Polícia



Guerra ao tráfico

Aumento do número de mortos, corpos na rua e disputa política: os desdobramentos da megaoperação no RJ

Com 121 mortos, ação policial se tornou a mais letal do Brasil. Governos estadual e federal discutiram sobre responsabilidades e se reuniram para definir próximos passos no combate ao Comando Vermelho

30/10/2025 - 11h00min


Beatriz Coan
Beatriz Coan
Enviar E-mail
Tomaz Silva/Agência Brasil
Cadáveres foram levados a uma praça depois de encontrados em área de mata.

Diferente da manhã de terça-feira (28), que foi marcada pela incursão policial nos complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro, a quarta-feira (29) começou com o enfileiramento de corpos a céu aberto na Praça São Lucas, na Vila Cruzeiro. Sobre o asfalto, 68 cadáveres de homens.

Esses e outros seis corpos que foram levados em uma Kombi ainda na madrugada para o Hospital Getúlio Vargas, na Penha, não estavam na contagem divulgada pelo governo fluminense sobre a operação contra o Comando Vermelho, que até o final da terça-feira era de 64 mortes.

Enquanto familiares e voluntários ainda retiravam os mortos da área de mata fechada, o governador Cláudio Castro afirmava em coletiva de imprensa que, no balanço final da operação, estavam contabilizadas apenas 58 mortes. No período da tarde, o número oficial chegou a 121 mortos, sendo 117 de suspeitos e quatro de policiais.

— Aquelas foram as verdadeiras quatro vítimas. De vítimas ontem lá, só tivemos os policiais — afirmou o governador.

No final do dia, Castro recebeu autoridades federais para debater a situação da segurança no Estado (leia mais abaixo).

Mesmo sem certeza do total de mortes, uma vez que a Defensoria Pública do RJ afirma que o número de corpos chegou a 132, já é possível afirmar que a Operação Contenção é considerada a mais letal da história do país. O saldo supera, inclusive, o registrado no massacre do Carandiru, que terminou com 111 pessoas mortas em São Paulo, no ano de 1992.

Ao mesmo tempo em que o secretário de Segurança Pública do Rio, Victor dos Santos, justificava que as polícias não ajudavam na retirada dos corpos porque "não sabia da existência deles", vizinhos e familiares encontravam os cadáveres dos seus conhecidos com sinais de execução, como tiros na testa e decapitação.

— Meu sobrinho não tinha um tiro no corpo. Apenas arrancaram a cabeça dele e deixaram na mata — disse Beatriz Nolasco na frente da porta do Detran, um dos pontos de reconhecimento dos corpos para onde familiares são encaminhados.

Bombeiros e Defesa Civil também transportaram os mortos para o IML Afrânio Peixoto, na região central do Rio. No local, a entrada e a saída de policiais, integrantes da Defensoria Pública e carros funerários são frequentes.

"Muro do Bope"

O acesso à zona de mata onde se concentrou o conflito da polícia com os suspeitos, com a técnica que ficou conhecida como "muro do Bope", só pôde ser acessada pelos moradores e voluntários na madrugada.

Relatos anônimos revelam que houveram tentativas de resgatar os feridos, mas que foram impedidos, com ameaças de tiros e uso de gás lacrimogêneo, de chegarem ao local.

— Foi um filme de terror. Para onde olhava, as trilhas tinham cinco corpos (cada). O cheiro de gás lacrimogênio ainda deixava a gente incomodado. Tinham também rastros de sangue — relata um motoboy de 31 anos que não quis ser identificado em entrevista ao O Globo.

Impasse entre governos

Em outro ponto da capital fluminense, o governo estadual classificava a operação como um "sucesso". Já o secretário de Polícia Civil, Felipe Curi, opinou que a ação não foi uma chacina.

— Chacina é a morte indiscriminada, ilegal, de várias pessoas de forma aleatória. O que fizemos ontem foi uma ação legítima do Estado. Quem optou pelo confronto foi neutralizado. A reação da polícia depende do criminoso. Quem não optou pelo confronto foi preso. Os únicos inocentes mortos foram os policiais — disse Curi.

Castro, que na terça-feira disse que o RJ "estava sozinho" na operação e relatou a suposta negativa do governo federal de emprestar blindados das Forças Armadas, reforçou na coletiva de quarta-feira que o momento "não tem espaço para politicagem".

— Quem quiser somar com o Rio de Janeiro nesse momento no combate à criminalidade é bem-vindo. Os outros, que querem fazer confusão, politicagem, nosso único recado é: suma — afirmou.

A alta letalidade da ação e as falas do governador chamaram atenção das instituições federais. Ainda na terça-feira, uma reunião de emergência foi feita em Brasília reunindo ministros, como Ricardo Lewandowski, da Justiça, e o vice-presidente, Geraldo Alckmin. Já pela manhã, uma nova reunião foi feita, dessa vez para atualizar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que voltou da Malásia nesta madrugada.

O presidente ficou estarrecido com o número de ocorrências fatais. Ele se mostrou surpreso que uma operação dessa magnitude fosse desencadeada sem conhecimento federal — disse Lewandowski.

Matheus Schuch/Agencia RBS
Lula ficou "estarrecido" com as mortes, disse ministro.

Reunião no Rio

Uma comitiva saiu de Brasília para tratar da crise de segurança com Castro, no Rio. Nela estavam os ministros Lewandowski, da Justiça; Macaé Evaristo, dos Direitos Humanos; e o diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Passos.

Após o encontro de autoridades federais e estaduais, o governador Cláudio Castro e o ministro Ricardo Lewandowski anunciaram a criação de um escritório emergencial para lidar com a crise do crime organizado na cidade.

— Se o problema é nacional, o Rio de Janeiro é um dos principais focos. Daqui saiu uma proposta concreta: a criação de um Escritório Emergencial de Enfrentamento ao Crime Organizado — anunciou Castro.

— Colocamos à disposição do governador e das autoridades de segurança peritos criminais que podem ser mobilizados pela Força Nacional e também de outros Estados. Médicos legistas, odontólogos, peritos. Também temos bancos de dados no que diz respeito a DNA, balística, tudo isso estamos colocando à disposição do governador — reforçou Lewandowski.

Já em relação aos pedidos de Castro para utilizar veículos das Forças Armadas, Lewandowski disse que isso depende da decretação da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que, por sua vez, está sujeita ao reconhecimento do governador sobre a incapacidade das forças locais de combaterem o crime organizado e a situação de insegurança do RJ. Somente após um pedido é que o Lula poderá avaliar e determinar ou não a medida.

— Nós não excluímos e não estamos recomendando que se desencadeie uma GLO. Depende das circunstâncias e do próprio governador — afirmou o ministro.

Já Castro rebateu que não foi cogitado pedir a medida:

— Eu não preciso que o governo federal venha aqui fazer o meu trabalho.

Reprodução
Ministro Ricardo Lewandowski e governador Cláudio Castro se reuniram após dia de impasse entre governos.

Prestação de contas

Além do grupo enviado, outras instituições federais se posicionaram e cobraram prestações de contas do governo fluminense. A Procuradoria-Geral da República (PGR) reforçou questionamentos feitos ao governo do Rio de Janeiro pelo Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) e por um grupo de trabalho do Ministério Público sobre a operação.

O conselho pede por informações como a justificativa formal para sua realização e quais as providências adotadas para assistência às vítimas. Além disso, também foram solicitadas as imagens das câmeras corporais dos agentes policiais, já que o uso do equipamento se tornou obrigatório nesse tipo de operação por parte da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 635, conhecida como ADPF das Favelas.

O ministro Alexandre de Moraes, atual relator da ADPF, determinou que o governador envie informações sobre a megaoperação. Além da situação das câmeras corporais, o Supremo Tribunal Federal quer saber detalhes como o número de agentes empregados na ação e o número oficial de mortos, feridos e detidos.

Ainda nesta quarta, o secretário da Polícia Militar do Rio de Janeiro, Marcelo de Menezes, afirmou que as câmeras corporais dos agentes não registraram toda a megaoperação. Ele explicou que as baterias dos aparelhos duram cerca de 12 horas e não houve a possibilidade de substituição durante a ação.

— Como houve forte confronto, isso impediu que as baterias fossem substituídas — justificou.

Últimas Notícias