Operação Cura Ficta
Polícia do RS investiga golpistas que se passavam por médicos para cobrar pacientes hospitalizados
Mandados são cumpridos nesta terça-feira nos Estados de Mato Grosso, Goiás e Rio de Janeiro


A cerca de 2 mil quilômetros de Porto Alegre, em Rondonópolis (MT), um detento de 35 anos é suspeito de ser o responsável por enganar e lesar familiares de pacientes internados no Rio Grande do Sul. É o que aponta uma investigação do Departamento Estadual de Repressão a Crimes Cibernéticos.
Nesta terça-feira (2), a Polícia Civil gaúcha realiza em três Estados a Operação Cura Ficta (que remete à falsa cura prometida pelos criminosos). Além de Mato Grosso, os mandados são cumpridos em Goiás e no Rio de Janeiro. São nove ordens de prisão preventiva e 13 de busca e apreensão contra o grupo criminoso especializado no chamado golpe do falso médico. Até o momento, sete pessoas foram presas na ofensiva.
A investigação da Delegacia de Repressão aos Crimes Patrimoniais Eletrônicos teve início após o registro de casos em Porto Alegre e Canoas, na Região Metropolitana. Os golpistas entravam em contato com familiares de pacientes internados em unidades de terapia intensiva (UTIs) de hospitais e alegavam que era necessário realizar novos procedimentos. Para isso, exigiam o pagamento de valores. Em média, segundo a polícia, os estelionatários cobravam entre R$ 5 mil e R$ 15 mil das vítimas.
O contato era feito por telefone e os criminosos se passavam por médicos ou diretores clínicos, utilizando nomes fictícios e fotos retiradas da internet. Segundo a investigação, para convencer as vítimas, eles alegavam que o paciente tinha sofrido um agravamento no quadro de saúde de doenças como leucemia e infecções bacterianas graves. Os pagamentos eram realizados por meio de Pix para supostamente custear exames ou medicamentos que não teriam cobertura pelo plano de saúde.
Crime organizado
Segundo o delegado Eibert Moreira Neto, diretor do departamento, a polícia ainda busca entender como os golpistas tinham acesso às informações em tempo real sobre os pacientes e os planos de saúde.
— Nós trabalhamos com a hipótese de que os golpistas tinham acesso ao banco de dados do plano de saúde ou possuíam acesso a uma credencial de algum funcionário, que permitia acessar os sistemas e verificar em tempo real a movimentação de pacientes, usuários desses planos de saúde. A outra hipótese que nós trabalhamos é que possa haver um funcionário dessas empresas que forneça informações. Porém, ainda não temos como afirmar categoricamente como os golpistas tinham acesso a esses dados — afirma o delegado.
Durante a investigação, foram identificados 12 suspeitos de serem responsáveis por essa fraude, que causou prejuízos para ao menos seis pessoas. A polícia suspeita que existam mais vítimas. A apuração indica que há envolvimento do Comando Vermelho — organização criminosa do Rio de Janeiro.
— Eles se valiam de uma situação de vulnerabilidade de pessoas hospitalizadas e seus familiares. Esses valores obtidos com a fraude eram revertidos em prol de uma facção atuante no Estado do Mato Grosso. É uma grande organização criminosa do Rio de Janeiro, com atuação em todo o território nacional. A gente percebe que há uma migração e membros de organizações criminosas têm se valido desses golpes também para monetizar e capitalizar a atuação desses grupos — detalha o delegado.
Biópsia por R$ 3,8 mil
Num dos casos investigados, os golpistas exigiram R$ 3,8 mil de familiares de um paciente para supostamente realizar uma série de exames, incluindo uma biópsia. Em áudio com um dos filhos do paciente, o golpista alega que o plano de saúde não permite a realização dos exames no mesmo dia.
— Nós vamos precisar submetê-lo a sete baterias de exames de sangue computadorizados e uma biópsia da medula óssea para identificar porque a medula óssea começou a produzir células cancerígenas — afirma o golpista.
Na conversa, o estelionatário segue tentando demonstrar preocupação com a saúde do paciente.
— Só que pelo plano dele, a gente não conseguiu autorização para fazer hoje e isso seria um problema para ele. Como a gente não sabe a porcentagem que se encontra essa operação, provavelmente com prazo de sete dias, a gente não teria êxito e ele já seria portador de um câncer no sangue — diz.
O golpista alega na sequência ser possível realizar o procedimento de forma particular e que, se família fizer o pagamento, posteriormente poderá ser ressarcida pelo plano de saúde:
— Eles reembolsam 100% do valor gasto pela família, através de documentações geradas aqui no hospital... Preciso saber se a família autoriza, se tem condições de arcar com essa despesa, ou se a gente deve aguardar esse prazo de sete dias.
Uso de script
O suspeito de ser um dos responsáveis pelo esquema é um preso da Penitenciária Major Eldo de Sá Corrêa, em Rondonópolis. Segundo a polícia, mesmo encarcerado, ele coordenava as chamadas e a logística do golpe. No interior da cela que ele ocupa na cadeia, durante investigações, foram apreendidos cadernos com anotações de roteiros do golpe (scripts), dados bancários e números de telefone.
Uma mulher, moradora de Rondonópolis e companheira de um dos envolvidos, atuava como braço direito do comando prisional, operando contas bancárias, gerenciando o fluxo financeiro e utilizando tornozeleira eletrônica, o que denota sua reincidência criminal. Outro alvo, também de Rondonópolis, chamou a atenção dos investigadores por possuir 121 chaves Pix cadastradas em seu CPF, o que indica a utilização profissional de contas para pulverizar o dinheiro ilícito.
Além da base no Mato Grosso, a organização criminosa tinha ramificações. Segundo a polícia, em Guaratiba, no Rio de Janeiro, foram identificados dois suspeitos de serem os responsáveis por fornecer e movimentar contas bancárias utilizadas para receber os valores extorquidos das vítimas, agindo em sincronia com os contatos telefônicos feitos de dentro do presídio.
O que diz o Cremers
Vice-presidente do Conselho Regional de Medicina (Cremers), Eduardo Neubarth Trindade vê com gravidade esse tipo de golpe e afirma que a entidade está à disposição para auxiliar a Polícia Civil a esclarecer como criminosos realmente conseguiam acesso aos dados do hospital e dos pacientes:
— Esse crime que eles cometiam contra famílias, não apenas de hospitais privados, de convênios, mas também isso acontecia muito seguidamente em hospitais públicos, em pacientes do Sistema Único de Saúde, em famílias até mais humildes, era realmente muito triste, principalmente porque pega num momento em que as famílias estão fragilizadas, estão angustiadas com esses familiares doentes.