito que a acusada era vítima de violência doméstica pelo seu ex-marido. Há informações, inclusive, no sentido de que Michel obrigaria Gisele a se prostituir. Portanto, quando falamos de um abandono e falta de afeto, precisamos lembrar que estamos falando de uma mulher, que perdeu um filho (executado pelo tráfico), era ridicularizada e violentada pelo marido, sendo obrigada a vender o próprio corpo, e que, por todas essas mazelas, possui um transtorno de personalidade que lhe levantou a vários episódios de tentativa de suicídio, tendo sido internada. Como exigir afeto de um elemento feminino tão fragilizado e destruído?”