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Em Porto Alegre

Primeiro quilombo urbano do Brasil completa 10 anos de titulação

Local fica entre as ruas João Caetano e Ana Maltz Knijinik, no bairro Três Figueiras

30/11/2019 - 05h00min


Jéssica Britto
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Jefferson Botega / Agencia RBS
Lígia com a titulação, em casa: uma década de conquistas

Cercada por prédios e residências de alto padrão, uma pequena extensão de terra em meio ao bairro Três Figueiras, em Porto Alegre, guarda anos de trajetória e de uma luta que marcou a história do país. Neste ano, a família Silva comemora 10 anos da titulação do primeiro quilombo urbano do Brasil. Quem circula pelo bairro talvez nem saiba que entre as ruas João Caetano e Ana Maltz Knijinik vive uma família que precisou ir ao embate para garantir o seu direito à moradia. Essa batalha abriu caminhos para que outros quilombos urbanos conseguissem formalizar sua situação por todos os cantos do país.

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Em Porto Alegre, essa história começa nos anos 1940, com a chegada de Naura Borges da Silva, natural de São Francisco de Paula, e Alípio Marque dos Santos, de Caçapava do Sul, à Capital. O casal encontrou o pedaço de terra, em uma época em que o bairro ainda era tomado por vegetação, e poucos prédios. Nas proximidades, só havia um pavilhão do Colégio Anchieta e outro do Farroupilha. Naquele local, o casal construiu uma pequena casa e passou a plantar para a própria subsistência. Naura já tinha uma filha e, depois, teve mais uma com Alípio. 

– Minha mãe era filha só da minha avó e vivia em São Francisco de Paula. Meus avós alugavam peças da casa para rapazes solteiros. Um dia, meu pai foi a São Francisco e conheceu minha mãe. Quando retornou para Porto Alegre, a pediu em casamento. Eles casaram aqui mesmo, nessas terras – conta Lígia Maria da Silva, 63 anos, neta de Naura e Alípio, e filha de Ana Maria da Silva e Euclides José da Silva, já falecidos.

Uma comunidade

Foram os pais de Lígia que ajudaram a povoar ainda mais as terras da família. Dois anos após o casamento tiveram Lígia e, na sequência, mais 10 filhos. Todos os herdeiros permaneceram no local, onde acabaram criando suas famílias. Hoje, a área remanescente de quilombolas tem cerca de 80 pessoas – destas, 22 crianças –, e 20 casas. As primeiras residências ali construídas já não existem mais. 

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Por décadas, a família viveu sossegada em seu canto, enquanto do lado de fora a cidade se desenvolvia em ritmo frenético. Mas foi em 1997, quase 60 anos após a chegada dos primeiros moradores da área, que os problemas começaram a aparecer. 

Naquele ano, Euclides faleceu. Alguns meses depois, chegou a primeira ordem de despejo. O terreno era reivindicado por algumas empresas da Capital. Desesperados, Lígia e os irmãos começaram a procurar um novo lugar para morar, mas, sem condições de pagar por uma nova área, resistiram às pressões externas. Por orientação de um funcionário da prefeitura àquela época, tomaram conhecimento de que poderiam reinvindicar a área como um espaço remanescente de quilombolas. Mesmo assim, vários despejos ocorreriam nos anos seguintes. 

Jefferson Botega / Agencia RBS
Parte da história do local contada em uma faixa comemorativa

Resistência e apelos a Lula

O momento mais dramático ocorreu em 2005 e durou 15 dias. Entidades religiosas, órgãos ligados aos direitos humanos, famílias quilombolas e moradores de bairros vizinhos apoiaram a família Silva. 

– Queimamos pneus, fechamos ruas, acampamos em frente ao Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, responsável pela titulação dos territórios quilombolas). A polícia foi chamada, veio uma tropa armada aqui para frente. Foi quando o Incra emitiu um termo de posse, sem nem saber se aquilo funcionaria, e a coisa acalmou – conta Lígia.

Genaro Joner / Agencia RBS
Em 2005, protesto no Incra

Em 26 de outubro de 2006, o governo federal emitiu um decreto que denominava o local área quilombola de interesse social. Era uma segurança jurídica, mas ainda não era a garantia a qual tanto buscavam e que só viria com a titulação.  

– Numa passagem do Lula em Porto Alegre, em 2008, eu juntei um papel do chão e escrevi “Quilombo Silva pede ajuda”. Aquele bilhete foi passando de mão em mão até chegar nele – lembra Ligia.

Meses depois, Lula retornou para o lançamento da pedra fundamental da BR-448. A família Silva foi até lá. 

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– Fomos cercados por seguranças, e nos deram, inclusive, voz de prisão. A confusão chegou até o presidente – relata o advogado Onir de Araújo, especialista em defesa territorial quilombola.

O grupo retornou para casa, quando recebeu uma ligação inesperada.

– Era da Casa Civil da Presidência, informando que no dia 24 de setembro (um mês depois do protesto) iriam emitir o título – relata o advogado.

Precedente para outros núcleos 

A comemoração ficou por conta da família e de todos que ajudaram na missão. Depois de mais de 10 anos de uma luta incansável, finalmente, os Silva estavam seguros nas terras que há décadas pertenciam à família. A Associação Comunitária do Quilombo da Família Silva é quem pratica a gestão coletiva do território que, desde então, tornou-se imprescritível (que não fica sem efeito) e impenhorável (que não se pode penhorar). 

Lígia, que hoje é presidente da associação e replica a história dos antepassados aos netos e bisnetos, agora vive tranquila no cantinho onde nasceu e escolheu ficar até o fim da vida. A trajetória dela, de seus irmãos e filhos abriu precedente para que muitos outros quilombos urbanos buscassem pelo mesmo direito. Atualmente, só em Porto Alegre existem sete áreas urbanas remanescentes de quilombolas.



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