Personagem
Leitor do DG e fã da Rádio Gaúcha: conheça Jorge, "cidadão do bairro Farroupilha"
Ex-pintor dorme em praça que fica em frente ao colégio Julinho e durante o dia recebe ajuda de moradores
Sentado em uma cadeira de plástico, protegido pela marquise de uma agência bancária, Jorge Antônio Cordeiro Barbosa, 63 anos, inicia logo cedo uma rotina que é acompanhada pelos vizinhos do bairro Farroupilha, em Porto Alegre: acorda antes das 5h, apoia a mochila ao lado da porta giratória e lê as manchetes de capa do Diário Gaúcho. O jornal é cortesia do segurança aposentado Pedro José Nunes, 75 anos, morador de um prédio no mesmo quarteirão. Acostumado a saltar cedo da cama, o ex-vigilante entrega o exemplar antes das 6h.
— Já criamos uma amizade. Há muitos anos, nem sei quantos, eu acompanho uma vizinha até o hospital e, na volta, trago o jornal para ele, daí ficamos conversando — detalha o aposentado, às 6h30min desta quinta-feira (16).
Quando não recebe a visita do amigo que lhe entrega o impresso, uma banca de revistas realiza a doação, mantendo Jorge atualizado sobre os fatos mais importantes do Estado.
No período de cerca de uma hora em que a reportagem de GaúchaZH acompanhou o morador de rua, mais de uma dezena de pedestres cumprimentou o vizinho sem-teto. “Bom dia”, “Como está?” e “Precisa alguma coisa?” foram as frases mais repetidas, atitudes que lembram a convivência de municípios do Interior, surpreendente em meio aos grandes edifícios da área central da Capital.
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Com o passo apressado, desacelerado ao passar em frente ao homem que consome as reportagens do DG, a técnica em enfermagem Denise Cruz Oliva, 34 anos, diz se sentir mais segura com o zelo demonstrado:
— Ele cuida a gente — diz a profissional da saúde.
Jorge saiu de casa há 30 anos, resumindo os motivos a desavenças familiares. A filha e a ex-mulher moram na zona sul da Capital, mas o contato seria limitado. Na mesma época, um acidente de trabalho restringiu os movimentos da perna esquerda.
— Eu caí do alto de um prédio, pintando. Quebrei a perna em três partes, e aí não deu mais para trabalhar — relembra, ao lado da muleta que auxilia sua locomoção.
Diferentemente de uma parcela da população de rua que vive em dezenas de barracos vistos por toda a cidade, ele não ergueu qualquer construção, pois teme perder o ponto na calçada da instituição bancária - na esquina da Rua Lobo da Costa com a Avenida João Pessoa. As noites, passa na Praça Piratini, em frente ao Colégio Estadual Júlio de Castilhos – o Julinho.
Para encarar o frio dos últimos dias, conta com doações: veste jaqueta, blusão com capuz, luvas de crochê, touca e máscara descartável, retirada no posto de saúde Modelo. Na bolsa, um pão com molho e salsicha aguarda o café entregue por trabalhadores que iniciam sua jornada em horário comercial.
A barba alinhada, afirma, é um cuidado dispensado por um amigo que cativou nas ruas, barbeiro que perdeu o emprego e a capacidade de manter o aluguel em dia. Despejado, o profissional passou a integrar a lista de 2,6 mil pessoas em situação de rua, números oficiais da prefeitura estimados em abordagens das equipes da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc). Defasados, os dados representam a realidade medida em janeiro, e passam por um processo de atualização.
Como companhia constante, duas rádios: a Gaúcha, sintonizada de forma ininterrupta no aparelhinho de pilhas, e a Farroupilha – Jorge confessa um carinho especial pelo comunicador Gugu Streit.
— Ah, a oração do Gugu eu não perco. Me ajuda a ficar bem, ao lado de Deus. Eu sou feliz aqui — reitera, deixando de lado as dificuldades de quem não tem um lar há décadas.
A ajuda do comércio local é confirmada pelo proprietário do Mercado Soares, próximo à Avenida Venâncio Aires. O empresário diz ter colaborado com alimentos, mas pondera o que acredita ser uma espécie de “malandragem” de Jorge.
— Realmente, o pessoal ajuda muito ele, tanto moradores quanto mercadinhos do bairro. Mas ele aproveita e fica ao lado do banco para ganhar dinheiro das senhorinhas que usam a agência — diz Marcelo Soares, sem deixar de reconhecer a necessidade das pessoas em situação de vulnerabilidade.
Ivan de Lemos, 82 anos, entregou o troco da padaria para o vizinho menos afortunado.
— Um cara sereno e comunicativo. Cidadão do nosso bairro — definiu, seguindo para casa com a sacola ainda quente.
O sorriso mantido durante a conversa é cerrado quando vêm à tona um sonho aparentemente distante: a possibilidade de voltar a viver em uma casa leva o idoso às lágrimas, e a realidade da rua faz pender o olhar com tristeza.