Transporte público
Desafio da prefeitura de Porto Alegre é garantir que o fim da Carris não seja em vão, apontam especialistas
Após desestatização, foco deveria ser em ajuste da tarifa e melhorias no trânsito
Sobre o destino da empresa de ônibus Carris, o consultor internacional em mobilidade Claudio Senna Frederico faz uma analogia que vale para todas as estatais de transporte e seus respectivos gestores. No caso, a prefeitura de Porto Alegre:
— É como se um pintor fosse ano a ano, medida após medida, frequentemente na melhor das intenções, pintando o chão e caminhando para trás em direção ao canto. Quando ele fica encurralado, não adianta perguntar qual é a saída ou quem pode salvá-lo.
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Frederico, que é também vice-presidente da Associação Nacional dos Transportes Públicos (ANTP), se refere a medidas que impedem as empresas públicas de se tornarem competitivas, como as exigências de compras por licitações de menor preço, o regime e o passivo trabalhista, a conivência com contas desequilibradas e casos de corrupção e a inércia diante da crise por falta de passageiros. Todos os componentes resultaram na aprovação na Câmara Municipal, na quarta-feira passada (8), do projeto que autoriza a desestatização daquela que já foi considerada a melhor empresa pública de ônibus do Brasil.
Conforme especialistas consultados pela reportagem, embora se avizinhe uma licitação para a venda da empresa, é pouco provável que algum grupo forasteiro se aventure a assumir a administração da empresa em troca do que ela oferece de retorno: a exploração de cerca de 20% das linhas de Porto Alegre. Os principais motivos são porque a capital gaúcha não equalizou ainda o cálculo de sua tarifa e o mercado não vive um bom momento.
— Observa o exemplo atual de Salvador, que foi obrigada a fazer o caminho inverso. A prefeitura rescindiu o contrato com uma das concessionárias e teve que ela mesma assumir a operação. Mesmo fazendo um chamamento sem licitação apenas para executar as linhas, não houve interessados — observa Adamo Bazini, jornalista e editor do site Diário do Transporte.
Conforme Bazini, o que ocorreu na capital baiana é ainda mais emblemático porque se tratam de 66 linhas e incluem bairros com ótimo fluxo de passageiros, como o Centro e a Orla, e sem qualquer obrigação de assumir dívidas. No site da secretaria de mobilidade local, há um chamamento para a compra de 4,6 milhões de litros de óleo diesel. Sinal de que a questão não será resolvida tão cedo. Há exemplos mais próximos: em Caxias do Sul, no edital realizado em abril passado, somente a empresa atual, a Viação Santa Tereza, se interessou em operar na segunda maior cidade do Rio Grande do Sul.
— Ainda há grandes grupos de ônibus pelo Brasil, grandes demais para desistirem dessas operações, mas, hoje, os investimentos visando crescimento são em diversificações de mercado. Eles negociam terrenos, vendem ônibus usados para municípios do Interior, têm postos de combustíveis. Improvável que se aventurem por aí — analisa o urbanista Flaminio Fichmann, consultor e diretor de mobilidade da Associação Brasileira do Veículo Elétrico.
Mas Fichmann faz uma ponderação otimista:
— Se eu fosse um empresário do setor, acharia mais atraente participar de uma licitação em que o cenário da pandemia e da tarifa fossem contemplados do que antes ou depois dele. Porque o serviço de ônibus tem tudo para crescer se as cidades colaborarem.
O consultor se refere, por exemplo, a uma vindoura crise dos serviços de transporte de passageiros por aplicativos. Após um boom inicial que unia qualidade de serviço e boa remuneração, os aplicativos começaram a dar sinais de desgaste, com carros precários e motoristas descontentes com o pouco retorno financeiro em razão da concorrência e do preço dos combustíveis. Caminho aberto para o ônibus voltar a ser uma alternativa atraente, sobretudo se melhorar o preço e a velocidade em que executa os seus trajetos.
Cenário pós-desestatização
Em um cenário sem interessados em assumir a Carris, a empresa seria liquidada, teria o patrimônio vendido e a as concessionárias de ônibus de Porto Alegre surgiriam como potencias herdeiras das linhas operadas pela estatal. Porém, herdeiras também de boa parte dos problemas que a levaram à falência. Engenheiro de transporte da associação das concessionárias, a ATP, Antônio Augusto Lovatto enxerga evolução no quesito preço, mas espera que a prefeitura retome projetos relacionados ao tráfego:
— Somente com esses dois projetos já aprovados na Câmara, a prefeitura tem no horizonte uma economia de R$ 1,10 na tarifa. São R$ 0,80 na extinção gradual da função do cobrador e R$ 0,30 no custo Carris, que é o peso de manter uma empresa que opera um serviço a um custo mais alto do que as concessionárias. Porém, os projetos relacionados ao trânsito paralisaram.
Lovatto se refere a medidas como as faixas exclusivas, implementadas pelo governo de Nelson Marchezan, que na sua visão deveriam compor um plano de estado a ser cumprido nos próximos anos, independentemente do prefeito em exercício. E cita desafios, como melhorar o tempo de embarque de passageiros. Enquanto um biarticulado de Curitiba (PR) embarca 200 passageiros em dois minutos e meio, em Porto Alegre, a entrada de 50 passageiros via catraca nas estações do Centro Histórico leva entre cinco e seis minutos.
O exemplo de Londres
Complementando o raciocínio de que a prefeitura deve focar seus esforços mais no trânsito do que nas companhias de ônibus, Frederico, da ANTP, cita o exemplo de Londres. Embora o sistema de ônibus seja operado por empresas privadas, há uma estatal, a Transport For London (TFL), que opera em tempo real para garantir que os veículos não encontrem bloqueios no trânsito para chegar às paradas.
— É uma operação fantástica para que o ônibus, esteja como for o trânsito, navegue em céu de brigadeiro. Por aqui, as empresas de ônibus se limitam a dar multas para os ônibus que descumprem os trajetos, em vez de ajudá-los. Que, aliás, nunca são pagas. Não é má ideia, em caso de desmonte da Carris, usar seu corpo técnico para se voltar a esse serviço — opina.
No quesito financiamento, nenhum dos especialistas consultados por GZH enxergam o subsídio da prefeitura às empresas de ônibus como algo absurdo, desde que ele seja um complemento entre o preço aceitável ao passageiro e o menor custo possível. E é nesse segundo ponto que reside o problema.
— Vejo como uma forma razoavelmente justa de fazer com que a sociedade toda pague pelo serviço de ônibus, que tem função social mesmo para quem está fora dele. Porém, o risco é o prefeito acabar subsidiando gordura. Ou seja, pagar por um serviço que poderia ser melhor e mais barato se administrado de forma mais eficiente, já que o financiamento do prejuízo estaria garantido — declara Bazini, do Diário do Transporte.
Frederico faz coro, e aconselha Porto Alegre a seguir em busca de medidas que tornem o ônibus mais barato e eficiente e que a morte da estatal não seja em vão:
— Não me parece ser um erro extinguir a Carris nas condições em que ela está. Mas ela não é o dragão a ser morto para resolver a crise do transporte público. Ela está mais para uma das vítimas dele. O dragão é o preço e o serviço, e, se apenas matar a Carris, ele estará intacto.