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Do Hospital de Clínicas 

Depois da enchente: pesquisa revela que 42% de gaúchos entrevistados desenvolveram sintomas de Transtorno de Estresse Pós-Traumático

Possibilidade levantada por especialistas em meio à tragédia climática tem sido confirmada com estudo realizado pela professora e psiquiatra Simone Hauck. Patologia começa a se manifestar 30 dias após o evento, mas ainda está na janela de intervenção

02/09/2024 - 11h25min


Bianca Dilly
Bianca Dilly
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O som de uma torneira abrindo ou a água da chuva caindo no telhado, que antes eram reconfortantes e agora representam medo e angústia, tornaram-se símbolo de uma condição mental até então pouco conhecida pela população gaúcha. Uma pesquisa inédita do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) revela que, após a enchente no Estado, 42% dos participantes já avaliados desenvolveram sintomas de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT).

Os sinais foram confirmados por 778 de 1.846 moradores do RS ouvidos entre 7 junho e 19 de julho deste ano. Essa possibilidade já havia sido trazida por especialistas em meio à tragédia climática, e se confirmou com dados encontrados no estudo dirigido pela professora do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Psiquiatria Psicodinâmica do HCPA, Simone Hauck.

O levantamento ainda está em andamento e os números podem ser maiores. Conforme a pesquisadora, é a partir de 30 dias após o evento que o transtorno começa a se manifestar, mas a especialista afirma que ele pode aparecer até seis meses depois.

— O Transtorno de Estresse Pós-Traumático é lembrado pelos filmes de guerra, pela questão dos veteranos, por exemplo, mas na prática é pouco conhecido aqui. E é a patologia mais frequente após um desastre como o que a gente vivenciou. De modo geral, nos países não desenvolvidos, só uma a cada quatro pessoas com esse diagnóstico consegue ajuda — observa.

Simone ainda destaca que a urgência pela divulgação dos dados se dá pelo fato de que o TEPT possui uma janela de intervenção, em que a interferência ajuda a impedir que a doença se instale de forma crônica. O ideal é que o trabalho tenha início em até três meses após os eventos traumáticos, mas dentro de um ano ainda é possível ter tempo de resposta – justamente o período corrente atual.

Jefferson Botega / Agencia RBS
Professora e psiquiatra Simone Hauck é a coordenadora da pesquisa.

Estudo também mostra nível de gravidade dos sintomas de TEPT

A pesquisa está sendo realizada de forma online, aberta a todo o Estado, para maiores de 18 anos. Até o momento, a amostra já recebeu em torno de 5 mil respostas e é predominantemente de Porto Alegre e Canoas, mas conta com contribuições de dezenas de outras cidades gaúchas, como a Região dos Vales, sul do RS e área central do mapa.

Nos dados analisados com 1.846 pessoas, um dos fatores levados em consideração é o nível de gravidade dos sintomas de TEPT. Os casos moderados a muito graves representam mais da metade, com 53,8% (confira o gráfico). Dos respondentes, ainda, 53,2% (982 pessoas) foi afetado pela enchente, 40,4% (745 pessoas) precisou sair da moradia com urgência, 14,4% (265 pessoas) precisou de resgate e 17,2% (318 pessoas) participou de resgate.

Previsto para durar em torno de um ano, o estudo segue aberto. Além de ser maior de idade, para participar é necessário ter residido no RS durante o período da enchente. O questionário está disponível neste link.

É importante que as pessoas sigam respondendo e participando, para vermos como vai evoluir essa questão ao longo do tempo e passar a informação com a melhor qualidade possível para população — conclui.

Especialista de Santa Maria recomenda monitoramento e reorganização de serviços

Para o professor do Departamento de Neuropsiquiatria da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Vitor Crestani Calegaro, que atuou após traumas como o da Boate Kiss e da pandemia, o achado de 42% de casos de TEPT está na média de estudos que falam sobre a prevalência da doença dentro do primeiro ano após desastre.

Porém, Calegaro chama a atenção para outras possibilidades: primeiro, de um percentual dessas pessoas se recuperarem naturalmente, enquanto outras podem apresentar quadros que pioram com o passar do tempo e, terceiro, de indivíduos que não apresentam sintomas atualmente acabarem desenvolvendo o transtorno. Por isso, recomenda uma pronta interferência.

É necessário fazer o monitoramento das pessoas. [...] Em Santa Maria, houve uma reorganização dos serviços (após o incêndio). No Hospital Universitário, foi criado um acompanhamento a longo prazo dos sobreviventes, que seguiu por muitos anos. Na prefeitura, também foi estruturado um serviço com foco mais psicossocial, dando conta de familiares e vítimas — exemplifica.

Em função da alta demanda que o processo envolveria, o especialista sugere alternativas como telemedicina e teleconsultoria, com centros de cuidado em cidades específicas para ancorar as orientações e intervenções.

Como a rede pública de saúde se organiza para os atendimentos

O Ministério da Saúde (MS) informa que adotou uma abordagem para enfrentar a situação emergencial no RS focando em três eixos principais: gestão, formação e assistência. Entre as ações realizadas, estiveram intervenções prioritárias na fase de resposta e início da reconstrução, produção de cartilhas informativas e disseminação de informações, além de atendimentos psicológicos e psiquiátricos, da Força Nacional do Sistema Único de Saúde (SUS).

Conforme o MS, também foi realizada a capacitação de cerca de 15 mil trabalhadores no manejo e cuidado em saúde de mental para atender a população gaúcha. “Mais de 400 voluntários foram monitorados continuamente, e dezenas de atendimentos individuais e intervenções psicossociais foram realizada”, diz nota enviada pelo órgão.

Camila Hermes / Agencia RBS
Hospitais de campanha fizeram parte da estrutura montada em meio à tragédia climática.

A Secretaria Estadual da Saúde (SES/RS) informa que segue as diretrizes mundiais para a estratégia de saúde mental em desastres. Conforme a SES, a indicação é pela “não patologização dos indivíduos, entendendo que muitas pessoas podem ter reações físicas e psíquicas após o desastre, mas que isto não configura, em si, uma patologia como TEPT”, destaca a coordenadora da Política Estadual de Saúde Mental, Miriane Castilhos Oliveira

A pasta destaca que foram destinados R$12 milhões para o financiamento de 192 equipes multidisciplinares de Saúde Mental na Atenção Primária em 104 municípios, com foco em ações comunitárias e coletivas, promovendo autonomia e retomada de rotina. Além disso, a SES afirma que elaborou orientações técnicas para os cuidados em saúde mental nas cidades mais afetadas, visando apoio técnico no enfrentamento de situações de desastres e revisão de planos de contingência.

Em Porto Alegre, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) explica que teve seis serviços de saúde mental alagados, mas o atendimento continua a ser prestado em outros espaços:

  • Caps AD IV Céu Aberto: funcionando no Instituto Dias da Cruz até 31 de agosto. A partir de 1º de setembro, o funcionamento será no Centro POP 1 (Avenida João Pessoa, 2384)
  • Caps AD III Pernambuco: funcionando no CTG Vaqueanos da Tradição
  • Equipe Especializada em Saúde da Criança e do Adolescente Santa Marta: funcionando no Centro de Saúde Cruzeiro
  • Equipe de Saúde Mental Adulto Santa Marta: funcionando no Caps II Altos da Glória
  • Equipe Especializada em Saúde da Criança e do Adolescente Navegantes: funcionando no centro de Saúde IAPI
  • Equipe de Saúde Mental Adulto Navegantes: funcionando no Centro de Saúde IAPI

A SMS ainda informa que realizou capacitações com equipes em maio e junho, e foram contratados novos psicólogos e assistentes sociais para as equipes de saúde que atendem em postos avançados e unidades móveis na Capital. A partir de outubro, há a previsão de dez novas equipes multiprofissionais.

Outra cidade afetada e que com ampla participação na pesquisa é Canoas. Segundo a SMS, todos os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) da cidade estão funcionando normalmente, com acolhimento de portas abertas. A secretaria ressalta que houve integração de profissionais do Serviço Social da Indústria (Sesi) à rede.

Canoas diz que há uma preocupação específica em relação ao TEPT e outros transtornos relacionados a eventos traumáticos. “Desde a catástrofe, diversos treinamentos e capacitações foram realizados para os profissionais da nossa rede”, diz, em nota. Desde maio, a cidade registra 1,3 mil atendimentos na rede de saúde mental.

Sintomas mais comuns do transtorno de estresse pós-traumático

  • Revivência: re-experienciação dos eventos traumatizantes. Desencadeada por gatilhos, a sensação é de que o cérebro retorna aos momentos estressores. São os famosos ‘flashbacks’ ou pesadelos.
  • Evitação: para não passar pela revivência, a pessoa passa a evitar locais, situações e memórias que possam remeter ao evento traumático. É como um mecanismo de defesa do perigo.
  • Distorção da cognição e do humor: causa uma perspectiva negativa sobre si e sobre o mundo, distorcendo a realidade.
  • Hiperexcitabilidade: relacionados a sintomas de ansiedade e sono, como coração disparado, hipervigilância e crise de pânico.
  • Culpa: reação automática do ser humano, mas que atrapalha a recuperação.

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