Vovô no vermelho
Com crédito abundante, idosos mergulham no endividamento
Responsáveis por 1,5 milhão de famílias no Estado, mais velhos têm perdido controle das contas e aumentado o número de calotes
Não se faz mais velhinhos como antigamente. Aquele vovô que ficava em casa esperando a próxima novela, guardava dinheiro debaixo do colchão e só saía para ir ao médico está fora de cena. A terceira idade - e isso já é sabido - se libertou: quer mais é viajar, trocar de carro, casar de novo e encher de mimos (caros) filhos e netos.
O problema é este ânimo tem tornado os idosos presas fáceis para as tentações do consumo e do crédito abundante. Nos últimos 12 meses, a terceira idade foi a faixa etária que mais se endividou, conforme um estudo do SPC Brasil. E, não por acaso, a que mais aumentou o número de calotes, que crescem duas vezes mais rápido entre consumidores com mais de 65 anos.
- Os bancos perceberam que os idosos estão mais ativos, e começaram a facilitar empréstimos. Mas muitos pegam mais dinheiro do que devem e acabam perdendo o controle - diz Marcela Kawauti, economista-chefe do SPC.
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A oferta de crédito é pulsante. Conta o aposentado Carlos Pinheiro, morador de Porto Alegre, que tomou R$ 5 mil no consignado há três anos para consertar o telhado da casa, varrido por uma tempestade. Desde então, entrou em uma bola de neve: pegou outro empréstimo para cobrir a dívida, a juros mais baixos, e um terceiro para comprar móveis novos. Quando se deu conta, estava com cinco empréstimos diferentes corroendo o benefício da Previdência.
- O pessoal dos bancos me liga todas as semana para oferecer um empréstimo para cobrir o outro, e ainda mais um dinheirinho extra. Se vai aceitando, o sujeito acaba gastando tudo para pagar dívida - conta Pinheiro.
Desde que foi autorizado, em 2004, o crédito consignado para pensionistas do INSS avançou na força de uma onda se aproximando da costa, mas os velhinhos mal tiveram tempo de vestir o calção. Nos últimos seis anos, esses empréstimos cresceram 50% a mais do que as operações tradicionais. Conforme o Banco Central, os pensionistas do INSS devem R$ 71 bilhões nessa modalidade.
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- Os idosos costumam ser mais avessos ao risco, mas a forma como o consignado é apresentado pode trazer uma imagem irreal de que a operação é menos onerosa - explica Flávia Ávila, mestre em economia comportamental pela Universidade de Nottingham, na Inglaterra.
Geralmente, o consignado não é a causa da inadimplência, mas muitas vezes serve de porta de entrada. Como o dinheiro que sobra depois de pagar a parcela não dá conta de outras despesas, o idoso recorre ao cheque especial, cartão de crédito ou financeiras, pagando juros altíssimos.
- As falhas começam logo no início da aposentadoria: o cidadão não se planeja para a queda na renda e o horizonte de gastos mais altos com médicos e remédios. Daí as contas vão chegando, a pensão não acompanha e vai batendo o desespero - explica o especialista em finanças da Unisinos Sérgio Soldera.
Dívida, no caso dos idosos, incomoda mais porque, muitas vezes, vem desacompanhada de esperança. Aposentado desde 1993, João Cordova, 71 anos, sabe que não vai receber um aumento de salário ou ser promovido. E que não virá uma herança que o ajude a pagar uma dívida de R$ 22 mil com o banco.
- Já me ofereceram reduzir para R$ 6 mil para quitar, mas nem se fosse R$ 100 eu teria de onde tirar - diz o aposentado.
Um terço do benefício de pouco mais de R$ 900 nem entra na conta: vai direto para cobrir um consignado. Os R$ 600 que sobram pagam o aluguel. Os filhos ajudam como podem, mas só dá para o rancho e os remédios.
Como chegou a esse ponto? Muito rápido, diz Cordova: no ano passado, perdeu o emprego e a renda caiu pela metade. Algumas dívidas, até então sob controle, degringolaram. No início deste ano, a esposa iniciou um tratamento de saúde dispendioso.
- Para completar, minha aposentadoria não dá para nada. Quando me aposentei, ganhava o equivalente a sete salários mínimos. Hoje, ganho um e meio - calcula Cordova.
Idosos chefiam 1,5 milhão de famílias no Estado
A disparada no endividamento dos idosos também está associada ao seu ganho de importância na estrutura familiar. Pessoas com mais de 65 anos que moram com filhos ou netos passaram a ter mais protagonismo no pagamento de contas e, também, na tomada de empréstimos que beneficiam toda a família.
Entre 2000 e 2010, a quantidade de idosos que têm a renda mais alta da casa mais que dobrou no país. No Rio Grande do Sul, cresceu 126%, conforme o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Eles estão à frente de 1,5 milhão de famílias no Estado. Como trabalham por mais tempo, mesmo depois de aposentados, eles se tornaram pilares para parentes menos abonados.
- É comum o idoso "emprestar" o nome para algum parente tomar crédito, seja porque os juros do empréstimo consignado são menores, seja porque filhos ou netos estão inadimplentes e não conseguem empréstimo em seu nome - diz José Roberto Romeu Roque, presidente do Instituto Brasileiro de Estudo e Gestão da Inadimplência.
A despeito da boa vontade, a mistura de contas pessoais com familiares pode levar a um nó difícil de ser desfeito. Especialistas explicam que, em razão da dificuldade de raciocínio e memorização, parte dos idosos pode ter dificuldade em compreender a dimensão das contas e em separar gastos seus e os da casa.
- Vejo que muitos idosos querem ser generosos com a família, parcelando celular ou TV nova, mas muitas vezes não entendem o peso disso no orçamento - afirma José Pedro Kuhn, presidente da Federação dos Trabalhadores Aposentados e Pensionistas do Rio Grande do Sul.
Se a família pode conduzir à dívida, também pode ser a tábua de salvação. Amante de viagens de carro pelo interior do Rio Grande do Sul, o aposentado João Orlando Fagundes não costumava pensar duas vezes quando o banco oferecia um dinheirinho extra. Enchia o tanque do Gol e se tocava para a fronteira com a mulher, Bea Cruz. Com o que sobrava, mimava o filho: certa feita, comprou uma moto zero quilômetro para ele.
No ano passado, Fagundes levou um puxão de orelha da companheira: já eram cinco empréstimos, entre os descontados em folha e pagos no boleto, sem contar carnês de lojas de roupa e eletrodomésticos.
- Sobrava cada vez menos para passar o mês. Sentei com a patroa e decidimos pagar as dívidas antes de pensar em pegar mais dinheiro - conta Fagundes.
O gasto de R$ 570 com parcelas ainda é relativamente alto para a renda da família. A boa notícia é que parou de subir.
O que leva ao endividamento
- Oferta ostensiva de crédito consignado ou sem análise.
- Tomada de empréstimo para ajudar filhos ou netos, muitas vezes incluídos em cadastros como SPC e Serasa.
- Aumentos modestos da aposentadoria, em alguns anos atropelados pela inflação.
- Falta de planejamento para adequar as contas à queda da renda com a aposentadoria.
- Longevidade: como vivem mais, as pessoas viajam e gastam em lazer, muitas vezes recorrendo a empréstimos.
Como a família pode ajudar
- Conversar com o idoso sobre os riscos de acumular empréstimos, principalmente consignados.
- Acompanhar o extrato bancário, com a devida autorização, para identificar eventual gasto exagerado com empréstimos.
- Se for preciso tomar dinheiro no nome do idoso, certificar-se de que haverá condições para honrar as parcelas, e jamais permitir que haja atraso.
- Em renegociações ou tomada de empréstimos, acompanhar os mais velhos ao banco ou crediário para certificar-se de que as condições oferecidas são vantajosas
- Em situações que chegam ao superendividamento, buscar ajuda especializada ou da Justiça para renegociar dívidas.