Rede de proteção
Localização sigilosa e apoio multidisciplinar: como funcionam abrigos para vítimas de violência doméstica em Porto Alegre
Porta de entrada para atendimento imediato, Casa Betânia presta acolhimento por até 15 dias. Depois disso, mulheres podem ser encaminhadas à Casa Viva Maria, que oferece estadia por até três meses

Organizadas em endereços sigilosos para acolher mulheres que sofreram violência doméstica, as casas de acolhimento oferecem um espaço seguro para que as vítimas possam se reerguer longe dos agressores. No Rio Grande do Sul, são ao menos 15 abrigos com equipes especializadas, em 14 dos 497 municípios.
São espaços preparados para que a mulher tenha apoio emocional, atendimento de saúde, assistência jurídica e social, e fique com os filhos até ter autonomia para recomeçar por conta própria ou com apoio da família em outra residência.
A reportagem de Zero Hora recebeu autorização para conhecer os dois espaços que ficam em Porto Alegre: a Casa Betânia, inaugurada em novembro de 2022, e que funciona como uma casa de passagem imediata para as vítimas por um período de 15 dias, e a Casa Viva Maria, que existe há mais de 30 anos e é destinada a mulheres com risco de vida que precisam de mais tempo em um ambiente seguro até que possam retomar suas vidas.
A rede da Capital ainda conta com a Casa Lilás, que atende mulheres em situação de vulnerabilidade social, mas não tem enfoque específico em violência. O local também ajuda quem precisa de mais tempo em uma moradia provisória e assistência social.
Casa Betânia: cômodos espaçosos, jardim e área para crianças
O carro da reportagem para em frente a um portão monitorado por um segurança. A grade se abre e logo se avista uma casa em meio a um terreno repleto de árvores. É um dia ensolarado na Capital, e uma irmã religiosa abre um sorriso convidando para entrar na residência.
Inaugurada em novembro de 2022, a Casa Betânia foi projetada como local de passagem para que mulheres vítimas de violência pudessem ser abrigadas de imediato, sem grandes trâmites burocráticos. O espaço é gerenciado pelo Centro Social Antônio Gianelli, em parceria com a prefeitura. Desde o início da operação, 500 mulheres foram atendidas, além de 297 crianças e 38 adolescentes, que acompanhavam as mães.
— Ela surgiu da ausência de um espaço de acolhimento imediato, 24 horas, sete dias da semana, sem grandes exigências. Simplesmente identificando se era uma situação de violência doméstica e se havia necessidade de um espaço de acolhimento protegido — explica Fernanda Lima Nunez Mendes Ribeiro, coordenadora dos Direitos da Mulher, setor ligado à Secretaria Municipal de Inclusão e Desenvolvimento Humano da Capital.

A casa oferece diversos cômodos espaçosos e quartos com 21 suítes, que permitem que as acolhidas levem os filhos — meninas de qualquer idade e meninos de até 18 anos. Logo no início, a lotação chegou a 18 famílias. Nos últimos meses, a ocupação se manteve entre 13 e 14. Entrando, muitas vezes, apenas com a roupa do corpo, os abrigados recebem doações de vestuário e materiais de higiene.
Entrada noturna
A ideia é funcionar como um pronto-socorro, identificando as necessidades de cada uma, para que depois sejam transferidas a outro abrigo de longa permanência ou possam ficar com a família em outro local. A mulher é encaminhada ao abrigamento por um serviço da rede, como a delegacia especializada, uma unidade de saúde ou diretamente o Centro de Referência de Atendimento à Mulher (CRAM).
— 90% chegam à noite e nos finais de semana. Quando chega à noite, vem da delegacia direto. Durante o dia, às vezes, é uma escola que entra em contato com o CRAM — salienta Cristiana Rodrigues Marques, coordenadora da Casa Betânia.

O local tem uma rotina de atividades e regras, como o recolhimento do celular, que só pode ser utilizado para funções específicas, com ligações em horários combinados, por exemplo, para não expor a localização.
— As crianças e os adolescentes precisam aprender a brincar de uma outra maneira, ter outra rotina, longe dos colegas na escola. Estar no acolhimento é sempre difícil, e o celular é uma das coisas. Até na delegacia, quando buscam o serviço, elas dizem: "Mas eu não consigo ficar sem meu celular". De início, já é uma dúvida — menciona Cristiana.
Logo que dão entrada na casa, as novas moradoras são encaminhadas para uma enfermaria, que funciona 24 horas e auxilia nos atendimentos necessários.
— Elas chegam fragilizadas, com dor, sem saber o que fazer. A enfermagem é o acolhimento que elas têm, até mesmo ter o horário dos remédios. Elas falam: "Em casa, eu não tinha isso". Chegam a te agradecer por um gesto pequeno, de carinho — menciona Tamires Carpes, técnica de enfermagem.

"Ele me estrangulou e debochou da minha cara, dizendo que sabia até onde podia ir"
A enfermeira Tamires diz que fica sensibilizada com as histórias que recebe. Em março, a casa encaminhou quatro mulheres para serem internadas para atendimento em saúde mental. Situações de abuso sexual também são confidenciadas ali, conforme a vítima vai adquirindo mais confiança.
Um dos relatos vem de uma mulher de 38 anos, que estava há 19 dias na Casa Betânia quando conversou com Zero Hora:
— Eu me aproximava dele por conta da pensão da bebê. Ele não pagava corretamente e, quando pagava, eu era a moeda de troca. Eu teria que ter relações sexuais com ele. Uma vez, me neguei. Ele me estrangulou. Perdi o ar, não vi mais nada, fiquei com uma visão escura, pensei que fosse morrer. Ele ainda debochou da minha cara dizendo que ele sabia até onde ele podia ir.
Esta não é a primeira vez que ela passa por um abrigo. Já havia ficado na Casa Viva Maria em 2019, mas acabou saindo durante a pandemia por medo de perder a família. Foi para a casa de passagem neste ano, após sofrer o ataque que quase custou a própria vida. Agora, aguarda transferência para ficar em outro abrigo com os três filhos.
Na sala de atendimento individual da Casa Betânia, uma estante com brinquedos e livros acompanha a pintura de uma árvore. Uma frase de Cecília Meirelles é visível logo da porta: "Aprendi com as primaveras a deixar-me cortar e voltar sempre inteira".
"No meu segundo 'não', ele já me batia"

Esse é o desafio de outra acolhida, de 19 anos, que também espera transferência. Ameaçada de morte pelo tráfico de drogas por ordem do namorado, ela chegou ao abrigo com ajuda do Ministério Público, após pedir socorro para uma professora.
— Eu cheguei roxa e a "sora" perguntou: "Por que tu está roxa?". Aí eu comecei a chorar e pedi ajuda — relata a jovem, sentada no jardim que fica nos fundos da casa, perto da horta e do playground para as crianças.
A abrigada comenta que estava morando na Casa Lilás, destinada a mulheres em vulnerabilidade social, mas optou por deixar o local para ajudar a mãe. Vivendo em um ambiente familiar difícil, conheceu um homem de 36 anos e logo decidiu morar com ele. Só que a fase de "maravilhas", como descreve, durou pouco, e ele se tornou agressivo.
— Ele quis se passar comigo, tocar em mim, tirar a minha roupa, essas coisas. Eu falei "não". E ele tentava várias vezes, várias vezes eu falava "não". No meu segundo "não", ele já me batia, e aí a gente fazia à força — desabafa.
Desde esse episódio, as violências se tornaram recorrentes e o controle era excessivo. O resgate veio após intervenções da professora, da assistência social e do Ministério Público. A ação exigiu atuação da polícia, para que a jovem pudesse sair com vida de dentro da casa.
— Me deram o número do Ministério Público, eu liguei e mandaram uma viatura me buscar, mas ele não queria deixar eu ir. Ele tava com uma faca no meu pescoço. Daí a polícia conversou com ele, os filhos dele começaram a chorar. Ele meio que baixou a guarda e o policial conseguiu me puxar — descreve.
Para lidar com tantas fragilidades e dores, a casa conta com um espaço para reflexão e partilhas todos os dias após o almoço, que é servido no refeitório e preparado por cozinheiras acompanhadas de uma nutricionista. Há ainda uma sala de televisão, brinquedoteca e lavanderia. Cada ala do imóvel recebe o nome de uma figura que se destacou na luta pelos direitos da mulher, como Maria da Penha e Marielle Franco.
Eu me sinto bem aqui, me sinto segura, mas eu não sabia que existia esse lugar.
JOVEM DE 19 ANOS
Abrigada na Casa Betânia
Pós-estadia
Mesmo com os esforços de acolhimento, estimativa da instituição aponta que 10,5% das acolhidas voltam imediatamente para junto dos agressores após fazerem o desligamento da casa.
— A decisão é sempre da mulher. A gente não pode dizer "não, você não vai" ou, daqui a pouco, julgar e deixar perceptível esse julgamento, porque é uma outra violência — explica a coordenadora da casa, ressaltando que a equipe oferece orientações nesses casos.
Casa Viva Maria: salas de atendimento, enfermaria e cozinha com nutricionistas
Com 33 anos de atuação, a Casa Viva Maria já atendeu 2.754 mulheres em situação de violência doméstica e em risco de vida — sob condição de ter medida protetiva. O espaço tem 10 quartos, com capacidade para até 40 pessoas, entre mães e filhos, sendo meninos menores de 13 anos.
Com estrutura menor do que a casa de passagem, também conta com salas de atendimento individualizado, cozinha com nutricionista, enfermaria e sala de televisão.
Quando a reportagem esteve no local, duas mulheres e uma criança estavam morando na casa, que é de responsabilidade da Secretaria Municipal de Saúde. Desde o começo de 2025, foram 12 acolhimentos, e em todo o ano passado, 48.
O desafio para aumentar a ocupação está na falta de informações sobre este tipo de serviço e na dificuldade de algumas mulheres para se adaptarem à rotina. Na última semana, foram quatro desligamentos por essa razão.
— Existem regras, é um funcionamento muito organizado, muito bem estruturado. Apesar da nossa escassez (de equipe), a gente funciona muito bem. Muitas mulheres não conhecem o funcionamento desse serviço, então têm medo de ir pra um espaço, de como ele vai ser — aponta a assistente social Carolina Campos, coordenadora da Casa Viva Maria.
"A escala de violência estava subindo muito"
Na visita da reportagem, uma abrigada de 53 anos contou sobre a dificuldade que encontrou na busca por trabalho. Era dispensada por não poder utilizar o endereço de moradia atual, que colocaria em risco a segurança das outras moradoras e da equipe da prefeitura que trabalha no espaço. Para conseguir a vaga que ocupa há cerca de um mês no ramo de vendas, preferiu utilizar o domicílio de uma amiga como referência.
Após um relacionamento de quase 30 anos, a mulher chegou primeiro à Casa Betânia, na madrugada de 28 de fevereiro, onde ficou até 19 de março, quando se mudou para a Viva Maria.
— A escala de violência estava subindo muito dentro de casa, e eu fiquei realmente com medo, porque era feriado de Carnaval e eu estaria sozinha com meu marido. Resolvi finalmente dar um ponto final nisso e foi muito gratificante. A pessoa que me atendeu na delegacia de mulher era um inspetor, uma pessoa maravilhosa, tranquila, que me atendeu com todo o respeito, carinho, atenção — relembra.
A experiência positiva surpreendeu a abrigada, que já havia passado por abordagens ruins em outras tentativas de denunciar o agressor — uma delas, há mais de 15 anos. O atendimento nada humanizado e a falta de estrutura à época fizeram com que ela desistisse e retornasse para o marido violento. Ela revelou que foi questionada se tinha provas para as acusações e chegou a ouvir que poderia perder a guarda da filha.
A mulher tentou manter a relação até a formatura da jovem, mas não aguentou. Hoje, considera que ir para o abrigo foi a melhor decisão que poderia ter tomado, pela assistência e apoio que recebe.
Tenho meu quarto, meu banheiro, tem lanche, comida sendo feita pra mim. A única coisa que preciso fazer é botar a minha roupa dentro da máquina e depois estender e recolher. A gente ajuda na casa, tem setores que a gente mantém limpo.
MULHER DE 53 ANOS
Acolhida na Casa Viva Maria
Como pedir ajuda
Brigada Militar – 190
- Se a violência estiver acontecendo, a vítima ou qualquer outra pessoa deve ligar imediatamente para o 190. O atendimento é 24 horas em todo o Estado.
Polícia Civil
- Se a violência já aconteceu, a vítima deverá ir, preferencialmente à Delegacia da Mulher, onde houver, ou a qualquer Delegacia de Polícia para fazer o boletim de ocorrência e solicitar as medidas protetivas.
- Em Porto Alegre, a Delegacia da Mulher fica na Rua Professor Freitas e Castro, junto ao Palácio da Polícia, no bairro Azenha. Os telefones são (51) 3288-2173 ou 3288-2327 ou 3288-2172 ou 197 (emergências).
- As ocorrências também podem ser registradas em outras delegacias. Há DPs especializadas no Estado. Confira a lista neste link.
Delegacia Online
- É possível registrar o fato pela Delegacia Online, sem ter que ir até a delegacia, o que também facilita a solicitação de medidas protetivas de urgência.
Central de Atendimento à Mulher 24 Horas – Disque 180
- Recebe denúncias ou relatos de violência contra a mulher, reclamações sobre os serviços de rede, orienta sobre direitos e acerca dos locais onde a vítima pode receber atendimento. A denúncia será investigada e a vítima receberá o atendimento necessário, inclusive medidas protetivas, se for o caso. A denúncia pode ser anônima. A Central funciona diariamente, 24 horas, e pode ser acionada de qualquer lugar do Brasil.
Defensoria Pública – Disque 0800-644-5556
- Para orientação quanto aos seus direitos e deveres, a vítima poderá procurar a Defensoria Pública, na sua cidade ou, se for o caso, consultar advogado(a).
Centros de Referência de Atendimento à Mulher
- Espaços de acolhimento/atendimento psicológico e social, orientação e encaminhamento jurídico à mulher em situação de violência.
Ministério Público do RS
- O Ministério Público do Rio Grande do Sul atende o cidadão em qualquer uma de suas Promotorias de Justiça pelo Interior, com telefones que podem ser encontrados no site da instituição.
- É possível acessar o atendimento virtual, fazer denúncias e outros tantos procedimentos de atendimento à vítima. Para mais informações clique neste link.