Crise na alfabetização
Participação de pais e a demora para elaboração de políticas públicas específicas para educação na pandemia
Apesar dos estudantes do país terem ido para casa em março de 2020, somente nove meses depois o Ministério da Educação liberou diretrizes relacionadas ao tema do ensino remoto
— Acho que conversar um com o outro, estar disposto a ouvir, se preocupar, nunca foi tão importante. Temos que nos ajudar.
A fala da diretora de Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Aramy Silva, Adriana Orlandi Bertolazzi, relaciona a importância da comunicação entre professores, mas também com alunos e pais. Para Adriana, os diálogos têm servido para lidar com frustrações e problemas de autoestima da comunidade escolar como um todo.
Na educação municipal, uma das diretrizes na pandemia foi a aprovação automática dos alunos, para evitar o aumento da distorção idade-ano (quando o estudante está numa série, mas com idade para estar mais avançado). Sem reprovar, mesmo alunos que tinham dificuldade seguiram em frente, sem que o aprendizado necessário fosse adquirido. E isso reverberou em pais e professores.
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Do lado dos responsáveis, a preocupação era em ver que o filho, mesmo sem o conhecimento necessário, era aprovado. Do lado dos docentes, receber esses alunos em anos avançados, mas não poder aplicar os planos de aula gera descontentamento e frustração.
— Como um professor de ciências do 6º ano vai se sentir ensinando numa turma onde antes ele tem que tentar alfabetizar os alunos? — questiona Adriana.
Desafiador
A alfabetização exige uma formação específica de professores. Formação essa direcionada para aqueles que lecionam nos anos iniciais. E se os próprios docentes que não têm formação específica para alfabetizar têm encontrado dificuldade nas salas de aula, imagine pais e responsáveis que tentaram por dois anos "dar aula" aos filhos em casa.
— As crianças menores foram mais impactadas porque o ensino remoto é mais desafiador para elas, elas não têm tanta autonomia. Os pais não tinham como deixá-las de maneira independente estudando, sempre era preciso um adulto auxiliando no uso da ferramenta, até para ajudar na concentração. Só que muitos pais não tinham tempo ou formação para conseguir ajudar — pontua o professor de pós-graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Tiago Bartholo.
"Nós, pais, não conseguimos ensinar igual ao professor"
A autônoma Débora Ávila, 27 anos, sentiu na pele os desafios da alfabetização ao tentar ajudar o filho Kevin Simas, sete anos, estudante do 2º ano da Emef Aramy Silva. Moradora de Montenegro, ela veio para a Capital na metade do ano passado e matriculou o filho em outra escola municipal. Ainda assim, entre a mudança de cidades, Kevin ficou um período sem aulas.
No colégio antigo, as dificuldades com o ensino híbrido também prejudicaram o aprendizado do menino. E em casa, Débora tentou fazer as vezes de professora, mas entendeu que alfabetizar era um desafio muito grande:
— O dia a dia na escola fez muita falta. Por mais que eu tentasse, não sabia explicar como as professoras. Um exemplo foi que agora, em conversas com as professoras da Emef Aramy Silva, descobri que o modo que eu tentei ensinar o som das letras para ele é diferente do jeito que se ensina. Então, não adianta, nós pais não conseguimos ensinar igual ao professor na escola.
Débora manifestou interesse para que Kevin participasse das oficinas oferecidas pela escola no contraturno. E os professores indicaram o garoto para o projeto de alfabetização tocado pela docente Carini. Em poucas semanas frequentando o espaço, Kevin conta feliz da vida como tem se beneficiado das aulas.
— Minha mãe me ensinava, mas estar na escola fazia falta. Minha leitura era bem mais ou menos, agora estou ficando mais confiante — comemora o guri, arriscando frases com palavras recém-adquiridas para o vocabulário.
Apoio remoto foi tardio e insuficiente
Apesar de todos os estudantes do país terem ido para casa em março de 2020, somente nove meses depois é que o Ministério da Educação liberou as primeiras diretrizes relacionadas ao tema do ensino remoto. Em outras esferas, poderes estaduais e municipais também pontuaram a necessidade de um ensino remoto online, incompatível com a realidade de boa parte dos estudantes da rede pública, principalmente, aqueles de regiões em vulnerabilidade.
Para quem não tinha o acesso remoto, restava a possibilidade da entrega de atividades impressas de tempos em tempos na escola. Mas, sem qualquer acompanhamento especializado, os alunos precisavam praticamente tornarem-se autodidatas. Tudo isso em meio a uma pandemia, com isolamento social, perdas, luto, fome e diversos outros fatores.
— Desde o início da pandemia, os professores se queixaram da falta de ferramentas para trabalharem, tendo que usar os materiais próprios. E tem itens chegando agora só agora, alguns materiais de aprendizagem, por exemplo. Então, demorou muito, já estamos em 2022 e tem coisas que recém estão chegando — cita a pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Patrícia Camini.
Realidades distintas
A tentativa de construir um padrão de ensino remoto sem olhar específico para as distintas realidades do país, tirando da escola um papel de equalizadora de conhecimentos, como pontua o professor Tiago, da UFRJ, acabou deixando de lado particularidades de comunidades escolares.
Outro pesquisador da educação, o professor Francisco Thiago, da Universidade de Brasília (UnB), pontua como é importante que as políticas públicas centralizadoras, provenientes de órgãos como o MEC, tenham espaço para as especificidades de cada região.
— A escola tem que conhecer a comunidade social onde ela está. A classe C de Porto Alegre é diferente da classe C de Brasília, por exemplo. E a maneira de a instituição abordar isso é por meio dos estudantes. Eles são as pontes entre a escola e a comunidade escolar. Não se pode anular a comunidade onde a escola está inserida — explica Francisco.
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— A gente precisa pensar na relação da escola com as famílias de acordo com os territórios onde ela está inserida. O ensino remoto contemplava uma realidade de pleno emprego, de uma criança com suporte em casa, seja dos pais, dos avós ou de outro responsável. Mas em territórios vulneráveis esse método foi desastroso, o poder público foi negligente com pessoas que já eram sobrecarregadas tentando sobreviver. As escolas precisam ter independência e conhecimento de onde estão inseridas para repensar desde como mandar um tema de casa. Se idealizam crianças com lugares para estudar, mas não é a realidade de muitos alunos, que não têm sequer uma mesa e uma cadeira adequadas — completa Patrícia.
Aulas também para os pais
Para o professor Francisco Thiago, da UnB, tornar a escola mais acessível para as comunidades onde ela está inserida é um caminho essencial no pós-pandemia. E o fato de naturalmente os pais de alunos nas séries iniciais já terem o costume de acompanhar mais a vida na escola deve ser aproveitado pelas instituições. Trazer as demandas das comunidades para dentro das escolas é um dos modelos que ajuda muito nessa aproximação, aponta o professor.
— Quando a escola se sensibiliza e mostra essa preocupação também com os pais, com as famílias que perderam pessoas, vai além da aprendizagem. Os pais estão aliviados de os filhos voltarem para o ambiente escolar. E trazer eles para essa conversa irá os ajudar a entender a função social da escola — explica Francisco.
Um caminho possível citado como exemplo pelo pesquisador é uma iniciativa do governo de Goiás, chamada Escola de Pais. O projeto foi colocado em prática durante a pandemia na cidade de Iporá, a 226 quilômetros de Goiânia, no Colégio Estadual da Polícia Militar de Goiás Ariston Gomes da Silva. Conforme o governo goiano, a ideia do projeto é "promover a integração entre a própria escola, seus estudantes e familiares em busca da qualidade do processo de aprendizagem". Por meio de lives, temas escolhidos pela comunidade escolar eram debatidos com especialistas convidados.
— A escola é um espaço de todos, por isso, trazer os pais e responsáveis para essas conversas é essencial — diz o professor da UnB.
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