Infância ameaçada
Maior parte das crianças assassinadas no RS na última década foi morta dentro de casa e pelos próprios pais
Zero Hora analisou 153 casos de vítimas com idade até 12 anos. Mortes, antes cometidas pelo crime organizado, num contexto de violência urbana, reduziram-se nos últimos anos. Atualmente, na maioria das vezes, autores são mães, pais, padrastos e madrastas


Théo Ricardo Ferreira Felber, cinco anos, levava o segundo nome do pai e estava ansioso para visitá-lo em seu aniversário. Na escola que começara a frequentar no início deste ano, em Nova Hartz, no Vale do Sinos, o garoto, de sorriso largo, era um aluno tímido, mas afetuoso e adorava brincar com os colegas na pracinha. Em casa, trocava abraços e beijos com a mãe e a tia. Sempre que ganhava um brinquedo, dormia agarrado nele.
Na manhã de 25 de março, mesmo dia em que completara 40 anos, Tiago Ricardo Felber circulou com o menino pelas ruas de São Gabriel, na Fronteira Oeste, onde vivia. Na noite anterior, conforme ele mesmo confessou, havia tentado asfixiar o filho. Apesar do ataque, o garoto sobrevivera e estava desperto, sentado na cestinha da bicicleta. Próximo ao meio-dia, o pai apanhou Théo mais uma vez nos braços e arremessou o filho, ainda com vida, do alto de uma ponte. Desamparado, o garoto tombou sobre pedras do rio que sofre com a seca e morreu.
O ato brutal chocou o Estado nas últimas semanas e expôs uma violência que alcança um número ainda maior de crianças. Zero Hora mapeou e analisou 153 casos em que vítimas de até 12 anos foram assassinadas no RS ao longo da última década. Dos mortos, ao menos 70 tiveram as vidas encerradas pelos próprios pais, conforme as investigações.
As mães foram as que mais mataram, com 41 crimes, seguidas pelos pais, com 18. Em 11 mortes, pai e mãe são indicados como autores. O total é ainda maior quando se incluem padrastos e madrastas, responsáveis por 19 assassinatos. Outros familiares teriam sido autores em, ao menos, nove casos.
Quando se olha o histórico, percebe-se que, ao longo dos anos, houve redução nos assassinatos de crianças do Estado, mas a motivação se alterou, trazendo mais atenção aos crimes cometidos por quem deveria zelar por elas.
— Hoje a gente tem informação muito rápida na mão. Então, esses casos realmente têm se disseminado de maneira rápida. Esse tema precisa vir para o debate — afirma a promotora de Justiça do Rio Grande do Norte Erica Veras, que esteve no RS na semana passada para participar de um evento sobre violência doméstica familiar.
O mapeamento mostra que a maior parte das vítimas no ano passado foi morta em contexto de violência familiar. Enquanto os casos de violência urbana, como balas perdidas e execuções orquestradas pelo crime organizado, reduziram, os crimes cometidos dentro de casa não. Em 2015, 2016 e 2017, por exemplo, a violência familiar estava por trás de cerca de 40% dos assassinatos de crianças no Estado, enquanto em 2024 esse percentual saltou para 70%.
Essa violência tem despertado preocupação em autoridades de proteção às crianças. Coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Educação, Infância e Juventude do Ministério Público, a promotora de Justiça Cristiane Corrales capitaneia, desde o início deste ano, o Projeto Mãos Dadas, que busca principalmente fortalecer as redes de proteção em todas as regiões do Estado.
— Precisamos que os pais entendam seu papel. A educação parental é uma estratégia importante, e pretendemos que seja fomentada nos municípios. Muitos pais vêm de famílias onde já houve violência, desestruturadas, e isso pode redundar nessa violência. Quem foi vítima tende a utilizar esses meios de correção em situações que surgem entre pais e filhos.
Não podemos normalizar os maus-tratos. Pais muito jovens, que não têm estrutura emocional para as adversidades da paternidade, também podem agredir, descarregando isso nas crianças. Muitas vezes em crianças menores, que são ainda mais frágeis.
CRISTIANE CORRALES
Promotora de Justiça
Perigo dentro de casa
A análise dos casos traz outro fator alarmante, indicando ainda que a maior parte das crianças foi vitimada no local onde deveria estar protegida: a própria casa. Das vítimas, 111 foram assassinadas em suas residências.
— A violência contra as crianças e adolescentes dentro das famílias é um fenômeno multifatorial complexo, onde existe uma garantia do silêncio. As crianças, por vezes, sequer se entendem como vítimas. Isso vai causando um sofrimento psíquico muito grande. É fundamental interromper o ciclo da violência. É necessário investir na qualificação dos sistemas de informação. Tem muita subnotificação, mesmo na violência que deixa marcas, e muitas vezes é ignorada nos espaços públicos, nas escolas — afirma Fabio Vieira Heerdt, juiz do 2º Juizado Regional da Infância e Juventude de Porto Alegre.
Existe um fator cultural de aplicar um corretivo, entre aspas, por meio da violência física, com esse entendimento de que vai disciplinar. Ainda falta muito conhecimento, em todas as classes, sobre a dinâmica do desenvolvimento infantil. Os pais, os cuidadores, podem ter expectativas que não são reais em relação ao comportamento da criança, e isso leva à frustração e agressividade.
FABIO VIEIRA HEERDT
Juiz do 2º Juizado Regional da Infância e Juventude
O mapeamento demonstra ainda que as crianças menores representam a maior parcela daquelas que perdem a vida dessa forma violenta. Das 153 vítimas, 92 tinham até cinco anos de idade, como Theo, assassinado pelo pai.
Quase um terço do total — 50 crianças mortas — era composto de bebês com menos de dois anos. Em fevereiro do ano passado, um padrasto foi preso em Porto Alegre por matar a enteada de um ano.
— A violência contra as crianças é um fenômeno socioambiental, tem a ver com as condições de saúde mental e emocional da família. Adultos que sofreram violência na infância parecem ter mais chances de reproduzir comportamentos com seus próprios filhos. O estresse, a sobrecarga dos cuidadores, as dificuldades financeiras, desemprego, doenças mentais, uso de substâncias, isolamento social, falta de apoio, aumentam o risco da violência — alerta o juiz.
Chefe da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, o delegado Fernando Sodré considera que os casos têm gerado preocupação e que a prevenção passa por ações que envolvem outras áreas, além da segurança.
— O que a gente percebe é que parece que existe uma questão que envolve a dinâmica das famílias, a saúde mental das pessoas e conflitos intrafamiliares, que acabam levando a atos impensados e completamente sem sentido e agressivos, que vitimaram crianças nos últimos tempos. Então, acho que essa questão está muito mais na esfera sociopsiquiátrica, psicológica, do que necessariamente policial. Mas a nossa função é apurar todos os casos com o rigor que merecem. Temos localizado e responsabilizado autores. Mas que é preocupante, sem dúvidas, é — afirma.
As mortes violentas aconteceram de diferentes formas, sendo a maior parte a tiros, com 48 vítimas. É o caso de Lorenzo Rodrigues de Almeida, por exemplo, assassinado em 2023, com um tiro na cabeça, aos três anos, em Passo Fundo. Após um churrasco de domingo, a família do menino estava reunida com vizinhos, enquanto as crianças brincavam, quando um atirador chegou ao local disparando. O autor, segundo a investigação, não aceitava o término do relacionamento com uma mulher que estava no local.
— Esses conflitos de família, às vezes uma separação, uma disputa de guarda, de pensão alimentícia, separação de bens, são litígios altamente perigosos. Esses processos têm alto poder de trazer um mal maior, não só o feminicídio, como a morte de crianças, como forma de vingança. É preciso ter capacitação constante dos agentes para que a gente saiba como melhor encaminhar, como estabelecer protocolos de atendimento, para proteger essas mulheres e essas crianças — afirma a promotora de Justiça, Erica Veras.
Capacitação no mesmo salão de júris marcantes

Um dos encontros do Projeto Mãos Dadas, que busca articular a rede de proteção, foi realizado em Tramandaí, no Litoral Norte, no mesmo salão do Fórum onde, em abril do ano passado, a mãe e a madrasta do menino Miguel dos Santos Rodrigues, seis anos, foram julgadas e condenadas por torturar, espancar e matar o garoto, que teve o corpo esquálido transportado numa mala e arremessado no rio.
Foi ali também que, uma semana depois, o padrasto de Anthony Chagas de Oliveira foi condenado pela morte do menino. A criança de dois anos chegou a um posto de saúde com hematomas no rosto, braços e pernas, além de ter um dos braços quebrado.
— Nossa intenção é que casos como esses não se repitam, que não tenhamos ali mais júris como aqueles. Necessitamos que todos os atores da rede estejam articulados, fiquem mais atentos. A questão da saúde mental também precisa de melhoria de atendimento. Precisamos identificar se essa família tem risco maior. Nós recomendamos no projeto que os Conselhos Tutelares façam visitas domiciliares, assim como os agentes comunitários. Caso seja identificada alguma situação, é possível entrar com medida de proteção para essa criança e até levar para um acolhimento, se necessário — explica a promotora de Justiça Cristiane Corrales.
Por meio do projeto, o Ministério Público aposta na capacitação dos profissionais e na integração entre aqueles que fazem parte da rede que deve proteger crianças e adolescentes. Mobilizar a sociedade e articular os envolvidos, em diferentes áreas, para estarem atentos em todas as esferas de contato com a criança, como saúde, educação e assistência social, são premissas para tentar prevenir a violência dentro de casa, que pode resultar num crime ainda mais grave.
Além do Litoral, o projeto já circulou por Eldorado do Sul, Lajeado, Osório e São Leopoldo. A iniciativa será realizada nas próximas semanas em Porto Alegre, Canoas, Bagé e Guaíba, entre outros.
Os dados oficiais
Números da Secretaria de Segurança Pública (SSP) do Estado indicam redução nos casos de crianças vítimas de homicídios dolosos (quando há intenção de matar) na última década, quando foram registradas 202 vítimas. Em 2015, segundo a secretaria, foram 27 mortes; enquanto em 2024 foram nove homicídios dolosos.
No mapeamento, Zero Hora cruzou esses dados com outros casos, como maus-tratos ou tortura, que resultaram em morte da criança, por exemplo. A reportagem analisou o contexto de 153 crimes.
Os casos aconteceram em 76 municípios do RS, distribuídos por diferentes regiões. Porto Alegre é a cidade que concentra o maior número de casos, seguida, nesta ordem, por Alvorada, Canoas, Caxias do Sul, Novo Hamburgo, Pelotas, Gravataí, Santa Maria, Lajeado e Passo Fundo.
Formas de proteção
No âmbito da proteção, avanços como a Lei Henry Borel também são elencados como importantes. Essa lei tem medidas protetivas, sendo possível, por exemplo, afastar o agressor do lar, além de impedir aproximação, contato e frequentação de determinados lugares. São medidas que, por vezes, impedem crimes mais graves, como os homicídios.
— A lei tem espelho na Lei Maria da Penha e tem medidas protetivas contra pessoas que estão maltratando crianças dentro de casa. Tem políticas públicas específicas e como atores da rede devem atuar para proteger a infância. A criança tem direito de conviver com os pais e com a família toda, mas isso não é absoluto. Pode haver uma medida protetiva de restrição de visitas, de contato até com a criança e o adolescente, em razão da violência — diz a promotora Erica Veras.
— As crianças devem ser educadas sobre a violência intrafamiliar nas escolas. Muitas não percebem, não sabem que apanhar é errado. É preciso cultivar as práticas restaurativas de cultura de paz e diálogo, que devem ser estudadas como rotina pedagógica nas escolas. É uma forma eficaz de romper a barreira do silêncio — complementa o juiz Fabio Vieira Heerdt.
Psicólogo e psicanalista, Julio Walz falou à Rádio Gaúcha sobre casos em que pais matam filhos e sobre possíveis caminhos que podem ser percorridos pelas famílias, na tentativa de evitar desfechos violentos.
— A violência contra a criança e o adolescente não acontece de uma hora para a outra. A relação dos adultos com as crianças é uma relação tensa sempre. E a violência contra a criança é uma forma de acalmar a fúria dos adultos. Os adultos perderam a cabeça e, por isso, maltratam seres incapazes de se defender.
A coisa mais otimista que a gente pode querer de um ser humano é que seja honesto e verdadeiro, pelo menos com os que estão próximos. Se meu filho está com alguma dificuldade, preciso aceitar que exista. E o que me compete, como adulto cuidador, é conversar com ele, ver o que podemos fazer. A solução dos problemas não está fora, está no vínculo, na relação entre as pessoas.
JULIO WALZ
Psicólogo e psicanalista
Os impactos da perda

A Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Imigrante, em Nova Hartz, no Vale do Sinos, onde Théo estudava, vem buscando formas de lidar com a perda traumática. Um dia após a morte do menino, a comunidade escolar organizou uma homenagem ao garoto, com um balão branco — que levava o nome da criança — sendo solto. A violência cometida contra as crianças traz impactos futuros, o que também causa preocupação.
— Cada vez que uma criança é vítima de uma violência de grande proporção e até um óbito, impacta a família e também a comunidade escolar que ela frequenta. É preciso saber tratar esse luto com amigos e colegas dessa criança. Temos ali outras crianças também, passando por isso, sendo impactadas. Perder um colega de aula numa situação tão violenta é um trauma — diz a promotora Cristiane Corrales.
Como denunciar
- 190 – Brigada Militar
- 181 – Disque Denúncia
- 0800 642 6400 – Deca da Polícia Civil
- 0800 642 0121 – Departamento de Homicídios
- Disque 100 – Disque Direitos Humanos
Em Porto Alegre
- Ministério Público – (51) 99599-8869 (WhatsApp)
- Juizado da Infância e Juventude – (51) 3210-7373