Histórias DGente
Nova seção do Diário Gaúcho apresenta o motorista que se alegrava por transportar vidas
Conheça a trajetória de Márcio Daniel Corrêa Souza, profissional que criou laços com passageiros ao mostrar a importância de seu trabalho para a comunidade
É parte da essência do Diário Gaúcho se manter próximo dos seus leitores, narrando em suas páginas as vivências daqueles que dão o tom ao jornal. Para seguir dando destaque às múltiplas trajetórias dessas pessoas, estreia hoje Histórias DGente, um espaço que apresentará personalidades do cotidiano, aqueles que protagonizam o dia a dia de suas comunidades.
Na primeira série desse novo espaço, serão destacadas as histórias de profissionais que, pelo empenho aos seus ofícios, viraram referências nos locais onde atuam. É o caso do motorista aposentado Márcio Daniel Corrêa Souza que, ao longo de seus 28 anos de dedicação ao trabalho, criou vínculos profundos com seus passageiros.
Coração no volante
Todos os dias, às 6h15min, um ônibus saía da garagem com o mesmo homem o conduzindo. Márcio Daniel Corrêa Souza, 51, dedicou 28 anos de sua vida ao transporte de passageiros e, no dia 31 de julho de 2024, realizou sua última viagem como motorista da linha semidireta Boa Vista – Praia de Belas.
Sua aposentadoria foi marcada por lembranças e pelo carinho dos passageiros, que organizaram uma festa dentro do coletivo para homenagear o trabalho realizado pelo motorista ao longo dos anos.
Criado em São Sebastião do Caí, Souza começou sua história no transporte público como cobrador de ônibus. Pouco tempo depois, tornou-se abastecedor e logo mais foi promovido a motorista. Passou a atuar em uma empresa localizada no município de Esteio em 2001, onde dedicou as próximas duas décadas ao trabalho nas linhas intermunicipais da Região Metropolitana de Porto Alegre, percorrendo Sapucaia do Sul, Esteio, Canoas e São Leopoldo. Os passageiros foram incontáveis.
No contato diário com o público, o condutor ficou conhecido por sua simpatia e gentileza. Ao comentar sobre a relação que construiu com os passageiros, Souza diz que encarava sua demanda da mesma forma que gostaria de ser atendido por outro motorista.
No início da carreira, durante o deslocamento até o trabalho, sua rotina era movida por uma viagem diária entre o Vale do Caí e a Região Metropolitana. Neste percurso, Márcio pensava o quão importante era o transporte público: ao mesmo tempo em que ele necessitava de uma condução todos os dias, seus passageiros também estavam esperando. Quando perguntado sobre a importância de seu trabalho, o motorista destaca o serviço como essencial.
— As pessoas precisam daquilo, elas precisam ir e vir. Precisa existir o passageiro para existir o ônibus. O público nos move, um depende do outro — enfatiza.
Os desafios ao longo de sua carreira foram marcados pelo período pandêmico e pela enchente que atingiu o Estado em maio. Durante a pandemia de covid-19, Souza enfrentou, pela primeira vez, o afastamento de sua profissão. Sem poder trabalhar, precisou ficar em casa. Para além da preocupação com sua saúde e com a de seus familiares, a dúvida e a incerteza de seu cargo também o cercaram.
— Eu esperava sair a lista com a escala de trabalho e meu nome estava apenas com folga. Foi essa angústia durante dias e dias seguidos. E assim fomos sobrevivendo. Quando retornou, eu fiquei de reserva e surgiu a oportunidade de comandar a linha semidireta para Porto Alegre.
Desafios na cheia
Márcio enfrentou a enchente logo nos primeiros dias da tragédia climática. Na manhã de 3 de maio, ao sair de Sapucaia do Sul, realizou todo o trajeto rotineiro da linha até chegar ao destino, o shopping Praia de Belas, em Porto Alegre. Na volta para a garagem, alguns pontos da Capital já estavam alagados, sem a possibilidade de passagem.
Ao longo do dia, a empresa tentou realizar mais viagens para não deixar passageiros pelo caminho, porém, as passagens já estavam inviáveis. Assim, a partir dos primeiros dias de maio, novamente o condutor enfrentou a parada total de seu trabalho.
Foram duas semanas sem ônibus e com um grande desafio para o transporte público: sem a operação do trem, operado pela empresa Trensurb, as linhas de ônibus se viram com o dobro de passageiros que buscavam por opções que substituíssem o transporte ausente.
— O pessoal começou a descobrir que tinha ônibus. Eram muitas pessoas, tinha vezes que chegava na metade da viagem e já havia passageiros de pé. Um carro que cabia 48 sentados, eu botava 75, e muitas vezes precisei deixar pessoas na parada por não ter mais espaço.
Márcio relata que se esforçou para atender da melhor forma possível durante a volta das linhas. Após alguns dias, carros de reforços entraram em circulação e os profissionais foram se adaptando à nova situação.
— Eu pensava que quem estava ali precisava trabalhar. E tu quer voltar para casa, é o teu meio de ir e vir, então eu fazia das tripas coração para conseguir trazer todo mundo.
Homenagens
Uma das novas personagens da rotina do motorista foi Luana Hermann Oliveira, 26 anos, moradora de Sapucaia do Sul, que precisou se adaptar aos novos meios de locomoção pós-enchente. A jovem trabalha em Porto Alegre e, quando começou a utilizar a rota alternativa ao trensurb, conheceu Márcio.
— Comecei a pegar o ônibus todos os dias, tanto na ida quanto na volta, e acabou que criou um vínculo. Ele me avisava em relação aos pontos, onde é que o ônibus ia parar. Também me indicou entrar no grupo do ônibus, com mais de 300 pessoas, onde nos comunicamos. E aí acabou que conheci a esposa dele, que também é passageira, e acabamos criando uma amizade — relata.
Em uma conversa com Katia da Silva, 53, esposa de Márcio, a passageira descobriu que o profissional já estava em seus últimos dias de trabalho. Sua aposentadoria estava chegando, e, como forma de homenagear seus serviços, as duas decidiram realizar uma festa de despedida dentro do ônibus. O momento contou com balões, uma mensagem impressa nos bancos e um momento de discurso do motorista.
Despedida
No dia 2 de agosto, Márcio Daniel Corrêa Souza retornou para a linha semidireta Boa Vista – Praia de Belas para sua última viagem, agora como passageiro. O percurso foi marcado por conversas, agradecimentos e memórias, e, como forma de eternizar o momento, uma camiseta da empresa, guardada pelo condutor, foi tirada pela primeira vez da sua embalagem original para registrar o momento. Cada passageiro que embarcou naquela sexta-feira deixou uma mensagem escrita para agradecer e reconhecer seu trabalho.
A importância da ocasião foi destacada como um presente por Luana, que viu desde sempre algo diferente no motorista:
— Ele não leva só passageiros, ele leva as vidas. Eu vejo isso no olhar dele, que ele sentia alegria em fazer isso todos os dias.
Período de descanso
Agora aposentado, Márcio sente falta dos colegas, das risadas ao longo do expediente e de poder compartilhar seu dia a dia. Sua carreira encerrou, porém, seus planos não são de completo descanso.
Na prática, o motorista ainda não parou, segue realizando trabalhos como motorista freelancer para algumas escolas do município de São Leopoldo. E comenta que sempre busca algo, nem que seja um conserto em sua casa, para poder se distrair e não ficar parado no dia a dia.
Uma de suas vontades a longo prazo é conseguir comprar uma casa na praia, no litoral norte gaúcho, mas segundo o condutor, agora não há pressa para suas decisões. Seu único desejo:
— Viver tranquilo, o que me importa é ter saúde e conseguir ajudar minha família. Assim, já fico feliz.
Produção: Josyane Cardozo