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Anatomia do desastre

Estudo indica que sete tipos de falhas no sistema de proteção agravaram cheia na Região Metropolitana

Em apenas dois pontos a enchente superou a capacidade prevista das estruturas. Nos demais, deficiências de gestão reduziram o nível de segurança esperado, dizem especialistas

12/12/2024 - 12h28min


Marcelo Gonzatto
Marcelo Gonzatto
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Mateus Bruxel / Agencia RBS
Danos em dique pioraram situação do bairro Mathias Velho, em Canoas, a exemplo de outras cidades da região.

A enchente de maio de 2024 se tornou ainda mais devastadora, na Região Metropolitana, em razão de um conjunto de sete tipos diferentes de problemas que permitiram à água dos rios correr para dentro das áreas que deveriam estar protegidas por muros, diques e casas de bombas.

O detalhamento dos erros que agravaram o impacto da cheia é parte de um estudo recém-concluído assinado por duas dezenas de autores, chamado O Desastre Hidrológico Excepcional de Abril-maio de 2024 no Sul do Brasil. A conclusão é de que deficiências decorrentes da falta de uma gestão adequada do sistema de prevenção ao longo do tempo comprometeram a eficiência da estrutura projetada para resistir a um evento daquela magnitude.

O mapeamento identificou pelo menos 18 locais (veja em mapa abaixo) em que as estruturas de proteção foram superadas pela enchente em quatro municípios supostamente guarnecidos por obras erguidas durante várias décadas: Novo Hamburgo, São Leopoldo, Canoas e Porto Alegre.

Em apenas dois pontos, um em São Leopoldo, outro em Novo Hamburgo, a cheia superou a cota de segurança prevista nos projetos. Em todos os outros, os mecanismos de segurança deveriam ter contido a água, mas não funcionaram como o esperado.

Os erros incluem barreiras com altura abaixo do projetado, trechos desprotegidos e falta de equipamentos simples para evitar o refluxo de água por dentro da canalização de drenagem, entre outros itens (veja detalhes ao final do texto).

— A gente até ficou um pouco surpreso porque, em um dado momento, achamos que o extravasamento que ocorreu, por exemplo, em Canoas, tinha relação com a superação do (previsto no) projeto. Mas não. Percebemos que houve obras, ao longo da vida do projeto, que rebaixaram o dique em alguns pontos, e nesses pontos a água entrou — revela o integrante do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Fernando Fan, um dos responsáveis pelo trabalho.

O texto, já aceito para publicação pela Revista Brasileira de Recursos Hídricos, é assinado por 23 especialistas das universidades do Vale do Taquari (Univates), Federal de Pelotas (UFPel), Federal de Rio Grande (Furg) e Federal de Santa Maria (UFSM), além do Serviço Geológico Brasileiro (SGB) e da UFRGS.

Além de esmiuçar as razões pelas quais municípios da Região Metropolitana que deveriam estar protegidos naufragaram, o estudo detalha as causas e impactos da cheia em outras partes do Estado, como ao longo das margens do Rio Taquari.

O grupo propõe que, na região dos vales, os mapas de inundação não contenham somente as áreas passíveis de ficar abaixo d'água, mas também considerem a profundidade do leito e a velocidade estimada da água em cada local, para projetar os danos potenciais em caso de aguaceiro. Na área metropolitana, é crucial melhorar a gestão e a manutenção das barreiras anticheias.

— Manutenção não é só fazer reparo. É como levar teu carro para uma revisão completa. Tem de ver se tudo está funcionando de forma adequada, se tem de trocar alguma peça. Foi exatamente isso que faltou — complementa Fan.

Veja, a seguir, um resumo das principais razões pelas quais algumas das maiores cidades do Estado foram tomadas pela inundação, segundo os pesquisadores.

Principais problemas do sistema de proteção

1 - Extravasamento sobre o dique

Em dois pontos, nas cidades de São Leopoldo e Novo Hamburgo, o nível máximo do Rio dos Sinos durante a cheia "excedeu a elevação da crista de projeto do dique, e a água fluiu para dentro da zona protegida (pôlder) por galgamento" (transbordamento).

O que poderia ter sido feito: nesses casos, a enchente superou a cota de segurança prevista. Somente um projeto mais robusto, com grau de segurança mais alto, poderia ter evitado a inundação.

2 - Brecha em ponto baixo do dique

Em alguns locais, os diques haviam sido rebaixados por algum motivo, como para permitir que caminhões e tratores acessassem a estrada de serviço sobre eles. Nesses trechos rebaixados, a entrada da água por transbordamento formou brechas que aceleraram a inundação. Essas brechas foram a principal causa das inundações dos bairros Mathias Velho (Canoas), Vicentina e Vilas Brás (São Leopoldo) e Santo Afonso (Novo Hamburgo).

O que poderia ter sido feito: identificação prévia do problema e recomposição dos diques à cota original nos pontos afetados.

3 - Dique abaixo da cota de projeto

O transbordamento dos diques também ocorreu em áreas onde a construção não foi concluída de acordo com as especificações do projeto. Nesses locais, os diques foram erguidos com alturas cerca de 1m50cm abaixo das cotas previstas. Esse problema afetou o bairro Sarandi, no norte de Porto Alegre, e o Rio Branco, em Canoas.

O que poderia ter sido feito: conferência preventiva da altura dos diques e elevação das estruturas até a cota de segurança.

4 - Interrupção no dique, sem comporta

A água também fluiu para a área protegida por pontos onde a linha do dique foi interrompida, deixando um espaço vazio, sem comporta. Isso ocorreu na intersecção de algumas rodovias com o dique, como onde a Avenida Ernesto Neugebauer e a linha da Trensurb cruzam sob a BR-290, no norte de Porto Alegre. Por esse ponto, onde a elevação da avenida é menor do que a dos diques ao redor, a água do Rio Gravataí, represada pela cheia do Guaíba, entrou no pôlder que protege áreas como o bairro Humaitá e o aeroporto Salgado Filho.

Essa falha também ocorreu onde a Avenida Assis Brasil passa sob um viaduto da BR-290, o que contribuiu para a inundação do bairro Sarandi. Além disso, foi identificada uma brecha junto à Usina do Gasômetro destinada a permitir o acesso de pedestres.

O que poderia ter sido feito: instalação de comportas ou algum outro sistema que permitisse bloquear a passagem da água em caso de risco.

5 - Casas sobre o dique

Foram identificados locais onde se formaram brechas porque o dique de terra foi enfraquecido por modificações, como a construção de casas sobre ou ao lado das estruturas, como na zona norte da Capital.

O que poderia ter sido feito: remoção preventiva dos imóveis irregulares.

6 - Rompimento de comporta

Uma das comportas em Porto Alegre colapsou, "provavelmente porque não estava devidamente fixada", conforme o estudo. Grande quantidade de água entrou pelo espaço aberto onde esta estrutura tombou, inundando a parte norte de Porto Alegre, incluindo a região do aeroporto. Além desta comporta colapsada, várias outras comportas apresentaram brechas e falhas de vedação, permitindo que a água do rio vazasse para a área protegida da cidade. O texto conclui que "embora a vazão por essas brechas tenha sido relativamente pequena, é inegável que estas falhas de vedação contribuíram para a inundação das áreas protegidas".

O que poderia ter sido feito: manutenção preventiva, incluindo testes para verificar se todas as comportas resistiriam a uma grande cheia.

7 - Refluxo por casa de bomba

No Centro Histórico de Porto Alegre, próximo ao cais, o sistema de proteção falhou porque houve refluxo pelas galerias das estações de bombeamento, que servem para bombear a água da chuva da cidade para o rio.

O que poderia ter sido feito: o refluxo poderia ter sido evitado pelo uso de válvulas chamadas "flap", que abrem quando o líquido passa em um sentido, mas se fecham se tenta passar no sentido oposto, além do correto funcionamento de tampas de acesso à galeria de drenagem.


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