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Meio Ambiente

Arroio Feijó, entre Alvorada e Porto Alegre, agoniza em meio à poluição

Reportagem percorreu os 10,5km do arroio que transborda a cada nova enchente e atinge milhares em Alvorada

15/08/2015 - 07h02min

Atualizada em: 15/08/2015 - 07h02min


Mateus Bruxel
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Imagens: Mateus Bruxel / Edição: Marcelo Carôllo

De prainha com córrego ralo e cristalino, existente até o final da década de 1960, o Arroio Feijó se tornou um temido vizinho dos moradores de Alvorada, Viamão e da Zona Norte de Porto Alegre. Hoje, com água escura e malcheirosa ao longo dos 10,5km de extensão, é um canal de esgoto desaguando no Rio Gravataí e um curso d'água que transborda a cada nova enxurrada.

Sem nascente determinada, formado por pelo menos 11 cursos d'água existentes em Viamão e com uma sub-bacia de 57 quilômetros quadrados, o arroio está sendo estudado desde julho para receber a primeira obra de prevenção contra enchentes em Alvorada. A construção faz parte do Plano Nacional de Gestão de Risco e Resposta a Desastres Naturais do Pac 2 Prevenção, e não recuperará os efeitos da poluição. Será uma tentativa de acabar com as cheias. Mas a previsão da obra não é otimista: levará pelo menos cinco anos para a construção, e ainda não se sabe, por exemplo, como será.

Há um mês, com o transbordamento do canal na parte baixa em direção ao Rio Gravataí, mais de 11 mil pessoas foram atingidas em dois bairros de Alvorada. Foi a maior enchente na cidade nas duas últimas décadas. O presidente do Comitê da Bacia do Rio Gravataí, Sérgio Cardoso, define a região como zona dentro da cota de inundação das bacias. Teoricamente, ali não deveria haver casas. 

- Houve um crescimento desordenado da urbanização nas margens do Feijó. Os bairros foram avançando sobre a área por onde o Rio Gravataí se espraia até chegar ao arroio. O rio e o arroio transbordam quando há muita chuva. Não há mágica para fazer ficarem nos leitos. Pelo Código Florestal, não deveria ter moradores a menos de 30m do arroio, e isso também não ocorre - explica.

Na tentativa se salvar a água do arroio, a Corsan inaugurará em novembro a Estação de Tratamento de Esgoto de Alvorada/Viamão, que tratará 30% do esgoto doméstico das duas cidades antes de ele seguir para os arroios da região. Entre eles, o Feijó. Juntas, elas não têm 10% do esgoto tratado.

Nesta semana, de carro e de barco, a reportagem do Diário Gaúcho percorreu o Feijó para mostrar as histórias de quem vive às margens dele. O cenário, comum aos vizinhos, mostra a agonia do antigo córrego: canos irregulares despejam esgoto direto no canal, e restos de lixo e de animais mortos se misturam às garças e aos peixes que insistem em conviver com a podridão. E o que mais se ouviu entre os moradores foi: "o arroio está morto. Isto aqui é um valão".



Tentativa de preservação
Enquanto observa o lixo que se acumula às margens do arroio do lado de Porto Alegre, o casal de comerciantes aposentados João Paris, 74 anos, e Oliva Lopes, 71 anos, colhe batatas, limões, bergamotas e dezenas de frutas e chás colhidos diretamente das terras que margeiam o canal do lado de Alvorada, no Bairro Passo do Feijó. Há 15 anos, João decidiu dar um fim ao lixo que se acumulava na frente da casa da família, localizada na Avenida Beira-Rio. 

- Jogamos uns pés de feijão e eles cresceram rapidinho. Então, coloquei uma cerca de arame farpado para evitar que continuassem jogando lixo. Não foi suficiente - recorda João.

Depois de pedir autorização dos vizinhos mais próximos, João cercou 100m da margem e, junto com Oliva, começou a diversificar na plantação. Quem passa hoje pelo trecho surpreende-se com a beleza do pomar e do jardim criado e cuidado apenas pelos dois. 

- Foi proibido colocar lixo aqui. E até que eles (moradores) respeitam. Nem ratão a gente não vê mais aqui porque traz cuidadinho. O arroio não merece estes lixos aí - diz Oliva.

O carinho pelo espaço criado num cenário perdido acabou premiando Oliva, que não aceitou a viagem à Itália oferecida pela entidade patrocinadora do prêmio de preservação pelo meio ambiente. 

- Meu maior prêmio é colher todos os dias a batata-doce, a cebola e os meus temperos para a hora do almoço. Nunca tive uma dor de barriga, mesmo sendo da terra da margem do arroio - garante a aposentada.

Mas quando falam sobre o lixo do outro lado da margem, ambos têm a mesma opinião.

- Eu sinto a mesma coisa que estar comendo uma comida sem sal. Me dói - resume João.

- É muito triste porque o povo não acredita que jogando o lixo no arroio estão ajudando a acabar com a água. Nós, pelo menos, estamos tentando fazer a nossa parte - finaliza Oliva.


O cuidador da passagem
Com uma enxada na mão, o mecânico desempregado Marlon Felipe Medeiros Silva, 20 anos, da Vila Dois Irmãos, no Parque dos Maias, faz questão de contribuir para manter limpa a única passagem de pedestres sobre o arroio ligando o Passo do Feijó, em Alvorada, ao Rubem Berta, em Porto Alegre.

Construído em concreto, o caminho de cerca de 5m de distância costumava encher quando chovia na região. Quem se atrevia a passar por ele encarava água até os joelhos.

- Numa tarde de muita chuva, fui até lá e comecei a tirar a terra dos buraquinhos dos canos que ele tem. A água foi parar no Feijó. Peguei a enxada e tirei a terra que se acumulava na passagem. Depois, juntei um monte de saibro e coloquei numa das entradas. Nunca mais passou água - comemora.

Enquanto Marlon conversava com a reportagem, moradores passavam pelo local e elogiavam a atitude do jovem. 

- Ele é muito prestativo mesmo. Resolveu um problema que as prefeituras não resolveram - comentou uma senhora.


Ribeirinha não quer sair
Ao longo de 40 anos abrindo a janela dos fundos para o vizinho Feijó, a pensionista Ivaldina De Bona Pinheiro, 68 anos, viu a paisagem mudar de uma praia com areias brancas, onde se podia ver o fundo do córrego, para um valão de águas escuras e com mau cheiro. 

- Quando eu vim morar aqui, lavavam roupa embaixo da ponte. Hoje, jogam até cavalo morto dali - sintetiza.

Moradora da Vila Fátima, em Porto Alegre, quase na divisa entre as avenidas Baltazar de Oliveira Garcia, na Capital, e Getúlio Vargas, em Alvorada, Ivaldina testemunha todos os dias o despejo irregular de lixo no trecho que cruza uma área com fluxo constante de veículos e pedestres.

- Às vezes, me esquenta o sangue e eu tenho vontade de e vender e sair - desabafa.

A preocupação com a quantidade de animais mortos e de resíduos despejados no córrego acaba fazendo com que Ivaldina esqueça o desmoronamento constante do Feijó. Do alto do terceiro andar da casa construída pela família, a pensionista observa a água comendo a terra que margeia o arroio:

- Eu tenho medo porque está cavando, sabe. Mas acho pior é ver esta água condenada. As pessoas deviam se lembrar que a gente vai ter netos, bisnetos e tataranetos e a água, um dia, vai terminar.


Na ponta do arroio
É no limite entre Viamão, Alvorada e Porto Alegre, onde o arroio Dorneles se torna Feijó, que vive o reciclador Carlos Brandão, 55 anos. Ele tem uma casa do lado de Porto Alegre, no final da Avenida Protásio Alves. Apesar de estar num trecho com quase 3m de altura em relação ao arroio, o reciclador já viu o curso d'água encher "até a boca".

- Nem dormi naquela noite. Fiquei na beira para ver se não ia transbordar. Faz anos, mas nunca esqueci - conta.

Hoje, o maior temor de Carlos é ver o terreno desmoronar. A cada forte chuva, parte dele - que faz fundos para o Feijó - desaparece. Mesmo com material reciclável por todo o pátio, Carlos garante que não joga lixo nas águas escuras. Pelo contrário, é um defensor delas.

- Não boto (lixo) nada; e não deixo bagunçarem. É uma covardia o que fazem com esta sanga - comenta, enquanto observa do outro lado do arroio um grande cano entre as pedras jogando esgoto no córrego, restos de plásticos e um cachorro morto.

O arroio
* É o principal arroio a cruzar Alvorada.
* Tem 10,5km de extensão, do limite entre Alvorada/Viamão/Porto Alegre e o Rio Gravataí. 
* Outros 5km cruzam por dentro de Viamão, onde a continuação ganha o nome de arroio Dorneles e recebe água de outros cursos. 
* Atinge cerca de 300 mil moradores das três cidades da Região Metropolitana, se contar a sub-bacia formada pelos arroios que desaguam nele.
Fontes: Prefeitura de Alvorada e Corsan

Para salvar a água do Feijó
* Hoje, metade do esgoto doméstico de Alvorada e de Viamão é despejado direto no Feijó, antes de seguir para o Rio Gravataí. 
* Menos de 10% do esgoto doméstico de Alvorada é tratado. Em Viamão, não chega a 5%.
* Em novembro, a Corsan deverá inaugurar a Estação de Tratamento de Esgoto de Alvorada/Viamão, que deverá tratar 30% do esgoto doméstico das duas cidades antes de ele seguir para os arroios da região.
* O custo da obra, que incluiu a construção de redes coletoras nas duas cidades chegou a R$ 115 milhões, com recursos do Governo Federal.
* Outros R$ 115 milhões já foram liberados pelo Governo Federal para ampliar a rede coletora. A obra deve levar três anos para ser concluída. Após a finalização, a meta é tratar 60% do esgoto doméstico das duas cidades.
* A principal meta destas obras é recuperar, no futuro, a água do Feijó.
Fonte: Superintendente de Gerenciamento da Expansão da Corsan, José Homero Finamor Pinto



A obra mais esperada de Alvorada
* Alvorada é a única cidade da Bacia do Gravataí que não possui prevenção própria contra enchentes. 
* A construção de uma proteção contra enchentes em Alvorada faz parte do Plano Nacional de Gestão de Risco e Resposta a Desastres Naturais do PAC 2 Prevenção.
*O termo de compromisso para a obra na cidade foi assinado em 2012 entre a Metroplan, representando o governo do Estado, e o Ministério das Cidades.
* Ainda não está definido o tipo de obra que será construída na cidade para protegê-la das águas do Feijó e do Gravataí.
* O certo é que a obra de Alvorada é a única das quatro do Estado relacionadas a enchentes que teve liberação de verba para estudo de impacto e obra completa - as outras três só tiveram o estudo liberado. 
* Foram destinados R$ 228 milhões para estudo e construção. Estão previstos 21km de dique que contemplarão Alvorada, Porto Alegre e Viamão. O dinheiro será liberado pela Caixa.
Fonte: Jayme Keunecke, arquiteto da diretoria de Incentivo ao Desenvolvimento da Metroplan

 
Maria desistiu do arroio

"O arroio está morto"
Para continuar morando no terreno adquirido há 37 anos às margens do arroio, no Bairro Americana, em Alvorada, a dona de casa Maria Magni dos Santos, 62 anos, precisou investir em compras não previstas no orçamento da família: isolou com telas todas as aberturas da casa e adquiriu pantaneiras (macacões de borracha).

- Com as cheias acontecendo todos os anos, só tenho casa no verão. Nesta época (inverno), tem que ter a pantaneira porque cansei de sair daqui com água pela cintura para buscar um pão. Tem tanto mosquito e mosca, que a gente não aguenta. Não tenho mais futuro com isto aqui - desabafa.

Maria é a última moradora da margem do arroio antes da foz no Rio Gravataí, distante cerca de 1km. Há oito anos, ela plantou dois ipês na beira para dar sombra e impedir o desassoreamento. Em vão. Uma das árvores nem começou a florescer e já corre o risco de despencar dentro das águas escuras.

- Ele (o arroio) era um curso d'água pequeno, quando vim morar aqui. Mas, ao longo dos anos, as enchentes e as ações para limpar o arroio comeram mais de 200m de margem - calcula.

Sem acreditar que, um dia, será construído o dique, Maria resume:

- Isso aqui era uma prainha, com areia branquinha. Meus filhos tomavam banho e eu lava roupa dentro dele. Agora, vocês estão vendo no que que está isso aí: um esgoto a céu aberto. O arroio está morto, não tem mais conserto.

 
Casal plantou pomar

 
Marlon cuida da passagem

 
Vizinha do arroio

 
O primeiro


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