Seu Problema é Nosso
Voluntária arrecada alimentos para recicladores de uma cooperativa de Porto Alegre
Projeto teve início em junho, após moradora da Restinga ir comprar jornal usado na reciclagem e encontrar uma trabalhadora com fome
Mais de 33 milhões de brasileiros não têm o que comer diariamente, segundo pesquisa feita pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), divulgada no mês passado. Com o país de volta ao Mapa da Fome, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), mais da metade da população enfrenta atualmente algum tipo de insegurança alimentar. Isso significa que o percentual de brasileiros que não têm certeza se vão ter o que comer na próxima refeição está acima da média mundial.
Nesse cenário, iniciativas e a sociedade organizada tomam a frente e buscam preencher essas lacunas sociais. Às vezes, mesmo com pouco a oferecer, é a ajuda desses projetos que garante a refeição do dia de alguma pessoa.
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No começo deste ano, por exemplo, o DG contou como a volta do país ao Mapa da Fome levou cidades a reabrirem restaurantes populares, locais normalmente oferecidos pelo poder público que distribuem refeições com valores simbólicos, entre R$ 1 e R$ 2. O público-alvo dessas iniciativas, que costumava ser pessoas em situação de rua, passou a se estender também a famílias e idosos com baixa renda.
Outra iniciativa que busca diminuir a fome de quem não tem o que comer surgiu em junho, na Capital. A saladeira Maria Isabel Barbosa, 63 anos, também protetora animal independente, deu início ao projeto após ir comprar jornal para as necessidades de seus gatos em uma cooperativa de recicladores localizada no bairro Restinga.
– Eu vi uma moça muito triste, chorando (na cooperativa). Perguntei o que aconteceu, e ela me respondeu que foi trabalhar com fome, que tinha deixado pão e água para o filho e que aquilo doía nela. Me cortou o coração saber que muitas pessoas que atuam na reciclagem vão trabalhar sem ao menos ter um café para tomar, um pão para comer, que às vezes deixam o pouco que têm para os filhos conseguirem se alimentar – relata Maria Isabel.
Por conta desse episódio, Maria Isabel recorreu às redes sociais para pedir ajuda e angariar alimentos para os recicladores daquele local. No boca a boca, ela também começou a mobilizar amigos e conhecidos.
Pouco é muito
A voluntária, que atua há duas décadas na causa animal, conta que conheceu de perto a fome. Por isso, ao saber da situação dos recicladores, decidiu ampliar sua atuação.
– Eu vim de uma família grande. Minha mãe teve 12 filhos, não tínhamos o que comer. Então, quando vi essa situação, me lembrei da minha infância e quis ajudar – conta.
Desde o começo da mobilização, há cerca de um mês, Maria Isabel já arrecadou uma porção de agasalhos, sapatos e alimentos. Ela também junta recicláveis para levar para a cooperativa.
Mesmo assim, se preocupa, principalmente, com a arrecadação de cestas básicas e alimentos não perecíveis. A fome é o problema mais urgente enfrentado pelos recicladores da cooperativa que ela busca ajudar, mas infelizmente essas contribuições estão chegando em menor quantidade.
Dificuldades na reciclagem
Gerno Dias Prado, 58 anos, coordenador da Coopertinga, reciclagem em que o episódio aconteceu, explica que hoje cerca de 50 pessoas fazem parte da iniciativa. A maioria, segundo ele, passa por dificuldades financeiras.
Gerno conta que boa parte dos resíduos coletados e separados não são próprios para a reciclagem, e, por isso, são descartados, causando um excesso de trabalho que não tem valor monetário.
Além disso, explica que há muitos resíduos com pouco valor no mercado. O quilo do papel, cita, por exemplo, custa cerca de R$ 0,40. Nesses casos, é preciso uma quantia muito grande de material e trabalho para gerar pouca renda. O alto valor do diesel usado pelos caminhões que buscam os resíduos é outra variável na equação.
Ele ressalta que, em geral, os lucros da cooperativa são baixos, mas, mesmo assim, remuneram, de forma equivalente ao número de horas trabalhadas, todos os colaboradores.
Mudança social
Apesar dos entraves, Gerno conta que a cooperativa é uma alternativa para pessoas que, em outros espaços, poderiam não conseguir emprego.
– Nós não reciclamos apenas resíduos. Nós reciclamos pessoas. Damos oportunidades para quem quer trabalhar e não tem condições, que empresas não contratam – afirma.
Esse é o caso da mulher de 27 anos, abordada por Maria e descrita no começo da matéria, que preferiu não ser identificada. Trabalhando há um mês na cooperativa, ela explica que estava desempregada, passando por muitas dificuldades e não conseguia emprego. Com um filho de um ano para criar, começou a buscar alternativas.
Moradora da Restinga, soube da cooperativa e se candidatou. Diz que foi chamada e acolhida. Conta ainda que fica feliz de ter uma renda e por conseguir alimentar o seu filho, mesmo que, em alguns momentos, nem todos consigam comer.
Voluntariado após divórcio
Foi a partir da separação do marido que Maria Isabel iniciou no trabalho voluntário, há cerca de 20 anos. Ela ficou muito abatida, mas diz que viu na ajuda ao próximo e aos animais um novo sentido para a vida.
– A dor foi muito grande. Aí eu comecei a me apegar aos bichinhos. Hoje estou com 12 gatos e dois cachorros. Só não tenho mais por falta de espaço. Então, minha vida hoje é minha filha e os bichinhos que eu ajudo – analisa.
Maria Isabel explica que faz tudo sozinha – mesmo que às vezes não tenha condições físicas e econômicas:
– É gratificante ajudar os outros. Às vezes não tenho muito o que oferecer. E é difícil conseguir doação. Se cada um ajudasse, ninguém passava dificuldade.
Como ajudar
/// Interessados podem colaborar com alimentos não perecíveis e cestas básicas.
/// Também são arrecadados roupas, calçados e agasalhos.
/// É possível levar materiais recicláveis diretamente na cooperativa (Estrada João Antônio da Silveira, 3.240, Restinga), em Porto Alegre.
/// Mais informações pelo fone (51) 99369-7034, com Maria Isabel.
Produção: Júlia Ozorio