Papo reto
Manoel Soares e a saga de quem luta contra o vício em crack
É um momento que só quem vive sabe como dói, mas se, realmente, viver longe da pedra é um desejo, tudo que narro aqui não é 10% da luta
Saga de pedra Horas sentado na frente de um guichê esperando a vez de poder deixar seu nome na lista. Observa com desconfiança e descrença. Quando consegue ser atendido, passa pela triagem, entra em uma sala reservada com paredes beges. Se, por um lado, ali não tem pessoas para julgá-lo, nessa nova etapa, existem demônios para tentar. Quase tudo ativa a memória química de uso.
O olho percorre os cantos perdidos da memória em busca de algo que não lembre um cachimbo e a fumaça adocicada do crack aveludando o palato. A mente castiga o corpo com coceiras, dores musculares e espasmos de febre. Qualquer enfermidade se potencializa e quadruplica a intensidade. Uma dor de dente dá a nítida impressão de que estão arrancando o maxilar de nosso rosto.
Luta
Este é o momento em que o pacto que foi feito é posto à prova. Quem não tem firmeza abandona a tentativa e se enfia na primeira boca assumindo uma dívida absurda em pedra. Mas quem resiste aos mais de 18 horas de martírio ganha uma desintoxicação de 21 dias em um ambiente que em nada lembra um espaço humano. Apesar dos esforços dos profissionais, os sentimentos e instintos ali são primitivos, é o cérebro lutando com os inibidores de impulso.
É um momento que só quem vive sabe como dói, mas se, realmente, viver longe da pedra é um desejo, tudo que narrei não é 10% da luta. Mas todos que venceram disseram que valeu cada minuto.