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Pelo menos 65 invasões enfrentam processos de reintegração de posse

São mais de 50 mil pessoas que vivem em áreas das quais não são proprietárias

16/09/2014 - 07h09min

Atualizada em: 16/09/2014 - 07h09min


Pelo menos 65 ocupações habitacionais espalhadas em terrenos privados, do município e do Governo do Estado, em Porto Alegre, enfrentam processos de reintegração de posse na Justiça desde 2000. São mais de 50 mil pessoas vivendo em áreas das quais não são proprietárias. Ontem, o presidente do Tribunal de Justiça do Estado, desembargador José Aquino Flôres de Camargo, tomou posse como governador interino do Rio Grande do Sul e afirmou que a Brigada Militar cumprirá as ordens judiciais para reintegrar áreas ocupadas.

Por solicitação da Procuradoria Geral do Município (PGM), 29 processos de reintegração de posse tramitam na Justiça. Outros 20 processos são referentes a áreas do Governo do Estado. E há, ainda, 16 ocupações em propriedades privadas. Destas, 15 são representadas pelo advogado Paulo Rene Soares Silva, especialista em Direito Urbanístico.

- A questão das ocupações precisa ser tratada de forma diferenciada. As famílias estão mais informadas, organizadas em cooperativas ou associações. Existe direito social envolvido. Se você não tem Cep, não é ninguém. Pelo menos, assim, lutando por moradia própria, eles estão ganhando identidade - justifica Paulo Rene.

Ocupações criaram fórum

A criação do Fórum das Ocupações Urbanas da Região Metropolitana é um exemplo da organização destacada por Paulo Rene. Uma vez por semana, líderes das ocupações, advogados e entidades se reúnem na Assembleia Legislativa para discutir a questão habitacional. Um dos objetivos do fórum é forçar o Judiciário a criar uma vara especializada em conflitos fundiários para que todos os casos sejam analisados pelo mesmo juiz e no mesmo local. Hoje, todas as varas recebem processos de reintegração de posse.

- Há 50 anos, as propriedades tinham um estilo. Hoje, existe uma nova realidade habitacional. As propriedades precisam ser funcionais. Se não forem, se tornam vazios urbanos. Os juízes tendem a fazer as reintegrações de posse para não deixar o morador se estabelecer, mas o Estatuto da Cidade proíbe isso - ressalta Paulo Rene.

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"Vão dar com os burros n'água"

O promotor de Justiça Heriberto Roos Maciel, da promotoria de justiça de Habitação e Defesa da Ordem Urbanística, concorda que existe uma nova realidade em termos constitucionais e destaca que as prefeituras são as responsáveis por fiscalizar as áreas vazias na cidade, privadas ou não.

- Se analisarmos a Constituição, há um espaço sobre o uso da propriedade urbana. O poder público deve ter uma política pública de fiscalização para combater a subutilização do meio. Porto Alegre, por exemplo, não tem uma legislação municipal direcionada para esta questão - alerta Heriberto.

Já o vice-prefeito da Capital, Sebastião Melo, rebate afirmando que houve um crescimento desordenado das cidades, sem planejamento ao longo de décadas. A prefeitura, segundo ele, dá o apoio técnico às famílias ou cooperativas que adquirem o terreno diretamente com o proprietário. Porém, em se tratando das atuais ocupações, Melo é incisivo:

- Temos 55 mil inscrições aguardando por imóveis do Minha Casa, Minha Vida, que ainda não têm moradia porque não conseguimos terreno regularizado. Não furaremos esta fila com quem ocupa irregularmente. Os que pensam que vão adquirir casa em Porto Alegre ocupando vão dar com os burros n'água. Isso é desrespeito com todos os outros.

A vida na ocupação

Durante dois dias, o Diário Gaúcho visitou duas ocupações com realidades completamente diferentes, na Capital. No Bairro Sarandi, na Zona Norte, 120 famílias decidiram entrar em 31 de agosto num terreno ao lado de uma área da Vila Asa Branca onde o Departamento de Esgotos Pluviais (Dep) está realizando uma obra de macrodrenagem. No Bairro Hípica, na Zona Sul, uma cooperativa formada por 300 famílias resiste há três meses numa área particular de nove hectares.

Experiência ajudou

Logo na entrada do terreno, o portão de tela só se abre para quem tem a entrada permitida na área de nove hectares no final da Rua Celestino Bertolucci, na Zona Sul, ocupada por 300 famílias há três meses.

Ao lado do portão, a casa de madeira com banheiro de alvenaria dá lugar à sede da Cooperativa Habitacional Morada dos Ventos. É ali que parte das famílias ainda faz a higiene diária. Poucas são as que já construíram banheiro nos próprios terrenos de 10m x 25m onde a maior parte das moradas é pré-fabricada.
Caminhando pela área, porém, percebe-se que a organização faz parte do grupo que em julho do ano passado tentou sem sucesso ocupar a mesma área. Há uma avenida com 10m de largura e outros 3m para as calçadas de ambos os lados, junto com pelo menos 12 ruas transversais que começam a tomar forma em meio ao barro.

- Não tínhamos nenhuma organização quando decidimos entrar pela primeira vez. Ficamos apenas três dias até a Brigada Militar nos expulsar da área com uma ordem de reintegração de posse - recorda a vice-presidente da Cooperativa, Paula Daiane Wolski.

Experiência trouxe a união

Mas a experiência da ocupação fez o grupo se unir. A partir daquele momento, fundaram a cooperativa que hoje dá nome a área reocupada há três meses pelas mesmas famílias do ano passado.

- Percebemos que sem organização não conseguiríamos nada. Contratamos advogado, fizemos um mapa da área já com a divisão dos terrenos e decidimos que ocuparíamos para negociar com o dono. Queremos comprar a área - garante Paula Daiane.

Até mapa da área foi feito pela cooperativa, com divisões dos terrenos e espaços destinados a praça, posto de saúde e creches. Cada um dos cooperados paga uma mensalidade, cujo valor não é divulgado pela diretoria. O dinheiro tem sido usado para pagar os honorários do advogado Paulo Renê e para a compra de equipamentos que garantam melhorias no espaço, como a abertura de valas para a futura canalização das redes pluvial e cloacal.

Desde a segunda ocupação, a Cooperativa sofreu duas tentativas de reintegração de posse. O caso segue tramitando na Justiça. Enquanto a situação não se resolve, a lista de espera por um terreno segue crescendo, como relata a presidente, Sinara Zimmermann:

- Cada integrante da família moradora possui cadastro na cooperativa. São todos trabalhadores que só querem ter o direito a uma casa própria. E se alguém desistir, temos uma lista de espera com 500 nomes.

Para a frente do terreno

Da porta da casa de madeira de duas peças ainda cheirando a novas, a dona de casa Jéssica Reis, 21 anos, contempla o portão de entrada da cooperativa.

- Moramos durante três anos em uma peça nos fundos dos fundos da casa do meu avô do meu marido. Banheiro era só na casa dele. Agora, moramos bem na frente - comenta.

Jéssica, o marido, que trabalha como motorista, e o filho João Vitor, hoje com dois anos, estavam entre as primeiras famílias que em 2013 tentaram ocupar a área onde hoje está a Cooperativa. Sem sucesso, retornaram para a morada anterior. Na segunda tentativa, ficaram em barracas de lona até chegar o material da casa nova, comprado em suaves prestações. O banheiro deve ser construído em breve, assim como a cozinha e outro quarto.

- Apostamos a nossa vida neste terreno. A sensação de ter uma casa própria é a melhor de todas, mas ainda fico nervosa só de pensar que existe a chance de perdermos tudo.

A casa própria

Numa peça feita com tábuas de compensado, a pensionista Terezinha Soares Teixeira, 66 anos, comemora o que considera "a primeira casa própria" da vida. A morada improvisada foi construída atrás da casa de madeira, com banheiro de alvenaria, onde estão o filho, a nora e dois netos.

Antes de transferirem-se para um dos terrenos da Morada dos Ventos, Terezinha conta que a família pagava R$ 700, entre aluguel, água e energia elétrica, na Vila Barro Vermelho, no Bairro Restinga.

- Se ficarmos aqui, quero construir minha casa. Meu filho quer pagar por este terreno, ser o dono mesmo. Só queremos ter o canto da gente, sossegados - diz Terezinha.

Aposta no futuro


Foto: Omar Freitas, Agência RBS

O pedreiro Roberto Carlos Bibiano, 37 anos, foi chamado de louco pela mulher Patrícia, 24 anos, quando disse que a família se mudaria para a ocupação. Com os filhos Tauany Roberta, dois anos, e Kevyn, quatro meses, o casal alugava uma peça sem banheiro num cortiço localizado no Morro Santa Tereza. Por ela, pagavam R$ 450.

- Quando decidi que nos mudaríamos, peguei o dinheiro do aluguel e paguei um caminhão para a mudança. Meu padrasto tirou a casa de madeira no cartão de crédito em quatro vezes de R$ 326. Ainda estou pagando _ conta Roberto, animado.

Mesmo com a possibilidade ainda existente de serem removidos, o pedreiro mantém a esperança de dias melhores:

- Coloquei até número na casa para mostrarmos que existimos.

Ocupação está no início

Bastou o funileiro desempregado Claudionor Antônio Pereira, 46 anos, cravar a primeira estaca num terreno coberto de mato ao lado do valão que faz divisa com a Vila Asa Branca, no Bairro Sarandi, há 15 dias, para que outras dezenas de famílias o seguissem.

- Tomei a decisão quando fui mandado embora do emprego. Nunca tinha feito isso antes. Cansei de me ralar para pagar R$ 400 por uma peça de madeira com banheiro para morar com a minha mulher e meus quatro filhos - conta.

Diferente dos ocupantes da Zona Sul, na nova Asa Branca, como estão chamando a área, as 120 famílias não estão organizadas em cooperativa ou associação. Não havia um líder até Cláudio começar a responder por todos. Ganhou o cargo por ser o primeiro a tomar a decisão.

Ao longo do valão, se formou uma tripa de terrenos, cada um com 9mx15m. Neles, moradores instalaram provisoriamente casebres feitos com lonas, tábuas de compensado ou de restos de madeira retiradas do lixo. Na base do facão, os maricás foram derrubados dando lugar a uma rua com 4,5m de largura. O objetivo, segundo Claudionor, é dar passagem para os veículos. A energia elétrica vem de ligações clandestinas.

- Cada um deu o que pode para comprarmos os fios. Não estamos sob o terreno que a prefeitura diz ser da obra de macrodrenagem. Estamos do lado - reafirma o líder, que está num dos terrenos junto com a mulher e os quatro filhos, com idades entre oito e 14 anos.

No dia 10 deste mês, Claudionor recebeu a notificação da Justiça para que as famílias deixem a área até o dia 20. Na mesma data, o líder começou a procurar um advogado para representá-los.

- Não sabemos como isso (ocupação) funciona. Mas não vamos desistir. Este terreno estava vazio e só servia para os marginais e usuários de drogas. Agora, têm famílias querendo pagar por ele - finaliza.

Casa só com teto


Foto: Omar Freitas, Agência RBS

Cansados de viverem num cômodo há 14 anos, a auxiliar de limpeza Marilane Andrade, 50 anos, e o porteiro desempregado Carlos Neves, 43 anos, decidiram tentar a sorte na ocupação ao lado de onde moravam de aluguel por R$ 350 mensais.

- Há anos queríamos fazer isso, mas faltava coragem. Não estamos aqui movidos pelo ano eleitoral. Viemos porque não temos onde morar - tenta justificar Carlos.

Quase sem voz por dormir na rua nas primeiras noites para garantir o terreno, Carlos pretende pagar pelo espaço que ocupou. Sonha em ver a prefeitura negociando com os moradores. Porém, temendo uma reintegração de posse, o casal preferiu não construir uma casa.

No espaço reservado, ergueram uma espécie de barraca, com menos de 1m de altura, usando as seis telhas de amianto que Marilane ganhou da patroa. Embaixo dela, um colchão para os dois dormirem até receberem a decisão final da Justiça.

Fim do aluguel

A morada de duas peças de compensado erguida por Daniela Fátima Santa Helena de Moura, 33 anos, na área ocupada é maior do que o lugar onde ela vivia com os três filhos, de três, 11 e 13 anos, na própria Asa Branca. Com os recibos dos alugueis nas mãos, Daniela Fátima diz que cansou de pagar R$ 350 por um quarto com banheiro.

Na casa nova, há cozinha e quarto com ligações clandestinas de energia elétrica e de água. A família se transferiu para o local. O antigo endereço só é utilizado por conta do banheiro.

- Continuo pagando o quartinho porque não sabemos se vamos continuar aqui. Mas já montei a improvisada para garantir o nosso espaço - justifica.

BM fará reintegração

Hoje, a Brigada Militar promete cumprir a reintegração de posse prevista para 46 famílias que ocuparam um terreno próximo ao número 8.100 da Avenida Protásio Alves, no Bairro Alto Petrópolis. Só o 20º Batalhão da Brigada Militar possui outros dez mandados de reintegração de posse previstos para os próximos dias. O tenente-coronel Marcelo Tadeu Pitta Domingues afirma que os processos estão em fase de planejamento. Devido à desocupação programada para hoje, cerca de 50 manifestantes bloquearam o trânsito na Protásio Alves, perto da Rua Ary Tarragô, na noite de ontem.


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