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Conselho Tutelar

Conselheiros tutelares revelam situações de risco vividas em áreas conflagradas da Capital

Profissionais relataram que sofrem ameaças de traficantes, além de serem impedidos de entrar em determinadas áreas

09/07/2016 - 10h03min

Atualizada em: 09/07/2016 - 19h25min


Schirlei Alves
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Nos últimos cinco anos, 422 adolescentes, de 12 a 17 anos, foram executados na Região Metropolitana de Porto Alegre. Em 70% dos casos, o assassinato foi motivado por envolvimento com o tráfico de drogas. Em meio a esse cenário, em que os jovens estão, cada vez mais, sendo utilizados como soldados do tráfico e atuando com arma em punho, é que os profissionais responsáveis por preservar o direito deles têm que atuar.

VÍDEO: Diário Gaúcho acompanha dia de trabalho de conselheiro tutelar

Conselheiros tutelares ouvidos pela reportagem do Diário Gaúcho sentem arder com mais intensidade desde o último ano os respingos da guerra entre facções que dominam as comunidades vulneráveis. A violação de direitos, que deve ser combatida conforme rege o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), já ultrapassou os casos de negligência, abandono e abuso. Na Capital gaúcha, os conselheiros são recebidos pelos próprios adolescentes armados, rodeados de traficantes, dando ordens no território.

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Os profissionais revelam que sofrem ameaças de traficantes, são impedidos de entrar em determinadas áreas, convivem com o medo e enfrentam o dilema de acionar ou não a proteção da Brigada Militar em situação de risco.

– Se eu entrar acompanhado da Brigada sei que nunca mais volto na comunidade. Às vezes, preciso pedir autorização ao traficante para entrar e averiguar uma denúncia. Mas vamos com a cara e com a coragem. Não temos colete, só a proteção divina – conta um conselheiro que tem receio de ter a própria imagem vinculada à atuação da polícia.

O Diário Gaúcho revela três situações de risco vividas por conselheiros tutelares que atuam em áreas conflagras distintas de Porto Alegre. Os profissionais preferiram não publicar a identidade por medo de represália. Eles moram na mesma região em que atuam, pois foram eleitos pela própria comunidade.

Adolescentes armados dão as ordens

Um dos conselheiros contou como foi o atendimento que mais lhe causou espanto desde que iniciou na função. Ele recebeu a denúncia de que um adolescente não estava mais frequentando a escola e estaria em situação de rua. Ao entrar na comunidade para checar a informação, foi recebido por adolescentes e adultos armados. As pistolas em punho e as caras amarradas revelaram o aborrecimento do grupo com a presença estranha na quebrada.

O adolescente procurado já sabia que a bronca era com ele e acabou tomando a frente. Os colegas ordenaram que a parada fosse resolvida o mais breve possível. Do contrário, eles poderiam solucionar do jeito deles.

– A gente conversou por meia dúzia de minutos enquanto os outros ficaram em volta. Não pude fazer muitas perguntas para não me expor e nem expor o adolescente.

Minutos depois, o grupo anunciou que o tempo havia acabado e a conversa estava encerrada. Era hora de partir.

– Melhor ir embora, antes que alguma coisa pior aconteça – anunciou um dos armados.

O conselheiro confirmou a denúncia, mas o garoto resistiu à tentativa de resgate.

– Estou bem aqui e é aqui que vou ficar.

A partir daí a responsabilidade ficou à cargo da Justiça e não mais do Conselho Tutelar.

Mãe é traficante e guri guardião da boca

A denúncia recebida por outra conselheira dizia que um garotinho filho de uma traficante estaria sendo utilizado como guardião de uma boca de fumo. Ele utilizava arma para intimidar os que entravam e saíam da comunidade. Antes de checar, a conselheira procurou informações com colegas da rede de proteção. A notícia se espalhou rápido, e o aviso chegou sem demora.

– Não entra lá, senão eles vão te matar – adverte uma colega.

Um comunicado foi enviado ao Ministério Público sobre a impossibilidade de verificar a denúncia. O MP solicitou intervenção judicial para abrigar todos os filhos. Um oficial de Justiça fez o serviço.

No dia seguinte, a mãe foi armada ao abrigo buscar os filhos e os levou de volta à comunidade. A situação voltou à estaca zero. A solução de proteger o direito do guri e dos irmãos ainda não foi encontrada.

– Corro risco todos os dia. Mas este será meu último mandato, não quero mais, já estou muito visada.

Recado dado

Um colega da terceira conselheira ouvida pela reportagem foi impedido de entrar em uma comunidade e ficou encarregado de dar o recado a ela. É que o trabalho da conselheira teria desencadeado uma investigação de outros órgãos e consequente fechamento de um estabelecimento comercial.

– Avisa ela que nós sabemos que foi ela que provocou o fechamento. Por isso, não queremos mais o Conselho Tutelar aqui.

A conselheira já mudou a cor do cabelo várias vezes, pois tem medo de represália.

– Quando vem uma situação para o Conselho a gente tem que averiguar, é a própria comunidade que faz a denúncia. O que não é da nossa competência a gente encaminha aos outros órgãos.

Embora sofra com constantes ameaças, ela não desiste do trabalho. Outro dia, um juiz pediu que o Conselho acompanhasse a internação compulsória de um adolescente usuário de drogas, pois não havia um responsável que respondesse por ele.

– Se o pai não quer ir, não sou eu que vou deixar de salvar esse menino, eu vou sim. Quando tu trabalhas por uma causa, tu esqueces do perigo que está do outro lado.

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Conselho Tutelar virou referência

O coordenador do Conselho Tutelar de Porto Alegre, Marcelo Bernardi, afirma que há inversão na ordem da atuação dos órgãos. Com base no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), os conselhos devem atuar quando o direito da criança e do adolescente é ameaçado ou violado por ação ou omissão do Estado, ou por falta, omissão ou abuso dos pais e responsáveis. Na avaliação dele, a rede de proteção que compreende os setores da saúde, educação e assistência social é que deveria ser a porta de entrada.

– As pessoas acabam ficando frustradas, acham que vão chegar no Conselho e encontrar o serviço. Não é o Conselho que presta o serviço, ele vai cobrar que os órgãos cumpram com as suas atribuições.

Segundo o coordenador, o papel do órgão é fiscalizar e encaminhar. Quando o profissional detecta a violação de direito, ele aplica uma medida para tentar resolver o problema sem intervenção judicial. Os responsáveis firmam um compromisso por meio de um documento. Se o acordo não for cumprido, o caso é encaminhado ao Ministério Público, que, por sua vez, aciona o Poder Judiciário.

Função é proteger e não punir

Outra dificuldade elencada pelos conselheiros em momento de crise na segurança pública está relacionada à imagem. O coordenador e os conselheiros ouvidos pela reportagem afirmam que a competência deles está sendo confundida com a atuação da polícia. Por causa dessa associação equivocada, eles sofrem represálias.

– (No caso do adolescente) é preciso separar quando ele é vítima e quando ele é infrator. Nós assumimos quando há falta ou omissão dos pais. Não temos poder de polícia – explica Marcelo Bernardi.

Problemas estruturais

Dificilmente os conselhos conseguem seguir à risca a orientação do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) de oferecer um Conselho Tutelar (com cinco membros) para cada cem mil habitantes. Levando em consideração a estimativa de população do ano passado do IBGE, Porto Alegre tem cerca de 1,4 milhão de habitantes. Hoje, a Capital conta com 10 Conselhos Tutelares. Se fosse seguir a orientação, precisaria de mais quatro para completar o quadro de atendimento.

O município de Alvorada, com pouco mais de 200 mil habitantes, possui apenas uma unidade. Lá, os conselheiros reclamam da estrutura. Além de profissionais, os conselheiros dizem que falta crachá, identificação na Kombi utilizada para os atendimentos noturnos e cadeirinha de bebê para o caso de precisar conduzir uma criança a algum serviço.

Segundo o secretário de Assistência Social de Alvorada, Airton Alminhana, os crachás dos conselheiros já estão sendo providenciados. Ele disse que os profissionais já fizeram a foto que será utilizada na identificação. Eles devem ficar prontos até a semana que vem.

Sobre a falta de identificação na Kombi, o secretário disse que havia uma placa de identificação e que vai verificar o que houve. De qualquer modo, ele afirma que está sendo licitada uma nova empresa para substituir o transporte por um veículo mais novo de pelo menos nove lugares.

Com relação à cadeirinha de bebê, Airton relatou que havia o equipamento e que vai checar o que aconteceu.

Sobre a criação de mais um Conselho, o secretário disse que é preciso aguardar a próxima eleição, que ocorre a cada quatro anos. Mas, para isso, na avaliação dele, é preciso investir em estrutura na rede que faz o atendimento à criança e ao adolescente.


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