Comércio ambulante
Especialistas em "distanciamento dos fiscais", camelôs do Centro driblam efeitos da pandemia
Preocupação com vendas em baixa e rigor da fiscalização se sobrepõem ao vírus
Debaixo das máscaras, os camelôs da Esquina Democrática dão uma boa gargalhada da piada de um deles sobre as mudanças com a pandemia da covid-19:
— Não mudou nada porque sempre praticamos o distanciamento social. Quando a Smic aparece e a gente corre o mais distante que consegue!
Brincadeira à parte, não há dúvida de que o coronavírus mudou a rotina dos ambulantes do Centro Histórico de Porto Alegre. Mas a preocupação com a covid-19, em si, fica em segundo plano. Em conversas com a reportagem na condição de anonimato (os nomes desta reportagem são fictícios), eles relatam queda de vendas, fiscalização mais rigorosa e incerteza sobre o futuro próximo, principalmente ao final do auxílio emergencial de R$ 600.
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Renato, 46 anos e mais de 10 nos arredores da Esquina Democrática, está na segunda parcela do benefício. Mas não é dinheiro o suficiente para mantê-lo em casa:
— A gente tem que vir trabalhar porque esses R$ 600, com dois filhos em casa, não dá nem pro cheiro. Só que está difícil. A fiscalização apertou. Esses produtos, aqui, não são meus. Os meus, eu ainda não coloquei porque acho que a Smic vai aparecer logo mais.
É curioso que a Smic, onipresente nas falas dos camelôs, nem existe mais. No governo Nelson Marchezan, a antiga Secretaria Municipal de Indústria e Comércio foi incorporada pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico. Segundo a prefeitura, a impressão dos ambulantes de que a fiscalização está mais rigorosa na pandemia pode ser porque, desde 31 de março, todas as medidas de fiscalização que envolvam o coronavírus foram centralizadas no gabinete do prefeito. A integração fez com que a equipe de fiscais ganhasse reforço de outras secretarias, podendo multiplicar as abordagens.
O impacto junto aos camelôs é que a visita indesejada da prefeitura ficou mais imprevisível, e focada não na nova fiscalização do distanciamento social, mas no velho recolhimento dos produtos. Eles também se sentem mais expostos do que nunca: a mesma aglomeração que espalha o coronavírus serve para ocultar visualmente quem vive da informalidade. Agora, estão ilegais a olhos vistos.
Já as medidas de prevenção ocorreram espontaneamente, e não são das mais rigorosas. As barracas são montadas um pouco mais distantes umas das outras e a maioria dos atendentes usa máscara. Mas são incontáveis as vezes em que eles tocam o rosto, tomam chimarrão, levam a máscara ao pescoço ou tiram para chamar atenção da clientela mais alto. A pandemia aparece nos produtos: quase todos anexaram modelitos de máscara ao catálogo.
— Também comecei a vender mais calças de moletom, boas de ficar em casa. Não sei se foi o coronavírus ou o inverno — declara Valter, de 20 anos.
Vendas preocupam mais que o vírus
Mais experiente do que a maior parte dos colegas de vendas, Reinaldo é peruano, tem 57 anos e se diz mais preocupado com as vendas em baixa do que com o vírus. Está particularmente chateado com o fechamento das Lojas Americanas bem em frente à sua banca. O fluxo da loja chamava atenção também para a sua banca de pulseiras, e agora pensa em mudar de ponto. Passando álcool na maquininha de cartão, ele se diz solidário aos colegas imigrantes.
— Os fiscais não me incomodam. Só incomodam quem vende pirataria. Mas coitados, sabe? Moram amontoados, não estão vendendo nada e ainda têm que ficar correndo o tempo todo dos fiscais. Tenho pena — diz o peruano, observando uma dupla de jovens senegaleses.
Já os imigrantes entendem cada vez menos português conforme são perguntados sobre coisas desconfortáveis como coronavírus, fiscalização, vendas e tudo mais. Um deles resume a forma objetiva como encaram a pandemia:
— Para corona, tenho máscara — afirma o jovem, oferecendo um modelito com logotipo falsificado.