Guerra do tráfico
Bondes da morte são a nova estratégia de guerra do crime
Como em uma guerra civil, matadores dos Bala na Cara invadem áreas rivais em comboios munidos de mapas, fotos e detalhes sobre os alvos a serem atacados em suas missões. Tudo é planejado pelo whatsapp
A cena, capturada por um morador, lembrava imagens de lugares que vivem em guerra civil. Mas tudo acontecia a apenas 1km de um dos shoppings mais movimentados da Capital. Eram 16h do último sábado e pelo menos dez homens em três carros entraram na Rua Marajó, Bairro Vila Jardim, exibindo armamento pesado pelas janelas dos veículos. Era a volta de um verdadeiro bonde da morte àquele local, provavelmente sob ordens da facção dos Bala na Cara.
A ação do grupo aconteceria no dia 22 de abril, mas acabou abortada, terminando com as mortes de quatro suspeitos e dois PMs feridos em um confronto intenso finalizado em frente ao Hospital Cristo Redentor. Passados quase três meses daquele crime, dados do whatsapp de um dos criminosos morto no confronto revelaram à polícia o grau de organização da facção. Eles seguiam até a Vila Jardim fortemente armados com pelo menos dois fuzis e diversas pistolas 9mm para cumprirem uma missão.
Como se fossem soldados em operação, receberam um mapa onde estavam marcados três pontos que seriam os alvos do ataque entre as ruas Marajó e Doutor Alberto Barbosa, além de quatro fotos de jovens considerados os "alvos principais". De acordo com a polícia, os quatro, que não tiveram as identidades reveladas, seguem vivos.
– Eles contavam com um guia, que conhece a região e durante o percurso deles dava as dicas de como agirem e onde agirem quando chegassem. Havia ainda uma mulher, ainda não identificada, que fez um levantamento prévio dos movimentos dos alvos. Como se estivessem mesmo em uma operação – relata o delegado Cassiano Cabral, que apura o caso pela 3ª DHPP.
Desde o final do ano passado, foram pelo menos quatro missões semelhantes entre a Capital, Viamão e Eldorado do Sul. Em todas, as ordens para o bonde eram detalhadas pelo whatsapp.
De acordo com o delegado, em abril o bonde foi surpreendido ao acaso por uma viatura da Brigada Militar na Avenida Circular, quando já estavam prestes a iniciar o ataque na Rua Marajó. Pelo menos uma rajada de fuzil foi então disparada contra os policiais, deixando dois deles feridos.
Naquele momento, um dos suspeitos acabara de avisar ao restante do grupo que estavam chegando ao local. Em seguida, ele, já bastante nervoso, diz aos outros para "ficarem espertos":
– Deu os homi, cupinxo!
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Um bar na Rua Marajó, em abril, era uma espécie de alvo alternativo do bonde caso não encontrassem seus objetivos nas casas marcadas previamente. Em uma das mensagens, um interlocutor ainda não identificado pela polícia avisa:
– Se o cara não estiver ali, vai no bar que ele sempre fica e passa o fogo.
Pois no sábado os criminosos foram direto ao tal bar, no final da rua sem saída. Moradores relatam uma cena de horror, com mais de 100 tiros disparados. Denilson Sieber Correa, 37 anos, foi morto e outro homem ficou ferido. O crime ainda é apurado pela 5ª DHPP, mas há suspeita de que nenhum dos dois atingidos fossem os alvos deste ataque.
Na segunda-feira, dois carros – um Fox branco e um Sentra preto – suspeitos de terem sido usados na ação foram encontrados abandonados na Rua Francisco Braga, Bairro Partenon, Zona Leste da Capital. Os dois veículos eram roubados e estavam clonados.
A suspeita é de que o bando os tenha abandonado e, pela proximidade, seguido para o Bairro Bom Jesus, principal reduto dos Bala na Cara.
O uso de carros potentes e clonados é outra característica dos bondes da morte. Em abril, o i30 envolvido no confronto com os PMs estava nessa situação. Assim como um Civic prata recuperado horas depois, abandonado na região do Parque Chico Mendes, no Bairro Mario Quintana. A polícia ainda investiga um possível terceiro veículo naquele crime, que acabou não sendo percebido pelos policiais. A 3ª DHPP ainda trabalha para identificar os ocupantes do Civic e prováveis integrantes da quadrilha que estivessem no terceiro carro.
"Gasta todas as balas"
Se nos casos da Vila Jardim o bonde partiu com alvos bem definidos, em outro caso, a polícia comprovou que os Bala na Cara também seguem uma estratégia de "procurar e destruir", como acontece em guerrilhas. Foi assim na noite de domingo, 6 de dezembro do ano passado, em Viamão, quando Cristiano Bach foi executado com diversos tiros na Rua Narciso de Aguiar, Bairro Martinica. Na saída, os criminosos ainda dispararam a esmo, ferindo um homem que não tinha nenhuma relação com a criminalidade.
A ação foi toda gravada pelo whatsapp, com um dos atiradores prestando informações a um comando. Este interlocutor ainda não foi identificado pela polícia. Há suspeita de que, assim como nas outras ações, o comando tenha partido da cadeia.
São mais de 40 minutos de áudio. E o nível de violência impressiona.
– Quem vocês pegar, faz de chuveirinho. Gasta todas as balas, não tem miséria – avisava o criminoso ainda não identificado pela polícia.
De acordo com os investigadores da Delegacia de Homicídios de Viamão, o crime foi resultado de quase uma hora em que o bonde com pelo menos três carros vagou por locais com pontos de tráfico mantidos por grupos supostamente rivais aos Bala na Cara. Os criminosos vestiam camisetas pretas com inscrições da Polícia Civil.
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O "linha de frente" era Cláudio Eduardo Bandeira da Silva, o Duduzinho, 19 anos. Ele, juntamente com Anderson Henriques da Silva, 29 anos, Júlio César de Moura Santana, 22 anos, e Luiz Cainan Ribeiro da Silva, 21 anos, foi morto no confronto com PMs diante do Cristo Redentor em abril.
– Desde muito jovem o Duduzinho era bastante violento, tinha essa função de linha de frente mesmo e acabava chamado para ações em outros lugares – explica a delegada Larissa Fajardo.
Duduzinho era morador de Viamão e, na cidade, tinha pelo menos outros dois indiciamentos por homicídios. Nos últimos meses de vida, jurado de morte na sua cidade, ele estaria atuando em áreas controladas pelos Bala na Cara – e cumprindo missões da facção – em Porto Alegre.
Suspeito mapeou o alvo em Eldorado do Sul
Na madrugada de 6 de junho, um bonde da morte agiu em Eldorado do Sul, deixando cinco homens mortos em um bar no Bairro Cidade Verde. No dia seguinte ao crime, um Focus supostamente usado no ataque foi recuperado pela polícia no Bairro Bom Jesus, em Porto Alegre. O carro havia sido roubado em Viamão e estava clonado. Peritos comprovaram sinais das digitais de William Garcia da Silva, 23 anos, no veículo. Ele acabou preso.
De acordo com a delegada Patrícia Sanchotene, a investigação ainda detalha como foi todo o planejamento do grupo para aquele ataque. Já se sabe que William serviu como guia e foi um dos executores naquela madrugada. Segundo os investigadores, o suspeito viveu durante três meses na cidade e conseguiu mapear os pontos de tráfico dos rivais. Por enquanto, há apenas suspeitas dos demais participantes do crime.
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Toda a ação foi gravada e enviada pelo whatsapp. Assim como em Viamão, os criminosos se fizeram passar por policiais e pareciam ter um alvo específico: Gérson Darif dos Santos, o Balu, 27 anos. Ele foi um dos executados, mas os outros quatro – Dan Menahen da Silveira Votnamis, 15 anos, Maurício de Sousa, 25, Wagner Carvalho da Silva, 32, e Dênis Fabiano Rodrigues Xavier, 32 –, segundo a polícia, teriam morrido de graça. Foram disparados diversos tiros de pistola 9mm e espingarda calibre 12.
Ainda gravando, depois de atirarem mais de 30 vezes no bar, um dos criminosos comenta na volta ao carro em que estavam se "o cara certo" foi morto. Outro responde:
– Se não era, azar.
Guerra não é territorial
Em nenhuma das ações investigadas pela polícia o objetivo era a tomada de pontos de tráfico dos rivais. O objetivo de cada ação dos bondes, de acordo com a delegada Patrícia Sanchotene, está ligado a vingança pelas rivalidades crescentes entre facções.
Mais do que controlar territorialmente a boca de fumo, as missões serviriam para aniquilar rivais e mostrar poder de fogo dos Bala na Cara. Não é à toa o armamento sempre ostensivo em cada uma das ações.
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No confronto em frente ao Hospital Cristo Redentor, por exemplo, foram apreendidos um fuzil 5.56 e quatro pistolas 9mm. A polícia tem convicção de que os bandidos estavam armados com pelo menos outro fuzil, possivelmente de mesmo calibre. Desta arma, que estaria com criminosos no Civic prata abandonado horas depois, é que teria partido a rajada que feriu os dois PMs.
O armamento em cada um dos ataques é estratégico. Nas conversas de whatsapp encontradas pelos investigadores da 3ª DHPP, um interlocutor ainda não identificado se certifica antes sobre qual dos comparsas ficará com cada um dos "bicos" (fuzis). De acordo com o delegado Cassiano Cabral, o criminoso também determina quem ficará em cada carro.
– Eles apontam quem tem mais habilidade para cada função, quem atira melhor com o fuzil, quem conhece a área, e aí organizam o ataque – explica o delegado.
Tiroteio no hospital foi por acaso
A partir das informações levantadas sobre o bonde da morte, a 3ª DHPP concluirá o inquérito do confronto diante do hospital com o apontamento de tentativa de homicídio contra os policiais que, no entendimento do delegado Cassiano Cabral, agiram em legítima defesa. A intenção é indiciar os criminosos que venham a ser identificados como ocupantes do Civic, que escaparam do local do último confronto.
Segundo os investigadores, o tiroteio diante do hospital foi ao acaso. É que, depois da troca de tiros na área entre a Vila Jardim e a Vila Ipiranga, havia feridos tanto entre os policiais quanto entre os bandidos. Percorrendo caminhos diferentes, todos seguiram para o Cristo Redentor. Acabaram encontrando-se na Avenida Assis Brasil, onde os ocupantes do i30 teriam atirado novamente contra os policiais, que revidaram.
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