Notícias



Bom Jesus, Restinga e Lomba do Pinheiro

Iniciativas valorizam a cultura africana e incentivam a autoestima em crianças e adolescentes de Porto Alegre

Reportagem conta a história de três projetos iniciados em escola da Capital que trabalham em nome da diversidade

01/06/2019 - 05h01min

Atualizada em: 01/06/2019 - 14h39min


Jéssica Britto
Enviar E-mail
Alberi Neto
Alberi Neto
Enviar E-mail

Desde janeiro de 2003, a Lei nº 10639, torna obrigatório o ensino sobre história e cultura afro-brasileira nas escolas de Ensino Fundamental e Médio do país. Enquanto a aplicação da lei ainda engatinha, alguns projetos protagonizam verdadeiras transformações na vida de jovens gaúchos. Em Porto Alegre, ações que buscam enaltecer a ancestralidade e a cultura negra crescem.

Esta reportagem apresenta três exemplos que recorrem sobre esse viés. São atitudes que começam pequenas e crescem beneficiando famílias inteiras, espalhando conhecimento e o mais importante: eliminando preconceitos.

Leia outras notícias do Diário Gaúcho

Solte o cabelo e prenda o preconceito

A sala de aula está lotada. Do palco, a professora Larisse Moraes, 36 anos, fala sobre o continente africano e mostra alguns dos países mais ricos da África. A cada imagem projetada no quadro, uma nova reação. Do meio das cabecinhas borbulhantes e ativas, uma voz ecoa: "Viu? a África não é só bicho!", diz um dos alunos aos colegas. 

Desmistificar a imagem do continente que é apresentada ao restante do mundo e oferecer uma educação étnico-racial são alguns dos objetivos que norteiam o projeto Afroativos, da Escola Municipal Saint Hilaire, na Lomba do Pinheiro, criado há três anos.

Fernando Gomes / Agencia RBS
A profe Larisse dá uma aula sobre o continente africano para os pequenos

Em 2016, durante uma atividade de aula, uma aluna de 10 anos de Larisse escreveu uma carta sobre o próprio cabelo. Ela questionava o que seus fios tinham de errado, pois as pessoas faziam comentários negativos sobre ele. 

Aquele fato fez a professora pensar, pois cruzou também com questões pessoais de Larisse que, por mais de 20 anos, alisou o próprio cabelo. A docente viu naquela manifestação a necessidade de mostrar que os fios de alguém — sejam eles crespos, lisos ou com tranças — não determinam quem esta pessoa é. Além disso, essa questão deveria envolver também os meninos, que, muitas vezes, raspam o cabelo por não gostarem dele ao natural.

 —  O Afroativos começou pelos cabelos, mas isso tudo vai além da estética. É preciso falar da nossa ancestralidade, da nossa história. É a "afrobetização" por meio do conhecimento   —  explica Larisse.  

Leia também
Coletivo Quilombelas completa um ano de trabalho em prol da representatividade em escola da Restinga
Estudantes visitam escolas para passar mensagens de valorização da cultura negra e de diversidade
RS condenou 6,8% dos réus por racismo e injúria racial

Aceitação

A estudante Ginny Lopes, 14 anos, conta que já ouviu comentários em função do seu cabelo:

— Eu não gostava do meu cabelo, sempre usava coque, no dia que resolvi soltar, vários colegas me xingaram. Mas eu comecei a conversar com a professora e passei a soltar ele. Também li a cartinha da aluna (que motivou o início do projeto) e um dia no recreio vi quando ela estava de cabelos soltos e as pessoas comentavam. Ela entrou na sala de aula de capuz e a professora disse que ela não precisava fazer aquilo.

Já Ketlyn Vieira, 10 anos, entrou na escola este ano e interessou-se pelo projeto, que já causou mudanças em seus hábitos:

— Eu entrei na escola esse ano. Quando nos apresentaram os projetos oferecidos eu optei por esse e pelas aulas de flauta. Na minha antiga escola eu ia de cabelo preso, porque quando eu soltava zoavam de mim. Agora uso ele solto porque isso transforma — conta. 

Fernando Gomes / Agência RBS
Gurizada do projeto exibe cheia de orgulho os fios

As declarações genuínas demonstram que, ao mesmo tempo em que a escola tem poder para transformar, ela pode ser um ambiente difícil, onde o apoio dos pais e professores é fundamental para crianças e adolescentes.

— Casos de racismo acontecem na escola e isso pode marcar por uma vida toda. Queremos trazer conhecimento, quebrar esses ciclos de exclusão, de ignorância. Ressignificar a história e a cultura — explica a docente. 

Reconhecimento nacional e internacional

O Afroativos cresceu, ganhou espaço e notoriedade. Na escola, contempla nove turmas, inclusive uma do jardim. Há grupos de estudo só para tratar da temática. Um calendário comemorativo com datas significativas para a cultura afro foi lançado este ano e serviu de inspiração para uma reportagem do jornal angolano Nova Gazeta. 

No último dia 13 de maio, a professora Larisse esteve no programa Encontro, da apresentadora Fátima Bernardes, falando sobre o projeto. Este ano, a iniciativa foi finalista do prêmio Sim à Igualdade Racial, na categoria Educação e Oportunidades, do Instituto Identidades do Brasil. Em agosto, será apresentado no seminário promovido pelo Observatório da População Infanto-Juvenil em Contextos de Violência, em Natal (RN). A ideia é que o evento conte com a participação da professora e mais três alunos. Para isso, eles buscam apoio. 

/// Para falar com o Afroativos, em contato com Larisse no (51) 99632.1656 ou pelo e-mail afroativos@gmail.com. 

Uma nova visão sobre a Bonja

Quando o professor de geografia Bruno Xavier, 35 anos, começou a lecionar na Escola Municipal Nossa Senhora de Fátima, na Bom Jesus, em 2015, ele notou que a imagem negativa que as pessoas faziam do bairro era diferente da realidade que ele estava conhecendo.

Leia também
Para aprender sobre a responsabilidade de ter filhos, alunos cuidam de "bebê" durante todo o ano
Série do Diário Gaúcho acompanha turma de pré-vestibular popular na busca pela vaga no Ensino Superior

— Eu percebia que os alunos tinham baixa autoestima em relação à aprendizagem, às perspectivas de futuro mas, ao mesmo tempo, eu notava que isso estava ligado às representações que se têm sobre a Bonja. Foi então que eu pensei em desenvolver ações que mudassem essa imagem distorcida — explica.

Bruno abriu então espaço para um grupo de pesquisa, o Quilombonja, que nasceu para mostrar uma Bom Jesus diferente. Ativistas e líderes da comunidade são convidados a contar suas histórias e a dividir com os estudantes um novo olhar sobre o bairro. O projeto chamou atenção na cidade e tem sido apresentado em seminários, universidades e outras escolas. Um passo importante no processo de mudança de uma realidade.

Omar Freitas / Agencia RBS
Quilombonja oferece outros olhares sobre o bairro para os estudantes

— Quando alguém falava do meu bairro, eu ficava quieta e achava que era verdade. Mas hoje eu sei que a Bom Jesus não é formada por uma única história. Existem várias Bom Jesus dentro da Bom Jesus. Não é só tiroteio, traficante. Existem atividades sociais, eventos, suporte da escola — opina a aluna do 9ª ano Taissa Elisângela Gomes, de 14 anos.

Visibilidade

Mostrar o papel das mulheres do bairro é outro ponto trabalhado pelo grupo. Muitas mulheres protagonizaram as maiores lutas da Bonja, mas a decisão do que iria ser feito acabava sempre nas mãos dos homens, segundo Bruno. Diante do conhecimento, o posicionamento das próprias alunas mudou. 

— Vejo que as gurias têm outra postura, porque agora elas conhecem essas mulheres — disse. 

/// O Quilombonja já tem uma página no Facebook onde divulga suas ações. A ideia é ampliar e criar um canal de vídeos no YouTube, reativar a rádio da escola e elaborar um livro que ilustre a história do bairro.

Uma nova consciência para as crianças

Professora da rede municipal de Porto Alegre, Perla Santos, 35 anos, viu na sala de aula a chance de mudar a consciência de crianças negras sobre si mesmas. Em 2015, diante da didática que era aplicada nas aulas — onde a história do continente africano e do povo negro é contado do ponto de vista da exploração europeia — ela resolveu criar um grupo voltado para meninas negras da Escola Municipal de Ensino Fundamental Senador Alberto Pasqualini, na Restinga, onde dá aulas. 

Robinson Estrásulas / Agencia RBS
Meninas e suas famílias participam de atividades como aulas de yorubá e de dança

A ideia era trabalhar os problemas de autoestima e autoimagem das gurias e de suas famílias. No ambiente escolar, o maior desafio das meninas negras costuma ser em relação ao cabelo, daí o nome do movimento: Meninas Crespas.

— É importante que elas entendam como o cabelos delas é lindo naturalmente. Se a menina não quer, ela não precisa prender, alisar, cortar, nada disso — conta Perla.

Leia também
Iniciativa propõe ensino de idioma africano e criação de biblioteca comunitária na Restinga

Aulas

O projeto cresceu e passou a funcionar na Casa Emancipa, no bairro Restinga, sem ligação com a escola. Atualmente, além dos encontros para debater a valorização da negritude, o grupo conta com a parceria de professores de diversas áreas. Recentemente, foi formada uma turma para o aprendizado da língua africana yorubá. Além das meninas, as famílias também têm aulas de danças africanas e negras. 

Perla ainda diz que, voluntariamente, o doutor em Ciências Alan Alves Brito, que é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mostra aos alunos personalidades negras que são referência no mundo científico-acadêmica. 

— É uma ação para quebrar esse mito de só pessoas brancas ocupam este espaço. Batizamos como "Crespas na Ciência" — conta a criadora do projeto. 

Mudança evidente no comportamento

Entre as integrantes do projeto, várias histórias chamam atenção. A comerciária Karina Borges, 37 anos, revela a mudança que o Meninas Crespas aplicou na vida de sua filha. Rafaella, hoje com 10 anos, sofria com o racismo na escola onde iniciou sua vida letiva. A mãe recorda os questionamentos que a pequena costumava trazer para casa:

— Ela perguntava a razão de o cabelo dela ser black power. Se só ela era assim. Uma vez, ela chegou a perguntar se poderia fazer alisamento.

Robinson Estrásulas / Agencia RBS
Karina incentiva a pequena Rafaella a participar do projeto Meninas Crespas

A mãe resolveu transferi-la para o colégio Pasqualini. Lá, Rafaella conheceu a professora Perla. A identificação logo veio, era a primeira personalidade negra que a menina convivia fora do círculo familiar. Com o convite da criadora do Meninas Crespas para que a menina também fizesse parte do movimento, o cenário mudou totalmente.

— O projeto fez ela se conhecer e se amar mais. Hoje ela tem orgulho do cabelo dela — garante a mãe.

Auxílio

/// O projeto lançou recentemente uma biblioteca afrocentrada, que está recebendo doações. Além de livros, materiais pedagógicos e escolares são bem-vindos.
/// Tecidos e acessórios com estampas étnicas ajudam na construção dos figurinos usados nas aulas e apresentações. As meninas crespas também buscam por padrinhos. Atualmente, são as próprias mães-coordenadoras que financiam as ações.
/// O contato com o grupo pode ser feito pelos telefones (51) 98562-5310, (51) 99621-5867 ou (51) 99641-2346, com Perla, Paula ou Lisbet.
/// Pessoalmente, o atendimento é na Casa Emancipa, Avenida Vereador Milton Pozzolo de Oliveira, 59, na Restinga (ao lado da quadra da escola de samba Estado Maior da Restinga).

Opinião de especialistas

"A ideia é institucionalizar as iniciativas"

"Temos uma lei com 16 anos (Lei nº 10639) que enfrenta sérios problemas de implantação e esses coletivos são extremamente importantes para que o trabalho se efetive. Porto Alegre tem um dos piores índices de desenvolvimento humano para a população negra do país. Com as cotas raciais houve uma crescente de professores negros na rede e isso deu um impulso para que a gente pudesse se conhecer mais. Este ano, iniciamos uma atualização de dados sobre estes projetos, para que juntos esses professores pudessem trabalhar e compartilhar as experiências. A ideia é institucionalizar as iniciativas para que, mesmo que o professor saia da escola por algum motivo, o projeto continue. 

Autoestima é um dos princípios da aprendizagem e trabalhar a identidade racial com vínculo histórico faz com que eles se vejam como parte do todo, tenham uma sensação de pertença, noção de comprometimento com a sua comunidade e se apropriem do processo de construção da cidadania. Esses alunos precisam se enxergar e o professor também tem, desta forma, com quem compartilhar, fortalecer, dialogar. As famílias também têm auxiliado muito. Um conhecimento conjunto, mais solidário e efetivo".

Pedagoga, Mestre em Educação pela UFRGS e Assessora Técnico-Pedagógica do Núcleo de Cultura e Diversidades da Secretaria Municipal de Educação (Smed), Patrícia da Silva Pereira, 49 anos. 

"São iniciativas que assentam em valores civilizatórios afro-brasileiros"

    Há vários pontos comuns nos projetos educacionais que convém sublinhar. Em primeiro lugar, vinculam-se ao trabalho de educadores(as) negros(as), a partir de referenciais afrocentrados que, em si mesmos, são dispositivos anti-racistas ao devolver protagonismo para pessoas negras. Em segundo lugar, são iniciativas que assentam em valores civilizatórios afro-brasileiros, conforme preconizam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira e o Art. 26A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB (Lei 9.394/96). Em terceiro lugar, são ações educativas eficazes, libertadoras, com alta capacidade de transformação dos pressupostos do racismo vigente em nossa sociedade pois incentivam jovens estudantes a perceberem sua capacidade criativa de agir no mundo, não como "periféricos", "vulneráveis" ou "excluídos sociais", mas como pessoas capazes como quaisquer outras a seguir com segurança e confiança seus próprios caminhos. 

José Rivair Macedo. Professor Titular do Departamento de História - UFRGS. Docente das disciplinas: História e relações étnico-raciais; História da África e afro-brasileiros.  


MAIS SOBRE

Últimas Notícias