TESTEMUNHA DA HISTÓRIA
Aos 76 anos, imigrante polonesa escreve livro à mão com memórias da família durante a Segunda Guerra
Wanda Zimny, moradora de Alvorada, sonha em conseguir ajuda financeira para editar e publicar a obra
Sentar no sofá da sala da aposentada Wanda Zimny, em Alvorada, e ouvi-la falar sobre suas lembranças de infância e narrar a trejetória da sua família é mais do que desfrutar da agradável companhia de uma simpática senhora de 76 anos e impressionar-se com sua quase intacta memória. É praticamente uma aula de história. Polonesa, ela veio para o Brasil em 1949, aos oito anos, junto com a família, refugiados da Segunda Guerra Mundial, período em que viveram forçadamente na Alemanha, já que, por fazer divisa com o país dominado por Hitler, foi o primeiro alvo de invasões. Enquanto judeus eram mandados aos campso de concentração, quem não era, como Wanda e os pais, trabalhava como empregado de famílias alemãs. Por aqui, estabeleceram-se em Porto Alegre, e ela cresceu ouvindo as histórias da mãe sobre uma vida de privações e saudade dos entes queridos que ficaram para trás. Agora, Wanda decidiu reunir todas essas recordações em um livro, mas precisa de ajuda financeira para editá-lo e publicá-lo.
Em 210 páginas escritas à mão, as memórias de Wanda estão distribuídas em dois caderninhos pequenos com aspirais, transcritas com caligrafia firme e impecável. A história está dividida em duas partes: a primeira conta como foi a saída da Alemanha e a chegada ao Brasil. Na segunda, ela volta no tempo para mostrar o início de tudo e a vida dos pais em um país destruído pela guerra.
Embora esse seja seu primeiro livro, Wanda não é escritora de primeira viagem. Já havia se aventurado em poemas e poesias, mas alimentava um sonho mais ousado:
— Fui confidente da minha mãe e sempre quis escrever um livro com a história dela, que é a da nossa família. Não sabia se eu seria capaz. Mas comecei a escrever e tudo foi vindo, as lembranças foram aflorando. Chegou um ponto em que parecia que alguém estava ditando pra mim.
Contra a solidão
O livro foi escrito entre agosto de 2015 e março deste ano, em uma rotina manuscrita quase diária que, segundo Wanda, também serviu para aplacar a solidão. Os pais, o irmão (que morava em Alvorada, razão pela qual Wanda se mudou para a cidade, há 17 anos) e o marido, com quem foi casada por 25 anos mas não teve filhos, já faleceram.
— Como eu sou sozinha, muitas vezes, fico enteadiada, aborrecida, tenho que estar sempre com alguma coisa pra fazer. Então, criei coragem de começar. Muitas vezes, eu parava e pensava em como falar de uma situação tão dramática. Me questionava se deveria contar uma coisa tão íntima da minha família, mas sentia que devia continuar. E isso foi me ocupando. Foi até uma maneira de matar a saudade da minha mãe — justifica.
Para viabilizar o sonho, a aposentada conta com a ajuda da assistente social Carla Freitas, a quem conheceu no Cras Cedro, em Alvorada, e em quem encontrou uma verdadeira parceira. Carla se dispôs a digitar o livro e está batalhando por patrocínio para levá-lo até uma editora e concretizar o projeto da amiga.
— A gente ouviu falar muito daquela época histórica, estudou no colégio, mas conhecer os detalhes da realidade desses imigrantes pelo olhar de quem viveu na pele tudo aquilo é emocionante e ao mesmo tempo importante para levar ao conhecimento das pessoas — comenta a assistente social.
Rotina de trabalhos forçados
Filha de Julia e Dariusz Zimny, Wanda viu os pais lavradores serem levados para trabalhar em fazendas na Alemanha e separados, já que cada família alemã só poderia ter um trabalhador estrangeiro. Só podiam se encontrar no dia de folga. Wanda ficou com a mãe, que, mesmo grávida de oito meses da segunda filha, carregava sacos de 60 quilos e guiava carroças na fazenda que a recebeu.
Wanda tinha três anos, à época, e diz se lembrar de ser maltratada pela família que as abrigava. A irmã morreu aos oito meses por falta de cuidados e pela precariedade das condições em que viviam, o que fez com que sua mãe fugisse de onde vivia e procurasse abrigo em outra casa.
— Minha irmã morreu numa quarta-feira, mas só pode ser enterrada no domingo, que era o dia de descanso dos trabalhadores. O corpo dela ficou quatro dias ao lado da cama de minha mãe. De tão frio que era, ficava conservado.
Da outra família para a qual a mãe trabalhou, no entanto, tem as melhores lembranças:
— Depois que fugimos e fomos recebidas em outra casa, fui tratada como uma princesa. Lembro que era uma casa bonita e grande. Lembro do pátio, do jardim... Nós passeávamos aos domingos. Minha mãe era muito grata a eles. Se eu aparecesse naquela cidade, reconheceria a casa e a ponte no caminho até a igreja. Disso me lembro bem.
Aliás, tinha missa todos os domingos, mas apenas para os alemães, recorda Wanda:
— Estrangeiros só podiam ir à missa uma vez por mês.
Imigração pós-guerra
Com o fim da guerra, lembra Wanda, os refugiados das mais diversas etnias foram alojados em prédios desocupados. Roupas e comidas chegavam da América do Norte, mas tudo era racionado.
— Lembro que era tudo muito escasso. Recebíamos cartõezinhos com a quantidade de pão que podíamos comprar. Com o tempo, começou a aparecer emprego também, mas tudo era à base de permuta _ lembra a aposentada.
A educação era informal e organizada dentro das comunidades de refugiados.
— Não havia estrutura de escola, quem sabia ensinava às crianças para que elas não ficassem sem instrução. Guardo comigo dois livros de alfabetização daquela época, em alemão. Às vezes, pego para ler, lembrar e treinar a língua.
Segundo Wanda, eram aproximadamente 2 mil pessoas de várias nacionalidades, e a Alemanha estava destruída pela guerra, o que forçou a abertura da imigração.
— Não tinha como manter aquele povo todo lá, então, abriu a imigração. Tu te inscrevia, passava por exames de saúde e finalmente fazia uma entrevista com o cônsul do Brasil e ele que dizia se te aceitavam ou não. Escolhemos vir para o Brasil porque era conhecido como um país de boas oportunidades e de pessoas acolhedoras e cordiais — lembra Wanda.
Foi nessa época que a mãe engravidou do irmão de Wanda, Lesch Zimny, com quem a aposentada conviveu em Alvorada até 2008, quando ele faleceu de ataque cardíaco, aos 61 anos. O sonho da matriarca sempre foi retornar para a sua pátria, mas, diante do cenário destruído, não teve outra opção a não ser reconstruir a vida no Brasil.
— Ela chorava com as cartas que vinham da Polônia, porque era sempre annciando o falecimento de algum familiar. Lembro da mãe de luto, sempre de preto. Ela sofreu muito longe da terra dela. Já o meu pai tinha a cabeça mais fresca, trabalhava numa siderurgia, puxava ferro, forno, fazia serviço pesado... Mas sempre foi um homem muito tranquilo.
Da Alemanha para Alvorada
A escolha da família Zimny pelo Brasil teve outro propulsor: uma tia paterna de Wanda já havia imigrado, em 1909, para Erechim, no Interior do Estado, e a possibilidade de ter referências familiares por perto estimulou o patriarca a desembarcar no Sul no país. No entanto, optou por se estabelecer na Capital, onde chegaram em 1949. Foi em Porto Alegre que Wanda cresceu, estudou, aprendeu o português e viveu até perder os pais e se juntar ao irmão, que já morava em Alvorada.
— Descemos no bairro Menino Deus, que era um sítio na época. Tinha um casarão com um galpão onde instalavam as pessoas. Tinha beliches, banheiro na rua, as instalções eram precárias e insalubres. A gente podia ficar lá três semanas e, depois, tinha que sair pra procurar casa e emprego — conta.
Logo o pai de Wanda começou a trabalhar ("ele ajudou a construir o bairro IAPI", lembra Wanda) e, aos poucos, foi conseguindo mudar com a família para instalações melhores. Até que, com muita luta, quase dez anos depois, conseguiu comprar um terreno na João Wallig onde construiu a casa onde viveu até o fim dos seus dias.
Sonho de encontrar conterrâneos e praticar a língua
Além do português perfeito, Wanda fala alemão, russo e — seu maior orgulho — polonês até hoje. Mas lamenta não ter com quem praticar a língua, desde que perdeu a mãe. Com lágrimas nos olhos e o olhar distante, emociona-se ao revelar um sonho que acalenta com esperança dentro de si: conversar com pessoas da sua terra na sua língua de origem.
— Com o tempo, a gente vai se abrasileirando e não tem mais com quem falar. Mas é muito vivo o polonês na minha memória. Eu leio muito e, às vezes, pego um livro polonês quando estou com muita saudade da minha familia. Não posso nem imaginar a alegria que seria poder estar no meio de pessoas como eu, da minha terra, e poder ouvi-los falando a língua do meu povo, da minha família.
Fique por dentro
/// Na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a Alemanha perde territórios, exército, força aérea, e isso acaba com o poderio alemão. Surge, aí, o revanchismo.
Em 1933, Adolf Hitler assume o poder como um ícone a ser seguido.
/// O elemento principal para o desencadeamento da Segunda Guerra (1939-1945) é esse revanchismo, presente na Alemanha, Itália e Japão, que formam aliança para conquistar territórios e expandir a cultura. Do outro lado, estão os aliados, principalmente, Reino Unido, Estados Unidos, União Soviética e China. A Polônia adere aos aliados.
/// A Polônia é o país onde começa a Segunda Guerra, em 1939. Por fazer fronteira com a Alemanha, é o primeiro país invadido pelas tropas de Hitler.
/// Com uma posição geográfica importante, ao lado da Alemanha, os poloneses foram os primeiros perseguidos, especialmente os judeus. Esses, eram enviados aos campos de concentração, enquanto os demais trabalhavam em fazendas e casas de alemães.
/// Com o fim da Segunda Guerra, teve início a imigração de refugiados. O Brasil sempre foi visto como terra de boas oportunidades.
/// Nos anos 1940, a indústria ainda engatinhava no país, que precisava de mão de obra. Em contrapartida, os refugiados precisavam de trabalho e de uma vida minimamente digna. Eles podiam escolher os países onde começariam uma nova vida, e milhares vieram para cá.
Fonte: Juliano Oliveira, professor de História da Escola de Aplicação Feevale