Crime
Bolo envenenado: um ano depois, inquérito sobre venda irregular de arsênio é concluído sem indiciamento
Polícia identificou que empresa do Rio de Janeiro comercializou produto. Projetos de lei propõem regulamentação e fiscalização para a compra de substância


No começo deste ano, a Polícia Civil concluiu que Deise Moura dos Anjos, 42 anos, foi a responsável pela morte de quatro pessoas da mesma família, todas envenenadas por arsênio. As vítimas haviam consumido um bolo durante uma confraternização de final de ano, em 2024, no litoral norte do Rio Grande do Sul (relembre, mais abaixo, o caso).
A investigação sobre a compra do produto químico foi concluída nesta segunda-feira (22), praticamente um ano após o caso. Segundo a polícia, o arsênio foi adquirido pela internet e de forma irregular. No entanto, não houve indiciamento.
— O ato de vender tal produto – em que pese ser um produto de risco a saúde –, por não ter a devida regulamentação, não há enquadramento a nenhum tipo penal — explica a delegada responsável pelo caso, Milena Simioli.
A titular da Delegacia de Polícia de Proteção aos Direitos do Consumidor (Decon) afirma que a ineficiência de fiscalização e a falta de legislação específica em relação à comercialização do produto acabam dificultando a investigação.
— Há, inclusive, dois projetos de lei propostos com o objetivo de corrigir essa brecha, proibindo a venda de substâncias arsenicais a pessoas físicas, criando um controle mais rigoroso sobre a identificação do comprador e a justificativa técnica de uso — comenta a delegada.
No caso de Deise, a obtenção do produto foi por meio de dois sites diferentes, mas ambos vinculados a uma mesma empresa do Rio de Janeiro cujo nome não foi divulgado.
— Casos como esse evidenciam a importância de se refletir sobre a necessidade de aprimoramento legislativo na regulamentação da venda de produtos potencialmente perigosos. Embora muitas substâncias tenham uso lícito e legítimo, a ausência de critérios mais rigorosos de controle, rastreabilidade e informação pode facilitar desvios de finalidade com consequências graves — afirma a delegada Milena Simioli.
As compras
Deise dos Anjos comprou arsênio mais de uma vez. A polícia chegou a divulgar quatro compras, mas a delegada do caso esclarece que apenas três foram efetivamente pagas e entregues.
A primeira foi em 12 de agosto de 2024, cerca de um mês antes da morte do sogro, Paulo Luiz dos Anjos. Paulo faleceu sob suspeita de uma infecção intestinal, após consumir bananas e leite em pó contaminado com a substância.
Deise ainda fez duas outras compras, em 18 de novembro e 4 de dezembro, mês em que morreram mais três familiares. Segundo a delegada, as datas de compra foram identificadas com base nas notas fiscais emitidas e na análise do celular da investigada.
Projetos aguardam pareceres
Os projetos de lei mencionados pela delegada trazem, na justificativa, as mortes causadas pela substância no Rio Grande do Sul. Ambos são apreciados pela Câmara dos Deputados:
PL 1381/2025 (Gilson Daniel, Podemos-ES):
- Estabelece normas para o controle da comercialização, transporte, armazenamento e uso do arsênio e seus compostos
- Visa prevenir seu uso indevido e garantir a segurança da população
- Aguarda parecer da Comissão de Indústria, Comércio e Serviços para seguir tramitando
- Se aprovada, precisa passar pelas comissões de Saúde e de Constituição e Justiça
PL 985/2025 (Lula da Fonte, PP-PE):
- Prevê a proibição da venda "a pessoas naturais" de arsênio e de venenos de qualquer espécie sem identificação e comprovação da necessidade de uso
- Recebeu parecer pela aprovação na Comissão de Saúde, ainda aguarda análise do colegiado
- Depois disso, precisa passar pelas comissões de Indústria, Comércio e Serviços e de Constituição e Justiça
Além disso, há um terceiro texto de teor semelhante tramitando na Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul, para vigorar somente naquele Estado.
Regulamentação compartilhada
Consultado sobre a regulamentação, comercialização e fiscalização de arsênio, o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) informa que estabelece limites de arsênio, como contaminantes em alimentos e insumos agropecuários, em decorrência dos impactos à saúde pública, proteção dos rebanhos e da sanidade dos vegetais.
Já a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) afirma que, como o arsênio por si só não é um elemento de uso em saúde, a regulação do elemento químico está fora da competência do órgão.
A Anvisa regulamenta apenas os produtos que estão sob sua competência e que, eventualmente, poderiam utilizar componentes químicos como arsênio e outros. Nessa categoria, estão produtos como raticidas, desinfetantes, produtos de limpeza, agrotóxicos, entre outros.
Em relação aos produtos regulados pela Anvisa, a agência afirma que:
- Não há, no Brasil, autorização ou registro de raticidas para uso agrícola contendo arsênio
- O arsênio não é um ingrediente ativo aprovado na lista de monografias autorizadas pela Anvisa para uso em desinfestantes (destinados a controle de pragas)
- Não há no Brasil autorização ou registro de agrotóxicos para uso agrícola contendo arsênio
A Anvisa ainda informa que há registros de um herbicida com óxido de arsênio e de um medicamento trióxido de arsênio. No entanto, ambas as substâncias são diferentes do elemento químico em questão. Há ainda produtos à base de arsênio usados no tratamento de madeira para uso profissional, mas com registro regulado pelo Ibama.
Relembre o caso
De acordo com a Polícia Civil, sete pessoas da mesma família estavam reunidas em uma casa, durante um café da tarde na antevéspera do Natal de 2024. Seis dos presentes passaram mal após consumir pedaços de um bolo, preparado por Zeli dos Anjos.
O doce foi feito em Arroio do Sal e levado para Torres, onde aconteceu o encontro.
Três mulheres morreram no intervalo de algumas horas:
- Maida Berenice Flores da Silva, 59 anos: parada cardiorrespiratória
- Tatiana Denize Silva dos Anjos, 47 anos: parada cardiorrespiratória
- Neuza Denize Silva dos Anjos, 65 anos: choque pós-intoxicação alimentar
Outras três pessoas sobreviveram:
- Zeli Teresinha Silva dos Anjos, 63 anos: considerada pela polícia o principal alvo de Deise, sobreviveu após consumir alimentos com arsênio duas vezes — quando comeu bananas com leite em pó e quando comeu o bolo. Internada em dezembro de 2024, ela ficou 18 dias hospitalizada, 14 deles na UTI. Hoje, convive com neuropatia periférica, o que causa formigamento nas mãos e pernas.
- Jefferson Luiz Moraes, 61 anos: marido de Maida, passou por atendimento médico, mas não chegou a ser internado. Até o momento, não apresentou sequelas. Ele segue fazendo exames periódicos.
- Criança, 10 anos: filho de Tatiana e neto de Neuza, foi internado, mas recebeu alta hospitalar 11 dias depois. Segundo a família, ele está bem e, atualmente, não apresenta sequelas em função do arsênio. O menino, que hoje tem 11 anos, faz acompanhamento psicológico.
A exumação do corpo do sogro de Deise, Paulo Luiz dos Anjos, 62 anos, reforçou as suspeitas. Ele havia morrido em setembro, após comer bananas e leite em pó. Inicialmente, a morte havia sido atribuída a uma intoxicação alimentar. Depois, a perícia detectou arsênio nos restos mortais de Paulo.
Coletas de amostras da farinha usada no bolo apresentaram concentração de arsênio acima do normal. A quantidade da substância no organismo das vítimas também indicou intoxicação intencional.
A polícia apreendeu o celular de Deise e encontrou buscas por termos como "arsênio veneno", "veneno para o coração" e "veneno para humanos" feitas antes das mortes.
Antes, na fase de depoimentos, testemunhas relataram isolamento familiar e falas agressivas da nora contra a sogra. Para a polícia, Deise foi autora dos quatro homicídios (três pelo bolo envenenado e um pelo envenenamento de Paulo).
De acordo com a investigação, outro fato envolveu o filho de Deise, com nove anos, à época, e o marido Diego Silva dos Anjos, 41. Em dezembro, ambos passaram mal após tomarem um suco de manga contaminado. Para a Polícia Civil, Deise estaria tentando envenenar o marido nesse episódio, e atingiu sem querer o próprio filho. Os dois sobreviveram sem sequelas.
O inquérito que apurava a autoria das mortes foi concluído depois que Deise foi encontrada morta, na manhã do dia 13 de fevereiro, na Penitenciária Estadual Feminina de Guaíba. Segundo a polícia, o corpo de Deise apresentava sinais de enforcamento. O Código Penal prevê a extinção da punibilidade por morte do agente. Por isso, não houve indiciamento nem responsabilização.