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Saiba mais sobre o tropeirismo, tema dos festejos farroupilhas deste ano

Atividade quase em extinção marca a história gaúcha

06/09/2018 - 07h00min

Atualizada em: 07/09/2018 - 11h30min


Carolina Lewis
Carolina Lewis
Isadora Neumann / Agencia RBS
Pedro guarda as lembranças da família tropeira

Pelegos, esporas, facas, mala de garupa, boina, tirador e muitas fotos são algumas das lembranças que o advogado Pedro Floriano Magalhães, 46 anos, guarda com carinho do pai, o tropeiro José Floriano Magalhães. Tio Flor, como era conhecido entre os amigos de tradição, exerceu por toda a vida, em Santana do Livramento, a atividade de conduzir boiadas a cavalo. Com o tropeirismo, não só criou seis filhos mas também ensinou a lida a dois deles, deixando a tradição se perpetuar na família mesmo após sua partida, em 2006.

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Em Cachoeirinha, onde mora com a mãe e uma das irmãs, Pedro faz questão de continuar cultivando os costumes gaúchos que trouxe do Interior. Com orgulho, mostra fotos e relembra com saudade a infância, quando, nas férias da escola, participava das tropeadas com o pai e o irmão.

– O pai sempre me incentivava a participar. Daí, um dia, quando eu tinha 12 anos, ele me disse: "amanhã tu vais comigo". A mãe ficou preocupada, mas era um tropeada pequena, de quatro ou cinco dias – lembra. 

Isadora Neumann / Agencia RBS
O pai, Tio Flor

Tio Flor foi um dos últimos tropeiros em exercício aqui no Estado. Começou cedo: aos cinco anos, conduziu sua primeira tropa. Ele e outro menino, da mesma idade, levaram a pé 2.000 perus da localidade de Sarandi a Cerro Chato, no interior de Santana do Livramento _ uma distância aproximada de 50 quilômetros. Com o exemplo do pai, Pedro tomou gosto pela atividade:

– Pra mim, era uma aventura, mas também fiz disso uma profissão. Com o dinheiro, eu podia comprar uma bombacha nova, uma guaiaca, um basto (cela) . Chegava no desfile de 20 de Setembro com a pilcha completa – recorda.

Arquivo Pessoal / Arquivo Pessoal
Pedro criança, a cavalo

Em média, as viagens duravam dez dias. Mas, dependendo da quantidade da tropa, poderiam se estender. Por isso, era importante saber montar uma boa mala de garupa com mantimentos e itens de higiene pessoal. Se, pelo meio do caminho, encontrassem uma estância que oferecesse pouso e banho, estariam no lucro. Isso porque, na maior parte das vezes, os campos e os corredores (estradas de chão por onde passavam as tropas) é que serviriam de acomodação. 

– Tu levas a tua casa em cima do teu cavalo. Dois pelegos servem de cama, o basto de travesseiro, o poncho te protege da chuva e do frio e o pala não deixa o sol judiar do corpo e também serve de lençol – afirma.

Irmão segue na lida

Pedro acabou não seguindo a profissão. Mas o irmão, Leoni Magalhães, 55 anos, que ainda mora em Santana do Livramento, continua trilhando o caminho que o pai iniciou e repassando a tradição para a filha, Fernanda Magalhães, 18 anos.

Isadora Neumann / Agencia RBS
Leoni Magalhães na lida campeira

– Sempre gostei de tropa porque me criei nessa lida. Hoje, não tem muita por aqui. Mas, quando tem, eu faço. Agora mesmo, no inverno, levei a Fernanda comigo pra uma tropinha pequena de três dias. Pegamos uma geada muito forte, mas ela se acostuma, né? – comenta Leoni. 

Foi ao lado dos filhos que Tio Flor realizou a maior tropeada da sua vida. De Itaqui a Livramento, conduziu 5 mil cabeças de gado. A quantidade era tão grande que foi preciso dividir o rebanho em dois para não "pesar a culatra" (parte de trás da tropa onde vai o capataz e um peão). Um caminhão passava a cada dois dias, recolhendo os animais que ficavam pelo meio do caminho _ geralmente os mais velhos ou as vacas que davam cria. 

Cada boiada foi conduzida por duas tropas de 10 homens durante 30 dias, totalizando 60 dias de andanças. O feito ficou conhecido entre os tradicionalistas e ganhou homenagem do compositor Elton Saldanha, na música "Ronda de Tropa".

Tema pouco conhecido

O tropeirismo é o tema escolhido para comandar os festejos farroupilhas deste ano. De acordo com Valter Fraga de Nunes, do CTG Armada Grande de Viamão, a necessidade de abordar o assunto surgiu em 2016, durante a 28ª edição da Festa Campeira do Rio Grande do Sul (FECARS), tradicional evento do meio. 

– A maioria das pessoas não conhecia o tropeirismo e ficou deslumbrada com a importância disso para a história. Ao contrário do que se fala, o Rio Grande do Sul não foi feito a patas de cavalos, foi feito a patas de bois e de mulas. O cavalo é um acessório – afirma.

O tropeirismo é parte importante da formação gaúcha, pois permitiu a integração do Sul do país à economia nacional. Primeiro com o comércio de mulas para o transporte de cargas, no final do século XVII e, depois, com a exploração e venda do gado que era levado da campanha e do litoral gaúchos para São Paulo. 

Por acreditar na importância do tema, desde 2015, Valter realiza o projeto "Tropeirismo nas Escolas", por meio do qual orienta professores a introduzir o tema nas aulas. A primeira cidade a implantar a ideia foi Bom Jesus, mas outros municípios, como Passo Fundo, Cruz Alta e Rolante, já manifestaram em suas Câmaras de Vereadores o interesse pelo projeto.

Isadora Neumann / Agencia RBS
Uma tropeada de bois

Curiosidades

- Antigamente, a tropeada era a única maneira de transportar os animais comercializados. Hoje, a atividade é cada vez menos comum, sendo utilizada geralmente em curtas distâncias ou onde o acesso por estradas é precário. No Pantanal (região centro-oeste do país), ainda é muito praticado nos períodos das cheias.

- Inicialmente, as tropas eram formadas por mulas e burros. Com o passar do tempo, animais como porcos, gansos, perus passaram a ser conduzidos, conforme a necessidade de cada região. 

- Geralmente, as tropas partem bem cedo, entre 4h e 5h, e seguem pela estrada até perto do pôr do sol. Nos intervalos do almoço e da noite, os tropeiros procuram parar em locais próximos a rios e pastos para alimentar e manter o gado por perto. Além de aproveitarem a água para consumo e higiene pessoal.

Isadora Neumann / Agencia RBS
A cuia que Tio Flor utilizava nas tropeadas

- Na mala de garupa, eles costumam levar mantimentos em pequenas quantidades como café, açúcar, erva-mate e além de uma garrafa com salmoura para salgar a carne. Também não podem faltar cuia (geralmente de tamanho pequeno para não ocupar muito espaço) e cambona (chaleira rústica utilizada para esquentar a água).

- Chamada de "consumo", a carne disponibilizada pelos estancieiros para a alimentação dos tropeiros de bois é sempre a ovelha. Quando viva, vai no meio da boiada e, se carneada, é levada debaixo do arreio. 



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