Guerra ao tráfico
Aumento do número de mortos, corpos na rua e disputa política: os desdobramentos da megaoperação no RJ
Com 121 mortos, ação policial se tornou a mais letal do Brasil. Governos estadual e federal discutiram sobre responsabilidades e se reuniram para definir próximos passos no combate ao Comando Vermelho


Diferente da manhã de terça-feira (28), que foi marcada pela incursão policial nos complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, a quarta-feira (29) começou com o enfileiramento de corpos a céu aberto na Praça São Lucas, na Vila Cruzeiro. Sobre o asfalto, 68 cadáveres de homens.
Esses e outros seis corpos que foram levados em uma Kombi ainda na madrugada para o Hospital Getúlio Vargas, na Penha, não estavam na contagem divulgada pelo governo fluminense sobre a operação contra o Comando Vermelho, que até o final da terça-feira era de 64 mortes.
Enquanto familiares e voluntários ainda retiravam os mortos da área de mata fechada, o governador Cláudio Castro afirmava em coletiva de imprensa que, no balanço final da operação, estavam contabilizadas apenas 58 mortes. No período da tarde, o número oficial chegou a 121 mortos, sendo 117 de suspeitos e quatro de policiais.
— Aquelas foram as verdadeiras quatro vítimas. De vítimas ontem lá, só tivemos os policiais — afirmou o governador.
No final do dia, Castro recebeu autoridades federais para debater a situação da segurança no Estado (leia mais abaixo).
Mesmo sem certeza do total de mortes, uma vez que a Defensoria Pública do RJ afirma que o número de corpos chegou a 132, já é possível afirmar que a Operação Contenção é considerada a mais letal da história do país. O saldo supera, inclusive, o registrado no massacre do Carandiru, que terminou com 111 pessoas mortas em São Paulo, no ano de 1992.
Ao mesmo tempo em que o secretário de Segurança Pública do Rio, Victor dos Santos, justificava que as polícias não ajudavam na retirada dos corpos porque "não sabia da existência deles", vizinhos e familiares encontravam os cadáveres dos seus conhecidos com sinais de execução, como tiros na testa e decapitação.
— Meu sobrinho não tinha um tiro no corpo. Apenas arrancaram a cabeça dele e deixaram na mata — disse Beatriz Nolasco na frente da porta do Detran, um dos pontos de reconhecimento dos corpos para onde familiares são encaminhados.
Bombeiros e Defesa Civil também transportaram os mortos para o IML Afrânio Peixoto, na região central do Rio. No local, a entrada e a saída de policiais, integrantes da Defensoria Pública e carros funerários são frequentes.
"Muro do Bope"
O acesso à zona de mata onde se concentrou o conflito da polícia com os suspeitos, com a técnica que ficou conhecida como "muro do Bope", só pôde ser acessada pelos moradores e voluntários na madrugada.
Relatos anônimos revelam que houveram tentativas de resgatar os feridos, mas que foram impedidos, com ameaças de tiros e uso de gás lacrimogêneo, de chegarem ao local.
— Foi um filme de terror. Para onde olhava, as trilhas tinham cinco corpos (cada). O cheiro de gás lacrimogênio ainda deixava a gente incomodado. Tinham também rastros de sangue — relata um motoboy de 31 anos que não quis ser identificado em entrevista ao O Globo.
Impasse entre governos
Em outro ponto da capital fluminense, o governo estadual classificava a operação como um "sucesso". Já o secretário de Polícia Civil, Felipe Curi, opinou que a ação não foi uma chacina.
— Chacina é a morte indiscriminada, ilegal, de várias pessoas de forma aleatória. O que fizemos ontem foi uma ação legítima do Estado. Quem optou pelo confronto foi neutralizado. A reação da polícia depende do criminoso. Quem não optou pelo confronto foi preso. Os únicos inocentes mortos foram os policiais — disse Curi.
Castro, que na terça-feira disse que o RJ "estava sozinho" na operação e relatou a suposta negativa do governo federal de emprestar blindados das Forças Armadas, reforçou na coletiva de quarta-feira que o momento "não tem espaço para politicagem".
— Quem quiser somar com o Rio de Janeiro nesse momento no combate à criminalidade é bem-vindo. Os outros, que querem fazer confusão, politicagem, nosso único recado é: suma — afirmou.
A alta letalidade da ação e as falas do governador chamaram atenção das instituições federais. Ainda na terça-feira, uma reunião de emergência foi feita em Brasília reunindo ministros, como Ricardo Lewandowski, da Justiça, e o vice-presidente, Geraldo Alckmin. Já pela manhã, uma nova reunião foi feita, dessa vez para atualizar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que voltou da Malásia nesta madrugada.
— O presidente ficou estarrecido com o número de ocorrências fatais. Ele se mostrou surpreso que uma operação dessa magnitude fosse desencadeada sem conhecimento federal — disse Lewandowski.

Reunião no Rio
Uma comitiva saiu de Brasília para tratar da crise de segurança com Castro, no Rio. Nela estavam os ministros Lewandowski, da Justiça; Macaé Evaristo, dos Direitos Humanos; e o diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Passos.
Após o encontro de autoridades federais e estaduais, o governador Cláudio Castro e o ministro Ricardo Lewandowski anunciaram a criação de um escritório emergencial para lidar com a crise do crime organizado na cidade.
— Se o problema é nacional, o Rio de Janeiro é um dos principais focos. Daqui saiu uma proposta concreta: a criação de um Escritório Emergencial de Enfrentamento ao Crime Organizado — anunciou Castro.
— Colocamos à disposição do governador e das autoridades de segurança peritos criminais que podem ser mobilizados pela Força Nacional e também de outros Estados. Médicos legistas, odontólogos, peritos. Também temos bancos de dados no que diz respeito a DNA, balística, tudo isso estamos colocando à disposição do governador — reforçou Lewandowski.
Já em relação aos pedidos de Castro para utilizar veículos das Forças Armadas, Lewandowski disse que isso depende da decretação da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que, por sua vez, está sujeita ao reconhecimento do governador sobre a incapacidade das forças locais de combaterem o crime organizado e a situação de insegurança do RJ. Somente após um pedido é que o Lula poderá avaliar e determinar ou não a medida.
— Nós não excluímos e não estamos recomendando que se desencadeie uma GLO. Depende das circunstâncias e do próprio governador — afirmou o ministro.
Já Castro rebateu que não foi cogitado pedir a medida:
— Eu não preciso que o governo federal venha aqui fazer o meu trabalho.

Prestação de contas
Além do grupo enviado, outras instituições federais se posicionaram e cobraram prestações de contas do governo fluminense. A Procuradoria-Geral da República (PGR) reforçou questionamentos feitos ao governo do Rio de Janeiro pelo Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) e por um grupo de trabalho do Ministério Público sobre a operação.
O conselho pede por informações como a justificativa formal para sua realização e quais as providências adotadas para assistência às vítimas. Além disso, também foram solicitadas as imagens das câmeras corporais dos agentes policiais, já que o uso do equipamento se tornou obrigatório nesse tipo de operação por parte da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 635, conhecida como ADPF das Favelas.
O ministro Alexandre de Moraes, atual relator da ADPF, determinou que o governador envie informações sobre a megaoperação. Além da situação das câmeras corporais, o Supremo Tribunal Federal quer saber detalhes como o número de agentes empregados na ação e o número oficial de mortos, feridos e detidos.
Ainda nesta quarta, o secretário da Polícia Militar do Rio de Janeiro, Marcelo de Menezes, afirmou que as câmeras corporais dos agentes não registraram toda a megaoperação. Ele explicou que as baterias dos aparelhos duram cerca de 12 horas e não houve a possibilidade de substituição durante a ação.
— Como houve forte confronto, isso impediu que as baterias fossem substituídas — justificou.