Seu Problema é Nosso
No Morro da Cruz, moradores se mobilizam para transformar lixão em praça
Descarte irregular de dejetos ocorria há mais de 30 anos no ponto localizado no Beco das Paula. Pela segurança das crianças, comunidade busca mudanças no cenário
Da preocupação com as crianças que vivem no Beco das Paula, no Morro da Cruz, zona leste da Capital, uma mobilização nasceu. No meio do beco, entre as ruas Nove de Junho e São Guilherme, existe um ponto que era tomado de lixo. Segundo moradores, o descarte irregular dos resíduos de todos os tipos acontecia há mais de 30 anos.
Em meados de abril, dois moradores do beco, Denis do Nascimento Rodrigues, 24 anos, e Sheron Morais Aguirre, 22 anos, se incomodaram com o perigo que o lixo trazia para seus filhos e outras crianças e perceberam que o cenário poderia ser diferente.
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– A última vez que vi limpeza ali, eu ainda era criança. O pessoal começou a tocar lixo e mais lixo. Eu pensei que dava para fazer alguma coisa ali. Agora o DMLU (Departamento Municipal de Limpeza Urbana) está limpando e já dá para ver o espaço – afirma Denis, que trabalha na equipe de coleta seletiva de Porto Alegre.
Para tentar impactar outros moradores, Denis pendurou algumas placas com avisos para não deixarem lixo no ponto.
– Não tem como as crianças brincarem nas saídas do beco porque tem muito movimento. Também não tem pracinhas aqui perto. Aí, um tempo atrás, vi que tinha algumas que brincavam de se pendurar no cipó de árvore e, ao invés de se jogarem num colchão que tinha, se atiravam na montanha de lixo. Era muito perigoso – conta Sheron, mãe de duas crianças.
Segundo ela, no beco, aproximadamente 30 crianças circulam e procuram por entretenimento, mesmo sem um local apropriado para isso. O número de famílias que moram na alameda são cerca de 70. Sheron viu a movimentação de Denis e pensou em maneiras de contribuir com a ação:
– Depois dele ter pendurado as plaquinhas, conversei com a Lucia (presidente da ONG Coletivo Autônomo Morro da Cruz) e ela me sugeriu fazer um grupo no WhatsApp, com o pessoal que está se mobilizando na ideia de fazer uma pracinha ali para as crianças.
Com fotos de outro beco que foi revitalizado no Morro da Cruz, Sheron fez um varal para exibir aos vizinhos e incentivar o descarte correto do lixo:
– São fotos do Beco das Pedras, de um tempo atrás. Coloquei em dois pontos do beco para eles verem que não é tarde para realizar o sonho que as crianças têm de um lugar para brincar.
Limpeza
Com a articulação do Coletivo Autônomo, a demanda dos moradores pela limpeza foi solicitada novamente aos órgãos municipais, por meio da subprefeitura e do DMLU. Segundo informações do Coletivo, são 800 metros de lomba até a Rua Nove de Julho onde o caminhão de lixo passa durante a semana.
No final de maio, uma equipe iniciou o recolhimento. O desafio para quem trabalha na limpeza é o acesso até o ponto onde se concentrava o lixo. O beco é uma lomba estreita e sem calçamento. Em dias chuvosos, o caminho é tomado por barro.
Para a retirada dos dejetos, os funcionários do DMLU sobem e descem levando um tonel aberto carregado. Enquanto outros trabalhavam cavando o lixo na terra. A cada puxada com o forcado (que é parecido com um garfo), mais lixo aparecia na terra. No dia em que a reportagem esteve no local, o encarregado pela equipe da Cootravipa, empresa terceirizada, afirmou que já havia sido retirado 10 caminhões de lixo e que a previsão era de mais 30 dias de trabalho.
De acordo com o colaborador da ONG Jorge Menezes, 55 anos, no local havia 30 metros cúbicos de lixo — literalmente, uma montanha que cobria troncos de árvores e escondia uma cascata que desce o morro entre as casas. Jorge acompanha o trabalho de retirada dos resíduos.
– Houve essa sensibilização com a situação das crianças. Não tem como ficar parado em relação a isso. E já tivemos um caso parecida, no Campo da Lixa, que também tinha um foco de lixo e hoje tem uma pracinha. Conseguimos restaurar lá e deu certo – conta Jorge.
Segundo ele, os moradores já estão contribuindo para a mudança do local. Desde que a limpeza começou, não ocorreram mais descartes no local.
– Muitos ficavam na zona de conforto, mas agora incentivamos esse pessoal a trabalhar junto. A ideia de pertencimento dá o sentido de posse de que aquilo é meu e eu tenho que conservar. Eles estão pegando junto com o DMLU – afirma.
Ele explica que a coleta do DMLU no local não seria a melhor saída, pois devido ao caminho estreito e com cercas, o funcionário acabaria perdendo lixo no trajeto. A ideia dessa mobilização é a instalação de geladeiras nas entradas do beco para o descarte do lixo doméstico.
Sonho de uma praça
Um dos objetivos da mobilização dos moradores, em parceria com o Coletivo Autônomo, Galpão Cultural Casa de Hip Hop e arquitetos voluntários, é a implantação de uma praça para oferecer às crianças um local adequado para brincarem sem riscos de contaminação com a sujeira. A praça também é uma garantia de que o lixo não voltará a ser depositado no ponto. Para isso, por meio da articulação da ONG, a comunidade pede ao município aparatos de lazer em área aberta, como balanços, gangorras, gira-giras, trepa-trepas, assim como equipamentos para exercícios físicos.
– Em meio a tantas famílias, não existe um espaço social, um lugar para andarem de skate, correrem ou para tomarem um chimarrão. Então, temos essa ideia de fazer uma praça e formamos um movimento por meio do grupo no WhatsApp, a partir da iniciativa do Denis – afirma a antropóloga Lucia Scalco.
Conforme Lucia, outra demanda é a instalação de energia no local onde será a praça para a iluminação. Mesmo sem a regularização elétrica, ela acredita na viabilização por meio de alternativas tecnológicas, como placas solares.
– Não existe uma solução pronta. O trabalho da ONG é articular com os moradores mostrando o que pode ser feito, vendo o que eles querem, o que eles precisam e mostrando os serviços que eles têm direito. E é muito importante contar com o DMLU e com o estado. Não conseguiríamos tirar o lixo sozinhos. E a praça vai sair – garante.
Lucia conta que um dos detalhes que mostra os primeiros passos da revitalização do beco ocorreu na entrada da Nove de Julho. O muro recebeu o colorido do grafite feito por integrantes do Galpão Cultural, trazendo um aspecto positivo e de mudança.
BECO DAS PAULA
A rapper e produtora cultural Jaqueline Trindade Pereira, a Negra Jaque, é bisneta da Paula – mulher cujo nome foi colocado no lugar. Ela explica que a alameda ficou conhecida como "Beco das Paula" em função de as pessoas se referirem às filhas da sua bisavó como "as" Paula.
– Minha bisa teve oito filhas, todas moravam no mesmo lugar. Eram muitas mulheres por todo o beco. Naquela época, nos anos 1970, elas tomavam banho e lavavam roupas na cachoeira que tem ali. Com a função da ocupação sem saneamento básico, hoje, todo o esgoto corre pela cachoeira – lamenta.
Ela acredita que foi o empoderamento dessas mulheres que tornou conhecido o beco da Paula e de suas filhas:
– As mulheres gerenciavam tudo. Elas construíam e tinha muito isso do fazer. O empoderamento já existia há muito tempo aqui mesmo antes de ser um termo famoso. Hoje é bacana ver os moradores se contagiando com essa mobilização, pela natureza, pelo lugar onde moram. Quer coisa mais bonita do que esse lixo dar lugar a uma praça?
Negra Jaque que cresceu no beco, mas atualmente não mora lá, afirma que políticas de habitação são fundamentais para a mudança da realidade das famílias que vivem na região.
Água limpa
As donas de casa Elisangela de Souza, 44 anos, e Liziane Rua Meireles, 43 anos, enfrentam outros problemas além do lixo, como o trajeto no beco, que é sem calçamento. O esgoto doméstico a céu aberto também causa transtornos e invade as casas quando chove. Elas aguardam por outras melhorias a partir da retirada do lixo.
Elisangela é uma das moradoras do beco que lembra da época em que a água da cachoeira era limpa:
– Moro aqui desde que nasci, quando tudo ainda era mato. Eu tomava banho e lavava roupa lá.
A esperança delas e de Jorge é que o lugar esteja melhor para gerações futuras.
– Esse regaste tem que ser feito. Ela (Elisangela) teve uma infância rica, mas os filhos dela já não tiveram a mesma coisa. É como era na época dela que queremos para as crianças. Sem o mesmo sofrimento que é para esses moradores, com uma realidade diferente no futuro – conclui Jorge.
Diagnóstico da prefeitura
A Secretaria Municipal de Serviços Urbanos, por meio das equipes do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), alegou que, há mais de 20 dias, ocorre a limpeza na área de foco crônico de lixo no Morro da Cruz, entre as ruas São Guilherme e Nove de Junho. Na semana passada, a pasta afirmou que "já foram retiradas em torno de 50 toneladas de material e o trabalho deverá se estender por mais alguns dias". Conforme a secretaria, "parte dos resíduos acumulados vem do arroio existente que desemboca neste ponto e outra parte são descartados irregularmente".
Pelo difícil acesso ao local, o departamento ressalta que está fazendo a limpeza manualmente. O DMLU também destacou que "está trabalhando em sistema de parceria com a comunidade que, posteriormente, vai providenciar a revitalização do local" – ação que faz parte do enfrentamento aos focos de lixo da Capital.
Em função da revitalização que será feita no local pela comunidade, o departamento acredita que "não haverá tanto acúmulo de resíduos e, por isso, a programação de limpeza será semestral ou conforme demanda registrada no 156".
A Secretaria do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus) informou "que a área citada na reportagem tem um gravame (isto é, uma previsão) para instalação de área verde". A pasta explicou que "como se trata de área privada, o Plano Diretor de Porto Alegre demarcou um espaço para se tornar uma possível praça" e para isso, "a prefeitura, por meio da Diretoria de Planejamento Urbano, determina no Plano Diretor áreas passíveis de se tornarem espaços públicos verdes a partir de uma análise técnica". Questionada sobre uma data para instalação da praça, a secretaria tinha a previsão.
Produção: Caroline Tidra