Zona sul
Vigilante que há 20 anos trabalha ao lado de clube náutico sonha em velejar pela primeira vez
Jorge Luís Camargo chega ao local após pedalar mais de uma hora pelas ruas de Porto Alegre
Da janela da guarita, a vista é privilegiada: a Ilha dos Jangadeiros, um extenso trapiche e duas dezenas de embarcações. No rolo da câmera do celular, Jorge Luís Camargo, 59 anos, guarda o registro do pôr do sol do Guaíba. Diariamente, o horizonte alaranjado indica o fim do expediente como vigilante de uma das mais belas áreas do bairro Tristeza, zona sul de Porto Alegre. Mesmo a 50 metros de distância, os veleiros parecem-lhe muito mais distantes. Há duas décadas trabalhando no local, nunca teve a oportunidade de navegá-los.
- É o meu sonho, subir num desses barcos e passear com a minha mulher – diz Camargo, enfatizando não se tratar de uma força de expressão: - Eu já sonhei, sonhei mesmo, que a gente fazia esse passeio por aqui.
Empregado de uma firma de vigilância, Camargo conquistou a vaga a partir de um amigo, que o indicou. Antes da atual função, trabalhava como cuidador de carros próximo a uma pizzaria, também na zona sul da cidade.
Pai de quatro filhos já adultos, o vigilante deixa a casa em que vive com a esposa, na vila Cruzeiro do Sul, às 5h30min. De terça a domingo, pedala desde o morro Santa Tereza até a casinha onde guarda seus pertences, na ponta da Rua Doutor Barcelos. O trajeto é percorrido em uma hora e quinze, e a labuta se inicia às 7h. Ele, então, estaciona a bicicleta e caminha pela Rua Ernesto Paiva até a segunda cabina, na Avenida Otto Niemeyer.
Na mochila, carrega a garrafa térmica com café preto e um saco de pães com margarina. O pote para o almoço estava vazio às 10h desta terça-feira (24), mas não por muito tempo. Com a ajuda de duas irmãs, donas do Restaurante Pimenta Rosa, nas dependências do Clube dos Jangadeiros, ele tem o almoço garantido, gratuitamente.
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- Estamos há 11 anos aqui, e sempre convivendo com o Jorge. Ele é assim como tu vês, uma pessoa pura, humilde. De um coração muito bom. Ele traz o pote, a gente enche e ele busca – define a empresária Maristela Baumbach Hilgemann, 53 anos.
A sócia de Maristela, Rosemari Baumbach Gomes, 48 anos, conta que, além do carinho dos moradores, Camargo tem uma amiga em especial: a cadelinha Simone, acolhida pela comunidade e cuidada pelo vigia.
- Quando o Jorge sai de férias, ela fica deprimida. Passa vários dias sem comer, dentro da casinha – afirma.
No abrigo, vive ainda o cão Chuck – ou Negão, como também é conhecido por parte da vizinhança.
Para Camargo, a região às margens do Guaíba é a mais encantadora já visitada. Ele agradece pela oportunidade de trabalhar cercado pela natureza preservada ao lado do lago:
- Não troco isso aqui por nada, nem em sonho – responde.
Ele também elogia os vizinhos, a quem chama, com a voz embargada, de “maravilhosos”, amigos que o acolheram no bairro nobre. A boa relação é destacada pela técnica em telecomunicações aposentada Inês Martinato, 69 anos, que diz que a ajuda do vigilante é diária.
- É um cara dedicado, constante para tudo que a gente precisa – diz.
A limitação financeira da profissão, no entanto, restringe os locais conhecidos pelo trabalhador. Nascido e criado na Lomba do Pinheiro, por mãe doméstica e pai profissional de manutenção predial, não conseguiu o que classifica como “luxo”: viajar.
- Eu nunca saí de Porto Alegre. Sabe como é, a gente trabalha para comer e pagar as contas – justifica.
O mar também nunca viu. Além do sonho de navegar nas águas admiradas todos os dias, tem o desejo de tirar férias no litoral catarinense, do qual ouve rasgados elogios.
Enquanto não pega a estrada, segue deslumbrado com a orla da Capital. E tranquiliza quem questiona por que volta a se emocionar.
– Isso aqui é maravilhoso, lindo. Não tem nem como falar. Dá pra fazer um quadro – afirma.