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Desde  1872

Clube negro mais antigo do país, Sociedade Floresta Aurora completa 150 anos de luta e história

Associação de Porto Alegre é protagonista na busca por direitos e no combate ao racismo

18/11/2022 - 22h01min


Vinicius Coimbra
Vinicius Coimbra
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A história da Sociedade Beneficente e Cultural Floresta Aurora, de Porto Alegre, começa antes mesmo do fim da escravidão no Brasil, em 1888. No ano em que a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, o clube já existia havia 16 anos. Fundada em 31 de dezembro de 1872, associação completará 150 anos no próximo mês, o que faz dela o clube negro mais antigo do Brasil.

Criada entre as ruas Aurora – atual Avenida Cristóvão Colombo – e a Rua Barros Cassal, a organização foi fundada devido a necessidades enfrentadas pelos negros em Porto Alegre, ainda em um contexto com pessoas escravizadas.

— Os negros não tinham onde se reunir. A preocupação deles era que seus amigos, quando morriam, eram enterrados em sepulturas rasas, e os corpos ficavam à mostra depois. Também não havia ritual religioso. Então, esses negros se reuniram para dar assistência às famílias que não tinham como se sustentar sem seu provedor — explica o presidente da associação, Gilmar Afrausino, 67 anos. 

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O clube teve diversas sedes antes de se instalar no bairro Belém Velho, na zona sul de Porto Alegre, em 2013, em um imóvel próprio, onde está até hoje. Atualmente, conta com 150 associados, além de colaboradores que ajudam financeiramente a instituição. 

Conforme o presidente, o clube teve dificuldade durante a trajetória, mas nunca chegou a fechar. O único momento em que não pode receber a comunidade ocorreu devido às restrições da pandemia de covid-19, em 2020 e 2021. Por isso, além de ser dona da sede, a associação tem as contas em dia e "não deve para ninguém", segundo Afrausino. 

A Sociedade Beneficente e Cultural Floresta Aurora está localizada na Estrada Afonso Lourenço Mariante, número 437. A estrutura para os frequentadores inclui  dois salões, um para 280 pessoas e outro para 70, um quiosque para 150 pessoas, duas piscinas e um campo de futebol. Interessados podem virar sócios ao pagar uma taxa e mensalidade de R$ 50; há também a possibilidade de contribuir com a organização com R$ 60. A adesão pode ser feita neste link.

Se a parte financeira está equilibrada, um desafio é enfrentado hoje pela diretoria: a participação dos mais jovens. Segundo o presidente, a organização tem tido dificuldade para atrair o público: hoje a maioria dos frequentadores está acima dos 30 anos. Conforme Afrausino, o fato se deve às opções de lazer disponsíveis à juventude na Capital.

—  O reduto do negro hoje é o samba e o pagode. O clube tem a veia social, é um lugar mais familiar, para vir com o pai, a mãe, o avô. Estamos criando ferramentas para atrair o jovem, como a criação do nosso site, e também estamos atuando muito nas mídias sociais. O jovem é o futuro da Floresta Aurora. Para termos mais 150 anos, temos de trazê-los para cá —diz.

Em abril deste ano, o clube abriu as portas para o registro da foto oficial do aniversário: 150 integrantes, de todas as idades, se reuniram na sede. Naquele dia, também foi lançado o livro que conta a história desses 150 anos.

— Temos uma responsabilidade muito grande com as pessoas que fundaram a associação. O respeito à história é a primeira coisa que aprendemos aqui. A Floresta Aurora sempre foi uma sociedade aberta a todos, que colaborou com a cultura negra no Rio Grande do Sul e no e Brasil — destaca o presidente.

Orgulho familiar

Mateus Bruxel / Agencia RBS
Janice Cunha observa galeria de ex-presidentes na Sociedade Floresta Aurora, no bairro Belém Velho

Janice Cunha, 62  anos, professora aposentada, cresceu com as histórias da vida do avô paterno. Dele sabe que se chamava Isaqe Marçal da Cunha, filho de escravizados, que "quando aprendeu a andar", foi colocado para trabalhar em uma fazenda de arroz em Camaquã, no sul do Estado. 

Aos 16 anos, Isaqe foi para Porto Alegre, onde se tornou alfaiate e foi alforriado, ou seja, deixou de ser escravizado. Diferente da maioria dos negros à época — ela não sabe ao certo quando o familiar nasceu nem onde —, o avô aprendeu a ler e a escrever.

— Ao contrário de outros negros que têm vergonha (de ter escravizados na família), eu me sinto orgulhosa. Mesmo na condição de ex-escravo, ele lutou para ter uma família, dar um nome aos filhos, dar uma vida melhor do que a que teve, com moradia, comida e escola. Se me tornei professora, foi a partir da luta dele lá atrás — diz a aposentada, também integrante da Floresta Aurora. 

Janice não conheceu o avô: o que sabe dele foi contado pelo pai. Uma das histórias remonta à origem da Floresta Aurora, já que Isaqe integrava a confraria que deu forma à sociedade.  Anos depois, ele tornou-se presidente da associação. 

Além da morte do familiar, em 1946, pouco a neta sabe da história do avô. Isso porque, à época, eram raros os negros que tinham documentos com informações completas. Segundo Janice, crianças eram arrancadas das mães e levadas para fazendas, eram escravizadas,estupradas e engravidavam, e essas crianças nasciam sem pai conhecido. Nesse contexto, o analfabetismo do grupo era regra. Esses e outros motivos atrapalham Janice a rastrear a trajetória do avô paterno e, por consequência, a origem da própria família.

— Imagina o seu avô ser o material de venda de alguém. Apesar de tudo, ele se tornou um alfaiate e conseguiu ser um presidente de uma sociedade que existe até hoje. Penso que eu poderia estar na situação dele (escravizado) se não tivesse acontecido a abolição. Lembrar dele me dá forças — completa Janice.

História

O Dia da Consciência Negra também está ligado à história da Sociedade Floresta Aurora. Isso porque alguns dos integrantes do clube também criaram o Grupo Palmares, uma associação de ativismo político e cultural organizada no período da ditadura militar. Na Porto Alegre de 1971, eles propuseram que houvesse um dia no calendário para a população refletir sobre a questão racial, não apenas na capital gaúcha, mas em todo o país. 

Entre os pontos discutidos estava a não concordância com o 13 de maio, dia da Abolição da Escravatura, como símbolo para a comunidade negra. Para o grupo, o 20 de novembro, dia da morte de Zumbi dos Palmares em  1695, simbolizava a justiça da luta dos negros pela liberdade. 

Dessa forma, em 1971, o dia da morte de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares — situado entre os Estados de Alagoas e Pernambuco, no nordeste do Brasil — foi comemorado o primeiro Dia do Negro, por influência do Grupo Palmares. Mas foi apenas em 2011, durante o governo de Dilma Rousseff, que o Dia da Consciência Negra foi instituído oficialmente no país, por força de uma lei federal.

— A semente do Dia da Consciência Negra nasceu aqui (em Porto Alegre). E a semente do Grupo Palmares veio da Sociedade Floresta Aurora. Eu resumiria (a sociedade) na palavra resiliência, no sentido de se recuperar. Com todo o racismo, todo o preconceito e segregação, ela se mantém de pé há 150 anos — diz Antônio Carlos Côrtes, 73, um dos fundadores do grupo e presidente do Floresta Aurora na década de 1970.

Para Jaime Benedito Alves Nuncia, 74 anos, funcionário público aposentado e um dos organizadores do livro Floresta Aurora 150 Anos Fazendo História, o Dia da Consciência Negra deve ser entendido como uma conquista. No entanto, o caminho para uma sociedade sem racismo, discriminação ou preconceito precisa continuar em diversas frentes, principalmente no campo político.

Mateus Bruxel / Agencia RBS
Busto de João Cândido Felisberto, o Almirante Negro, um dos líderes da Revolta da Chibata, está exposto na sede da Floresta Aurora

— É caminho incipiente, que tem de ser construído. Acho que essa construção não será rápida porque, além da oposição natural (entre partidos políticos), já que os negros estão se filiando a partidos que hoje são considerados de oposição (ao atual governo), ainda tem a questão do racismo. Assim, o racismo e a ideologia impedem que o negro cresça politicamente — ressalta. 

Para Jaime, que também é autor de seis livros de contos, o último, lançado neste ano, História do Negro Fugido, o principal problema enfrentado pelos negros hoje no Brasil é o racismo estrutural, definido por ele como estruturas — públicas, empresas e universidades, por exemplo — que "não permitem ou falseiam o ingresso do negro". 


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