Educação pós-pandemia
Currículo de transição e excesso de tecnologias: novos desafios para a educação pública depois da pandemia
A maneira como escolas estão recebendo alunos que ficaram mais de um ano e meio em casa deve definir que cidadãos serão formados na geração pós-pandemia
Como fazer com o que aluno que ficou mais de um ano fazendo atividades em casa, acostume-se com a rotina das aulas novamente? Como equilibrar o que a desigualdade entre quem tinha melhores condições de estudar e aqueles que precisam dividir um celular com a família criou? O professor Francisco Thiago, da Universidade de Brasília (UnB), aponta em um artigo publicado ainda em 2020 o currículo de transição como uma saída para a educação pós-pandemia. Muito comum em universidade ou cursos técnicos, essas adaptações na grade de ensino podem ser replicadas na educação pública. Francisco diz que o professor precisará selecionar conteúdos que são indispensáveis.
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— Encher os alunos de atividades para que eles entregassem de tempos em tempos na escola não é algo que os estimula. Nesse retorno, é preciso fazer uma escolha inteligente do que ensinar. E isso não pode ser confundido com um currículo mínimo, pelo contrário, é um currículo essencial — diferencia Francisco.
Na visão do professor, os mais prejudicados pelo tempo em casa são os alunos em fase inicial de aprendizagem e aqueles nos anos finais do Ensino Médio, que se preparam para os vestibulares e o Exame Nacional do Ensino Médio. A linha de pensamento segue o que outros especialistas ouvidos pela reportagem também citam, como a doutora Patrícia Alejandra Behar, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que ainda acrescenta o drama das escolas públicas.
— O aluno do sistema público foi o mais prejudicado. No início da pandemia, a utilização de plataformas não adequadas, como o WhatsApp, tornou a aprendizagem ainda mais difícil. Principalmente, para quem estava se alfabetizando — avalia Patrícia.
Anos extras
Além da aplicação durante o período de retorno, o currículo de transição pode ser construído em uma nova proposta. O Ministério da Educação abriu possibilidade para que Estados e municípios ofertem um ano extra na escola, tanto no final do Ensino Fundamental, quanto no Ensino Médio — seria equivalente a um 10º ano no Fundamental e um 4º ano no Médio. A proposta, entretanto, depende muito do engajamento dos estudantes. Permanecer mais tempo na escola, ao menos no modelo pré-pandemia, nunca foi desejo. E oferecer tudo de uma vez pode ser arriscado, como avalia o professor da Feevale.
— Faltam medidas de apoio às escolas, professores e estudantes. Planos de retorno e acesso tecnológico mais estruturados. Nada disso está sendo proposto. Pede que se volte para a mesma escola, com os mesmos professores e um pouquinho mais de recurso na conta. Mas, não tem uma estratégia definida de apoio ao prejuízo desse período em casa — diz Gabriel Grabowski.
Armadilha do excesso de tecnologias
Se combater o tempo excessivo de uso do celular já é um desafio para os pais, professores enfrentam isso de maneira ainda mais clara. Com ferramentas menos atrativas do que a tela brilhante dos smartphones, os docentes precisam de esforços homéricos para garantir a atenção dos alunos. E, se antes era desrespeitoso usar o celular enquanto o professor falava, hoje parece impossível soltar o equipamento durante a aula. No Colégio Estadual Piratini, no bairro Auxiliadora, em Porto Alegre, a reportagem acompanhou uma manhã de aulas. Numa turma do 3º ano do Ensino Médio, Márcia Dorneles, professora de português, disputava atenção com os celulares. O projetor jogava no quadro a imagem do Meet, onde mais uma pilha de alunos assistia a aula de casa.
— É um desafio complicado. Temos que adaptar conteúdos e a forma de distribuir ele aos alunos — cita Márcia.
Neste retorno, a docente sente que os alunos deixaram os cadernos de lado, o que pode ser complicado para a aprendizagem. Fazer apenas registros fotográficos do quadro virou uma tendência que em nada acrescenta.
— A gente disputa os olhares, que estão sempre no celular. Eu digo aos alunos que eles precisam se organizar com o caderno, anotar o que é interessante para eles. A sensação é de que a gente perdeu o diálogo, eles se fecham nos celulares e acabam perdendo a vida que está passando fora da tela — conta a professora.
Um pouco distante da sala no terceiro andar, o diretor do Piratini, Maurício Girardi, divide sua sala com muitos documentos e alguns notebooks. Se há alguns anos computador era algo difícil de funcionar na escola, agora, o cenário é diferente. O Piratini tem uma vantagem, é uma escola de tempo integral, manhã e tarde. Por isso, recebeu recentemente 148 notebooks e 74 kits de robótica. Muitos dos itens ainda estão na caixa. O diretor conta que a ideia é incluir a alfabetização digital no currículo. No tempo integral, além das aulas tradicionais, os alunos têm períodos de reforço escolar, projeto de vida e espaço para estudo.
Inovação
Dos 360 alunos da instituição, pouco mais da metade retornou ao ensino presencial, retomado no dia 4 de agosto. No celular, o diretor mostra mensagens de pais pedindo espaço no colégio. Com as limitações do decreto estadual, as salas já estavam no seu limite. Mas, neste mês, o espaço será revisto, com a redução do distanciamento de 1,5 metros para 1 metro. Assim, mais estudantes poderão retornar.
— Tem o desafio de que tínhamos uma pessoa para a limpeza de toda escola. Hoje, estamos revezando alunos, atendendo até 60 por dia. Então, são dois ou três encontros presenciais por semana. Com o avanço da vacinação e novos decretos, vamos ajustando — projeta Maurício.
Fazer com que o excesso de tecnologia que chegou às escolas não se torne uma barreira entre professores e alunos vai depender da união de órgãos públicos, algo que não aconteceu ainda. Doutora em Difusão do Conhecimento pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Elmara Pereira de Souza estuda a aplicação na tecnologia na educação e a educação online. Para ela, a distração com uso do celular está diretamente ligada ao interesse do aluno no que está sendo ensinado:
— A necessidade é por uma educação que faça sentido, seja mais inovadora, mais integrada com a vida dos estudantes, com o que eles gostam. Uma aprendizagem criativa, com desenvolvimento de projetos, coisas que possibilitem ao estudantes escolher o que vão fazer, é isso que engaja. O que faz o aluno ficar no celular é uma aula chata. Se a escola for interessante, a tecnologia vai ser aliada.
Estudante do 1º ano do Ensino Médio no Piratini, Alice Jardim Santos relata o que Elmara projeta em sua fala. Por mais que se sinta até mal em pegar o celular durante a aula, Alice diz que, quando não sente que o conteúdo tem importância real na sua formação, acaba se distraindo com a tela ou alguma outra leitura. Durante a visita da reportagem, ela circulava pela biblioteca do colégio antes de retornar do intervalo.
— Estava com muita saudade desse ambiente — comentou Alice.
A estudante não gostou muito do tempo em casa, disse que querer autonomia dos alunos acaba sendo ruim para quem não condição ou espaço adequado para estudar. Para ela, o retorno deve ser completo, mas com a reconstrução do espaço escolar, visando uma educação mais imersiva, engajada e inclusiva.
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