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Crise na alfabetização

Os lapsos de aprendizagem e comportamentos deixados pela pandemia em crianças

Desde as dificuldades de alfabetização até o fato de se comportarem como se tivessem a idade que tinham antes da pandemia, os pequenos estão se readaptando a convivência em grupos

09/04/2022 - 05h00min


Alberi Neto
Alberi Neto
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Lauro Alves / Agencia RBS
Professores notam que crianças cresceram em tamanho, mas seguem com comportamento da idade pré-pandemia

Esta reportagem está dividida em cinco partes, leia as outras partes aqui, aqui, aqui e aqui

Colados pela parede da sala de aula, quadrados de papel levam o desenho de cada letra do alfabeto. Grandes e coloridos, os grafismos simbolizam A, B, C e assim por diante. Noutro cartaz, são os números as estrelas. O signo que representa cada um e ao lado, por extenso, sua grafia: um, dois, três, quatro... Em frente à turma, uma professora pacientemente dita sílabas e pede que a turma repita e faça o exercício nos cadernos.

— 'Sa' mais 'po', sapo. 'Ca' mais 'sa', casa — diz a alfabetizadora Carini Delavald.

Parece o primeiro dia de aula de uma turminha de recém-chegados ao colégio, no primeiro aninho. Mas, não é. São crianças que já estão no 2º ou 3º ano do Ensino Fundamental da Escola Municipal de Ensino Fundamental (Emef) Aramy Silva, no bairro Camaquã, zona sul de Porto Alegre. Os pequenos frequentam a escola no turno inverso para tentar aprender o que não conseguiram durante o tempo sem aulas presenciais. 

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Numa realidade pré-pandemia, nesta mesma fase, boa parte dos alunos costuma dominar a leitura e escrita de textos simples, explicam professores. Conseguem formar palavras, frases e pontuá-las. Só que o tempo fora da escola, entre março de 2020 e em alguns casos, até o início deste ano, teve consequências impactantes nestes pontos que eram básicos. Cenário que se repete em anos mais avançados, como 5º e 6º. 

Grandes demais

Não é só a dificuldade de ler ou fazer contas básicas que tem pego a criançada de surpresa. O simples fato de ter crescido — em estatura, mesmo — os surpreende. A Emef Aramy Silva está se acostumando a receber tantos alunos diariamente. São cerca de 800 estudantes divididos entre manhã e tarde. Um pequeno número também frequenta a escola no turno da noite, mas na modalidade de Educação para Jovens e Adultos (EJA). 

No recreio do turno da manhã, em poucos minutos circulando pelo pátio, a escola pós-pandemia dá suas caras. Alunos dos anos finais do Ensino Fundamental, assolados pela fase já introspectiva da adolescência, fecham-se ainda mais diante de telas de celulares, uma das companhias mais frequentes no isolamento social. 

Do outro lado, alunos dos 5º e 6º anos correm pelo pátio e tentam se encaixar em brinquedos que já não comportam mais adequadamente o seu tamanho. É uma cena um tanto engraçada, meninos e meninas que tiveram um salto na estatura tentando se balançar ou escorregar por um caminho feito para crianças menores.

— Eles ficaram dois anos longe desses espaços com brinquedos. E temos notado que muitos seguiram com o comportamento de quando estavam no 2º ou 3º ano. A noção de espaço foi bastante afetada — conta a diretora da instituição, Adriana Orlandi Bertolazzi.

Oficinas para aprender a ler

Saindo do pátio e caminhando para a sala de aula, a reportagem nota uma cena curiosa. Na fila para o refeitório, enquanto caminham da sala de aula até a entrada do espaço para lanches, dois meninos com cerca de 10 anos simplesmente desabam num espaço de poucos segundos. Num tropeço qualquer, caem no chão, mas logo se levantam, sem maiores problemas. A professora aponta a cena como um dos sinais de tanto tempo isolados.

— Fez muita falta brincar, se movimentar, interagir. Muitos não têm consciência de que cresceram e ainda estão se acostumando novamente aos espaços da escola e até a se movimentar tanto, pois ficaram muito tempo dentro de casa.

Coordenadora dos anos iniciais na Emef Aramy Silva, Katiane Uszacki fala sobre os projetos que a escola tem colocado em prática para tentar reduzir esse lapso de aprendizagem causado pela pandemia. A principal aposta, citada no início deste texto, é a Oficina de Alfabetização. 

Em turno inverso, alunos dos 2º e 3º anos apontados pelo corpo docente têm dois encontros semanais com a professora Carini. Nestes momentos, a tentativa é fazer com que as crianças avancem do nível pré-silábico da alfabetização, considerado um dos estágios mais iniciais. Segundo a direção, dos cerca de cem estudantes do universo do 2º e 3º da escola, 30 foram encaminhados para a oficina, divididos em duas turmas.

— São atividades bem iniciais que usamos aqui. De entender o som das letras, as sílabas e a formação inicial de palavras — conta Carini.

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Mas por que alunos estão chegando nesse momento sem o domínio da alfabetização? Na visão dos pesquisadores e também dos professores que trabalham em sala de aula e foram ouvidos nessa reportagem, alfabetizar de maneira remota é praticamente impossível. E a tentativa do poder público em tentar estabelecer o ensino remoto online no Brasil acentuou as desigualdades e acessos de aprendizagem.

—  Imagine alfabetizar uma criança remotamente? Os professores se dedicaram a isso, mas eles também precisavam de uma estrutura, que demorou para chegar. Um computador para dar e planejar aulas, muitos não tinham ou compartilhavam com a família. No outro lado, muitas crianças em vulnerabilidade não tinham coisas básicas anteriores a um computador. Esse período sem aulas aumentou esse espectro da desigualdade socioeconômica e de aprendizagem — pontua a psicóloga e professora do mestrado e doutorado em Diversidade Cultural e Inclusão Social da universidade Feevale, Lisiane Menegotto.

A demora das mantenedoras — as secretarias de Educação, poder público, etc — em agir também é destacada pelos especialistas. No caso das oficinas criadas na Emef Aramy Silva, as ideias foram criadas pelo corpo docente da instituição somente neste ano, quando solicitadas pela Smed, que aprovou recentemente a implantação das ações no espaço escolar.

Lauro Alves / Agencia RBS
Professora Carini (de paletó amarelo) dá aulas na Oficina de Alfabetização da Emef Aramy Silva

Falta de integração nas políticas públicas de alfabetização

A pandemia foi responsável por aumentar desigualdades. Esse é um ponto que virou praticamente lugar comum. E na educação, não foi diferente. Só que o problema da alfabetização no país não é recente. Os efeitos do coronavírus ampliaram um problema que já era tratado de maneiras diferentes em outros momentos. 

A professora e pesquisadora da Faculdade de Educação (Faced) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Patrícia Camini, contextualiza como a alfabetização é uma política pública ainda recente no Brasil: 

— O Ministério da Educação (MEC) não tem cem anos, a defesa da escola pública como responsabilidade do Estado vem de 1932, com o manifesto dos Pioneiros da Educação. A educação infantil como direito das crianças aparece apenas na Constituição de 1988. A educação pública nacional demorou muito a ser minimamente organizada e a precariedade de investimentos financeiros adequados não tem ajudado a assegurar um padrão mínimo de qualidade. Na década de 1950, conforme dados do IBGE, metade da população brasileira não era alfabetizada. E se tinha uma compreensão diferente da alfabetização, era escrever o nome, um bilhete. Hoje, essa demanda se ampliou bastante.

Entretanto, essa falta de políticas públicas organizadas acentua a dificuldade do poder público, sociedade e também dos próprios professores em entenderem a melhor definição de alfabetização.

— Tínhamos essas gerações anteriores com o desafio da universalização do acesso à escola. Hoje, o desafio é a qualidade dessa alfabetização. Há alguns anos, o Pacto pela Alfabetização na Idade Certa previa que isso a alfabetização deveria ocorrer até o 3º ano. Depois, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) passou a prever a alfabetização no 2º ano, mas com a aprendizagem de habilidades mais restritas do que as previstas pelo Pacto. Durante o governo atual, surgem outras políticas prevendo a alfabetização até o 1º ano. Enfim, é um descompasso entre todas as políticas — explica Patrícia.

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A reorganização da escola como agente social também é um ponto citado pela professora Lisiane. Falando do campo da psicologia direcionada à área da educação, a profissional pontua que a escola contemporânea encara muitos desafios, principalmente, por pouco ter mudado ao longo dos tempos. Os espaços de ensino mantém uma mesma perspectiva física e arquitetônica por séculos. 

— Alunos e professores ficam nos mesmos lugares. O professor segue sendo um agente muito central, com o conhecimento vindo de cima para baixo e não sendo circular. Muitas vezes, não se olha para o aluno como alguém que também porta um saber. E isso não se trata de educação pública ou privada. Escolas boas e ruins existem nos dois mundos. Mas, para ser boa, primeiro, tem que ter bons educadores, sensíveis — sintetiza a professora da Feevale.

Em Bagé, aulas em pendrives

Um exemplo de caminhos possíveis em realidades diferentes ocorreu em Bagé. A cidade encontrou uma maneira de atender alunos com problemas de conectividade e impedir que o lapso de aprendizagem do tempo em casa fosse ainda maior. 

Por lá, a prefeitura detectou que, apesar do acesso limitado a internet, TV ou até mesmo ao rádio, boa parte dos alunos de regiões rurais possuía caixas de som portáteis em casa — daquelas comumente vistas nas praias durante o verão. 

Para que estes estudantes não ficassem excluídos do processo de aprendizagem, a ideia foi inserir aulas em formato de áudio em pendrives com entrada USB. Os dispositivos podiam ser lidos pelas caixas de som, possibilitando que aqueles alunos sem acesso à internet pudessem ouvir as aulas.

— Foram cerca de 110 pendrives adquiridos. E o ônibus escolar que atendia nas regiões rurais levava o pendrive e materiais impressos para esses alunos. Na região urbana, também usamos a TV Câmara de Bagé para transmitir aulas — recorda a secretária de educação de Bagé, Adriana Lara.

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