Minha Casa, Minha Rua
Moradores de rua montam lares em áreas públicas de Porto Alegre
"Moradias" são encontradas em praças, jardins e estações de ônibus da Capital
Para a maior parte da população, restos de pedras, de plástico e de madeira servem apenas para o lixo. Mas há moradores, não quantificados em números, que reúnem estas sobras e as tornam parte da própria casa, a única que lhes foi garantida. Pelas ruas de Porto Alegre, estas "moradias" são encontradas em praças, jardins e estações de ônibus. Verdadeiros acampamentos urbanos habitados por homens e mulheres que cansaram de perambular sem destino e encontraram um pedaço de chão, mesmo que público, para chamarem de "meu quintal".
- João
Dos 36 anos de vida, João (nome fictício) passou os últimos 17 entre o Presídio Central e as ruas de Porto Alegre. A maconha e o crack o fizeram se afastar da mãe, de 76 anos, e dos sete filhos que teve com cinco mulheres diferentes. Ele prefere manter no anonimato a identidade real.
- Paguei as minhas dívidas com a Justiça, mas ficaram uns espinhos por aí - completa.
Depois de dividir marquises com outros moradores de rua na área central da cidade, há quatro anos, desejando viver sozinho e num único lugar, instalou-se embaixo da Ponte do Guaíba, na Avenida Sertório, no Bairro Navegantes. Ali, montou quarto, cozinha e sala de estar. Todos os móveis e utensílios domésticos vieram de doações. Mais de uma vez, aliás, já que João afirma ter sido vítima de ladrões em diferentes situações.
- Esta aqui é a minha casa, mas já levaram a comida, as roupas e os móveis. Não faço nada para ninguém. Pelo contrário, o pouco que tenho, divido com os "irmãos" (outros moradores de rua) - conta.
"Tenho que estar antenado"
E divide mesmo. Tanto que abriu espaço para um casal viver na "morada". Os dois dormem numa cama improvisada sobre cadeiras de praia e cobertores. João tem colchão e edredom. Nesta semana, fiéis de uma igreja doaram 20 cobertores novos aos três. Ele repartiu o presente com outros "vizinhos" da região.
Todos os dias, arranja água nos prédios próximos para barbear-se e fazer café. Quando não consegue, utiliza os serviços oferecidos pelo Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua, no Centro.
Para sobreviver, cuida dos carros que ficam sob a ponte, ao lado da "morada" dele. Os proprietários pagam por semana. Cada um dá o que pode, valem até roupas e calçados. Também atua na catação de papel, mais por hobby do que necessidade. João é um leitor apaixonado por revistas e jornais, e só os vende depois de devorar com os olhos cada página. O rádio de pilha é outro companheiro inseparável. Comunicativo, discute futebol, economia e política com a certeza do que fala.
- Os irmãozinhos falam que eu pareço um velho porque gosto de ler. Estudei até a sétima série e não gosto que me enrolem. Vivo na rua, mas tenho que estar antenado - justifica.
Vontade de rever a filha
Uma vez por mês, João visita a mãe na Zona Sul de Porto Alegre e aproveita para rever parte dos filhos. A eles diz que o levem como exemplo a não ser seguido.
- Apesar de tudo, acredito na vida. Não faço nada errado há quatro anos. Eu sei que tem alguém olhando por mim, ou não estaria ainda aqui.
Mas os olhos marejados revelam que a maior vontade dele é reencontrar a filha mais velha, que calcula estar com 20 anos. É por ela que ele pensa em abandonar a vida da rua em breve.
- Fico pensando que já posso ser avô e ainda estou nesta situação. Por isso, estou refazendo os meus documentos, quero arrumar os meus dentes e mudar de vida em breve. Voltar à sociedade como qualquer cidadão.
- Clarice
A rotina é igual há oito meses: todas as manhãs, com um pano úmido nas mãos, Clarice, 46 anos, limpa cada tábua feita como armário ou mesa na "morada" que construiu ao lado de um prédio, próximo à entrada do Túnel da Conceição, no sentido bairro-Centro. Não aguenta ver a poeira se formando sobre o que considera os móveis dela. Antes de sair com um carrinho de supermercado para catar pelas ruas da área central, faz questão de deixar brilhando o tapete e a entrada do quarto, feito caprichosamente com lonas de plástico presas por cordas e pedras às grades de um prédio que está à venda.
- Estou na rua há 20 anos, mas não aguentava mais ficar no pingue-pongue (de um lado para o outro). Queria ter o meu canto. Achei este aqui - comenta Clarice.
Vizinhos reclamam
As roupas são lavadas com a água acumulada em 22 garrafas plásticas. E o banho é tomado sob uma lona escura que faz as vezes de banheiro particular, com direito a detergente para limpá-lo.
Aos 12 anos, Clarice veio de Cruz Alta para trabalhar como doméstica numa casa de família em Porto Alegre. De lá, saiu aos 27 anos e caiu na rua para nunca mais sair. Há um ano, resolver juntar o pouco adquirido com um homem que conheceu nas andanças. Na semana passada, separaram-se.
- Ele bebia muito e fazia confusão. Isso me causou muitos problemas com a vizinhança. Não quero mais ele aqui - afirma.
Mas nem esta promessa afasta as reclamações dos vizinhos do edifício Caraíba. Segundo a síndica Susara Pontes, os problemas com Clarice já foram repassados a seis órgãos públicos, incluindo Brigada Militar, Fasc e Ministério Público.
- Ela faz sujeira, fogo e não deixa nenhum morador passar pela Esplanada, afirmando que ali é a casa dela. Apesar de ser mais caprichosa que muito morador, coloca os dejetos nas árvores. Não podemos ter uma pessoa assim aqui - afirma Susara.
"Assim para sempre"
Alheia ao que pensam os moradores do prédio ao lado, Clarice orgulha-se de ter um canto próprio depois de duas décadas sem destino. Por ela, não sairá mais daquele espaço. Tanto que abriu com as próprias mãos uma espécie de canal no entorno do quarto de plástico, capaz de protegê-lo quando chove. A água cai direto na Avenida Osvaldo Aranha.
Ela não fala sobre o passado, muito menos sobre o futuro. Diz que está conformada com o que ganhou da vida:
- Não sou feliz, mas faço o melhor que posso. Não uso drogas. Acho que já não mudo mais. Vou viver assim para sempre.
- Luis Carlos
Entre duas árvores do Terminal Princesa Isabel, no Bairro Azenha, Luis Carlos Correa Clipes, 34 anos, montou o que considera um "lar". As drogas o afastaram da família, moradora do Campo da Tuca, no Bairro Partenon, mas ele prefere não comentar o passado.
Há cinco anos, saiu de casa e nunca mais voltou. Nos primeiros meses, dormia sob a marquise de uma loja na Avenida Azenha. De manhã, era enxotado pelos seguranças e acaba indo para as árvores que hoje viraram casa.
- Um dia, decidi que nunca mais voltaria a dormir lá. Tinha cansado de ser escorraçado feito um cachorro. Vim para as árvores e fiquei - recorda.
João-de-barro
A decisão de construir o "barraquinho", como chama o espaço, partiu do morador de um prédio próximo. Chovia torrencialmente e ele sugeriu a Luis Carlos instalar uma lona entre as árvores. Foi o início da morada.
- Virei joão-de-barro, construindo aos pouquinhos. E tem até jardim - orgulha-se.
Para conversar com a reportagem, colocou duas cadeiras embaixo do cinamomo - espaço que considera como sala. O jardim foi plantado com a ajuda de uma moradora de outro prédio da região. Uma placa, recolhida do lixo, alerta para não se aproximarem das flores. Mas nem o pedido foi suficiente para afastar duas crianças que atearam fogo no "barraquinho" e numa das árvores, em fevereiro de 2012. Luis Carlos conseguiu reconstruir a morada com a ajuda da vizinhança. A árvore tem marcas até hoje, mas ganha brilho na época do Natal, quando ele carinhosamente a enfeita com bolinhas coloridas e outros acessórios.
"Não penso em sair daqui"
Apesar de morar sob lonas, ele se diz orgulhoso por ter deixado as drogas no passado e, principalmente, por trabalhar em quatro empregos diferentes. Ex-chapista, com experiência em lanchonetes conhecidas na cidade, Luis Carlos faz bicos como serviços gerais em quatro restaurantes da região.
- Sou pavio curto, mas procuro tratar todos muito bem para também ser bem tratado. Nunca tive problemas com a vizinhança e fiz muitas amizades. Não penso em sair daqui.
"Pode ser um bom sinal"
O sociólogo Ivaldo Gehlen, um dos pesquisadores da Ufrgs que participou da elaboração dos dois censos da população de rua em Porto Alegre, mostrou-se surpreso com os perfis de moradores encontrados pela reportagem. Para ele, "um novo tipo de morador de rua" pode estar se formando na Capital.
- Pode ser um bom sinal, depois de tantas abordagens. Eles parecem estar num estágio de transição, querendo se reintegrar à sociedade. Basta que apareçam as oportunidades - sugere.
No último levantamento realizado pela equipe da qual Ivaldo fez parte, em 2011, havia 1.347 moradores em situação de rua. Mas este número já estaria oscilando entre 3 mil e 5 mil, conforme o projeto Universidade na Rua, da Ufrgs. Segundo o presidente da Fasc, Marcelo Soares, um edital para novo levantamento deve ser anunciado nos próximos meses. A meta é divulgar um novo censo até o fim do primeiro semestre de 2015.
Lei não permite expulsão
Marcelo afirma que casos como os três apresentados pelo Diário Gaúcho não podem ser resolvidos à força.
- Por lei, não podemos, simplesmente, retirá-los do lugar onde estão. É preciso um trabalho de abordagem, de convencimento para mudar. A situação é mais complexa do que se pensa. Para nós, o espaço que eles ocupam é público. Para eles, é o único espaço privado que têm.
Para produzir políticas públicas destinadas aos moradores de rua da Capital, a prefeitura de Porto Alegre criou há três meses o Comitê Intersetorial da Política da População em Situação de Rua. Liderado pela Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana, ele envolve secretarias e representantes da sociedade civil. O grupo se reúne uma vez por mês. Entre as primeiras metas está produzir um novo estudo, mais aprofundado, sobre as características de quem vive nas ruas da cidade, incluindo os donos dos acampamentos urbanos.