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Em junho, 2,9 mil pessoas aguardavam atendimento psicológico na Capital

Para ajudar moradores, ONG do bairro São José criou rede alternativa que presta acolhimento em saúde mental

28/08/2021 - 05h03min


Mateus Bruxel / Agencia RBS
É na sede do Coletivo Autônomo (E) que são realizadas as consultas com a comunidade

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Ser uma pessoa saudável vai além de estar fisicamente bem. Os transtornos mentais, como depressão, ansiedade e síndrome do pânico, também são marcas de adoecimento. Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde, podem ser muitos os sintomas gerados pelos problemas psicológicos, como pensamentos, emoções e comportamentos confusos, que por vezes atrapalham as relações com outras pessoas. 

Apesar de graves, essas doenças não costumam ter um tratamento muito acessível, nem mesmo pelos serviços oferecidos pelo sistema público. Segundo dados divulgados pela Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, em junho, havia 2,9 mil pacientes na fila de espera por acompanhamento com profissionais especializados em saúde mental. Sem atendimento, estas pessoas correm o risco de terem seu quadro de saúde agravado, envolvendo até a possibilidade de tentar o suicídio. 

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Percebendo essa falta de acesso, grupos e profissionais da Capital têm desenvolvido projetos de atendimento em psicoterapia focados em suas comunidades. O objetivo é fortalecer seus territórios e quebrar o preconceito e outras dificuldades enfrentadas quando o assunto é saúde mental. 

Tratamento: muito além da prescrição de medicamentos

A trabalhadora doméstica Daiane Almeida Severo, 33 anos, mora no bairro São José, em Porto Alegre. Conviver com as frequentes crises de ansiedade foi um desafio com o qual teve de lidar por longos anos. Ela e o esposo estavam sempre ocupados com seus trabalhos. Então, a rotina muito corrida e os cuidados constantes que precisava dedicar ao filho de nove anos passaram a ser, com o tempo, motivo de brigas entre o casal.

A criança, vendo os desentendimentos dos pais, passou também a ser afetada emocionalmente pelos conflitos. Este foi o cenário que deixou a doméstica ainda mais abalada. 

Sem conseguir lidar sozinha com suas questões psicológicas, em 2019, Daiane decidiu buscar ajuda em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) perto de sua casa, porta de entrada para os serviços especializados em saúde mental oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). No posto, foi atendida pela equipe médica e, buscando controlar suas crises, recebeu a prescrição de medicamentos para a ansiedade. 

Conforme os meses foram passando, Daiane viu aumentar sua necessidade de ter um acompanhamento psicológico, pois percebeu que os remédios que vinha tomando já não estavam fazendo o efeito esperado. Ela acabou desistindo de esperar, se tornando uma das pacientes que, durante meses, aguardou na fila por atendimento em saúde mental no município.

No Brasil, os atendimentos em saúde mental do SUS são ofertados pelos municípios. Assim como fez Daiane, o caminho mais comum para acessar estes serviços é por meio de uma UBS integrante da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que abrange os serviços em diversos níveis de atenção. 

– Os municípios precisam se organizar em suas redes de saúde, de atendimento psicossocial, que são as redes de saúde mental. Elas englobam desde a atenção básica, com os postos de saúde, até os serviços mais especializados – explica a enfermeira Fernanda Mielke, integrante da equipe técnica de saúde mental da Secretaria Estadual de Saúde. 

Ela comenta que é papel do município fazer a oferta desses recursos à população, cabendo ao Estado o trabalho de acompanhar e oferecer qualificações para os profissionais. 

Grande demanda

É na atenção básica que os casos considerados leves ou moderados são acompanhados. No caso de pacientes com quadros mais graves, a unidade de saúde faz o encaminhamento aos outros serviços da rede, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) ou as Unidades de Acolhimento. Apesar de Porto Alegre ofertar os serviços de saúde mental, devido à grande demanda por atendimento, profissionais que atuam no sistema de saúde da Capital relatam dificuldades em conseguir vagas para os pacientes com transtornos mentais que necessitam de acompanhamento psicológico contínuo. 

Para Silvia Regina Ramão, psicóloga do Grupo Hospitalar Conceição que atua na Unidade Consultório na Rua, UBS localizada na Vila Ipiranga que atende pessoas em situação de rua, a forma de quem tem transtornos psicológicos melhorar de seus processos de adoecimento, projetando outras maneiras de viver, passa pela psicoterapia:

– Para superar situações que causam sofrimento, é preciso  conversar. São os atendimentos psicológicos, as terapias em grupo que ajudam. E não tem. Não há profissionais suficientes para a quantidade de pessoas em adoecimento na cidade.

A psicóloga explica que, quando um paciente é diagnosticado com algum quadro grave de transtorno mental, ele é incluído no Gercon, o sistema de gerenciamento de consultas da Secretaria de Saúde do município. A partir daí, entra na fila para receber acompanhamento especializado em outros serviços da RAPS. Mas esse período é longo. Nos dados mais recentes divulgados pela prefeitura, em maio, o tempo médio de espera para um paciente adulto ter sua primeira consulta em saúde mental era de 452 dias. 

– Se este processo fosse mais rápido, principalmente para as pessoas que começam o atendimento no posto, iria prevenir o agravamento de problemas relacionados à saúde mental que até fazem algumas pessoas irem parar na rua – acrescenta Silvia, fazendo referência a pacientes  em situação de rua que ela acompanha na unidade de saúde onde trabalha.

Mateus Bruxel / Agencia RBS
Luísa sonha em abrir clinica de psicologia dentro da comunidade

  ONG cria rede alternativa para atender comunidade 

A doméstica Daiane desistiu de esperar por acompanhamento psicológico pelo município. Foi por meio do trabalho desenvolvido pelo Coletivo Autônomo Morro da Cruz, ONG que atua na zona leste da cidade, que ela e seu filho tiveram, pela primeira vez, contato direto com uma psicóloga que pensou em estratégias para que conseguissem lidar com suas questões emocionais.  

A criança não precisou seguir com as consultas, mas foi inserida nas atividades socioeducativas desenvolvidas pelo Coletivo. Após alguns meses sendo acompanhada pela ONG, Daiane foi direcionada para consultas mensais com uma psiquiatra, que atualizou suas medicações. Hoje, ela é atendida por uma psicóloga parceira do grupo. 

– Além deste acolhimento que tiveram comigo, consegui inscrever meu filho no Coletivo. Com isso, tive tempo para mim, fiquei mais calma e consegui me organizar e compreender o que eu precisava. Na terapia, entendi que preciso cuidar de mim – explica Daiane.

As consultas são cobradas, mas têm um    custo mais em conta, chamado de “valor social”. O atendimento é exclusivo para moradores da região. 

Vínculos

O Coletivo existe há mais de dois anos. Seu trabalho começou com foco nas crianças da comunidade, a partir de atividades complementares ao currículo escolar. Mas, conforme o projeto foi crescendo, também aumentaram as demandas trazidas pelos moradores. 

Luísa Puricelli Pires, 34 anos, é uma das psicólogas que trabalham na ONG. Ela explica que, desde o início da atuação do grupo na região, os alunos e suas famílias sempre receberam acompanhamento psicológico. Com o tempo, ao perceber a necessidade que alguns moradores tinham de uma atenção mais específica, o Coletivo passou a encaminhá-los a outras clínicas ou profissionais.  

– As pessoas estavam necessitando muito de um acompanhamento, mas chegavam e tinham que esperar meses para ser atendidas. Então, em nossa rede de amigos, começamos a garimpar quem estava disponível, nem que fosse para atender uma pessoa apenas, cobrando valores acessíveis ou mesmo gratuitamente – pontua Luísa.  

Ela comenta que, por muito tempo, a psicologia foi uma área exclusiva para as classes altas, com sessões muito caras e inacessíveis, criando a ideia de que pensar em saúde mental não é para todos. E, por isso, acredita que o profissional de saúde precisa estar no território onde estão seus pacientes. Seu sonho é, um dia, criar uma clínica de psicologia dentro da comunidade, para que os moradores construam vínculos com o espaço. 

Pensando nisso, outro importante trabalho desenvolvido pelo grupo é o de conscientizar a população sobre a importância de se estar  psicologicamente saudável, como comenta Leandro Peratz Gomes, 22 anos, estagiário de psicologia da ONG e morador da comunidade. 

Ele fala que é comum o preconceito em relação aos transtornos mentais: 

– Por exemplo, a pessoa está com depressão e dizem que ela é preguiçosa. E um dos sintomas da depressão é, justamente, a falta de vontade de levantar da cama. Por isso, luto para que a psicologia seja acessível. Essa experiência (na ONG) me fez perceber a importância das políticas públicas.

O Coletivo aceita doações de valores que são convertidos em verba para pagar as consultas de alguns moradores. Saiba como ajudar pelo telefone (51) 98182-6538.

Mateus Bruxel / Agencia RBS
Leandro luta para que sua comunidade compreenda a importância da saúde mental

Prefeitura promete investimentos 

A coordenação de Saúde Mental da SMS, Alceu Gomes Correia Filho, admite haver na cidade um déficit em atendimento psicológico histórico que, segundo ele, vem desde as antigas gestões que passaram pela prefeitura. Sobre as demandas mais recentes, fala que, devido à pandemia, “todos os técnicos da saúde mental se dedicaram para situações emergenciais impactadas pela covid-19”. No primeiro semestre de 2021, 50% da carga horária desses profissionais foi destinada a atender pessoas enlutadas, com conversas individuais ou em grupo. Isso teria sido um dos motivos que afetou a fila de espera por atendimento em saúde mental. 

Para os próximos meses, Alceu explica que os psicólogos que estão atuando em demandas da pandemia voltarão aos seus postos de trabalho de origem, o que permitirá a retomada da sessões de psicoterapia. A pasta elabora um projeto de apoio à rede, no qual psicólogos e psiquiatras irão auxiliar os demais profissionais da saúde a identificar pacientes que necessitam de acompanhamento. Também, irão investir em contratações de pessoal.  

Para o próximo Plano de Saúde Municipal, que corresponde ao ano de 2022, Alceu afirma que a Secretaria de Saúde irá modificar o formato de alguns dos CAPS, convertendo todos os CAPS II em CAPS III. Segundo ele, a mudança fará com que esses centros, que são destinados a todos os públicos, ampliem seus horários de atendimento. Além disso, diz que será implementado um CAPS infantojuvenil III na zona sul de Porto Alegre, serviço destinado a crianças e adolescentes com transtornos mentais ou dependentes de álcool e outras drogas.

Produção: Émerson Santos



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