Tragédia sanitária
Em meio à desaceleração da pandemia, Brasil chega a 600 mil mortos por covid-19
País concentra menos de 3% da população mundial, mas 12% de todas as vítimas da pandemia
Na pior tragédia de saúde pública da história, o Brasil superou oficialmente, nesta sexta-feira (8), os 600 mil mortos por covid-19, segundo dados do Ministério da Saúde. É o segundo maior volume de vítimas no mundo, em números absolutos, atrás apenas dos Estados Unidos. A marca ocorre em meio à melhora da pandemia, graças ao avanço da vacinação, e às críticas de especialistas ao enfrentamento da questão por parte do governo federal.
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Dados do governo federal mostram que o país chegou a 600.425 óbitos e 21.555.730 casos confirmados, o que representa a 8ª pior mortalidade do planeta a cada 1 milhão de habitantes, indicador que leva em conta o tamanho da população, conforme levantamento do Our World in Data, projeto ligado à Universidade de Oxford, no Reino Unido.
No Brasil, morreram de coronavírus mais pessoas do que a população de Florianópolis, Caxias do Sul ou Vitória, no Espírito Santo. Após o avanço da vacinação, o país vive tendência de melhora, mas em patamar alto de vítimas: aproximadamente 500 pessoas perdem a vida diariamente – longe do registrado no início do ano, porém mais do que uma queda diária de um Boeing 747, que comporta cerca de 400 passageiros.
A despeito de concentrar menos de 3% da população mundial, o país representa cerca de 12% de todas as 4,83 milhões de vítimas da covid-19 no mundo, segundo levantamento da Organização Mundial da Saúde (OMS). Entre as nações com maior número proporcional de vítimas, o Brasil é uma das poucas de médio ou grande porte, ao lado de Peru, Argentina e República Tcheca.
Analistas ouvidos pela reportagem afirmam que o combate à pandemia foi minado por falas ou ações do governo federal, o que incluiu atraso na compra de vacinas, promoção de remédios que não funcionam, redução da gravidade da pandemia e críticas aos benefícios de vacinar-se e do isolamento social.
— Peço a todos que lembrem cinco pessoas conhecidas, sejam familiares, amigos próximos ou conhecidos, que perderam a vida para a covid-19. Infelizmente, todo brasileiro consegue encher uma mão com pessoas queridas que perdeu durante a pandemia. Agora, imagine que quatro dessas cinco pessoas poderiam estar vivas, caso o Brasil tivesse mortalidade igual à da média mundial (que é de 611 mortes por milhão de habitantes, segundo o Our World in Data). Esse é o tamanho do desastre humanitário causado pelo negacionismo — diz o epidemiologista Pedro Hallal, professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e coordenador da Epicovid, a maior pesquisa brasileira de rastreamento do coronavírus.
O país levou cinco meses e meio para atingir 100 mil mortes e outros cinco para chegar às 200 mil vítimas. A partir daí, o Brasil entrou numa espiral acelerada e, em março deste ano, dois meses e meio depois, chegou a 300 mil óbitos. Pouco mais de um mês depois, registrou 400 mil vitimas. Menos de dois meses, chegou a 500 mil e, menos de quatro meses após, 600 mil.
O primeiro semestre de 2021 foi o mais letal da pandemia no Brasil, quando uma onda atingiu o país entre fevereiro e abril gerada pela variante Gama, originária de Manaus. Os efeitos foram fortes no Rio Grande do Sul, que viveu o colapso hospitalar, com mais de 4 mil mortes registradas fora de Unidades de Terapia Intensiva (UTIs). O Estado chegou a registrar uma média móvel de 300 vítimas por dia da covid-19.
O Brasil poderia ter sido exemplo mundial de combater a pandemia devido à tradição de medicina de família, mas foi por outro caminho, avalia o médico e presidente da Sociedade de Infectologia do Distrito Federal, José David Urbaéz Brito. Com a estrutura do Sistema Único de Saúde (SUS), o país poderia ter mobilizado agentes para visitar lares e esclarecer as pessoas, além de identificar possíveis contaminados.
— Aqui, sempre se deu a informação de que se trata a pandemia aumentando leitos. Isso é deixar que a infecção corra. Permitiu-se que as pessoas circulassem e que se infectassem, que teria UTI para atendê-las — pontua Brito.
A médica Rosana Onocko Campos, presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e professora de Saúde Coletiva na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) considera que o combate à pandemia no país foi "péssimo".
— Todos os apelos que a comunidade cientifica fez foram ignorados pelo governo federal. Tivemos trocas no Ministério da Saúde, praticamente desmontado nas equipes técnicas. O atraso das vacinas aconteceu por negligência. A CPI da Covid tem mostrado que houve um plano premeditado para negligenciar o combate à pandemia, inclusive com tentativas aparentes de corrupção sobre a saúde — diz Rosana.
A importância da vacinação
A despeito de todas as críticas sem base científica às vacinas, analistas afirmam que um histórico hábito dos brasileiros, elogiado mundo afora, falou mais alto: o apreço por ir ao posto de saúde buscar um imunizante.
Mesmo que tenha ingressando com atraso na campanha de vacinação, o Brasil aplicou até esta sexta-feira a primeira dose em quase 70% de toda a população (mais do que Estados Unidos e Alemanha, e quase tanto quanto Reino Unido) e ultrapassa 45% de todos os habitantes com esquema completo.
A cobertura varia a depender da região: no Rio Grande do Sul, com grande tradição em vacinar contra doenças respiratórias, 76% de todos os habitantes receberam a primeira dose e 53%, duas doses. A cobertura vacinal gaúcha de primeira dose está, apesar de ter começado bem mais tarde, no nível de países como Itália e França.
Em Porto Alegre, o movimento antivacina é fraquíssimo: 96,5% das pessoas acima dos 12 anos (portanto, aptas a buscarem um imunizante) já buscaram uma dose e 71,4%, duas. O discurso negacionista, assim, poderia encontrar eco em no máximo 3,5% do público elegível para as vacinas. Em termos totais, o que inclui crianças, 78,3% de todos os porto-alegrenses receberam uma dose e 58%, o esquema completo.
O avanço da vacinação começou a derrubar, a partir de junho, os índices de novos casos, hospitalizações e mortes, a despeito da entrada da variante Delta. Hoje, o Brasil não é mais o epicentro da pandemia no mundo e vive uma estabilização da epidemia, apesar das crescentes flexibilizações - graças ao efeito protetivo das vacinas, assim como da imunidade natural gerada pelo grande número de infeções no primeiro semestre do ano.
— Tivemos muitos agentes públicos com discursos contrários às medidas necessárias para o bem coletivo, como a máscara, o distanciamento e a vacinação. As pessoas não buscam o conhecimento direto, elas vão em porta-vozes e grandes formadores de opinião, o que afeta a adesão. A exceção é a vacinação: felizmente, por mais que tenhamos porta-vozes importantes gerando dúvida sobre segurança e eficácia das vacinas, o histórico acumulado de adesão à vacina nos protegeu desses discursos — analisa Marcelo Gomes, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e coordenador do Infogripe.
Até o início da vacinação, idosos eram as maiores vítimas da covid-19, destaca Gomes. Quando a faixa etária acima dos 60 anos foi incluída na campanha, o vírus passou a ser mais letal em adultos não vacinados abaixo dos 60 anos. Posteriormente, com a inclusão de adultos jovens, a população brasileira no geral ficou mais protegida e a epidemia perdeu força — com isso, os mais velhinhos voltaram a ser os mais vulneráveis, ainda que sejam hospitalizados em proporções muito menores do que antes da vacinação.
Situação é melhor, mas ainda exige cuidados
Atualmente, o país flexibiliza cada vez mais as atividades e permite maior circulação de pessoas — e o Ministério da Saúde discute a suspensão do uso obrigatório de máscaras. O epidemiologista Pedro Hallal, professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), acredita que, se não houver piora no cenário da pandemia, o fim da obrigatoriedade do uso de máscaras ao ar livre poderia se tornar realidade entre novembro e dezembro.
— A pandemia vai acabar na virada do ano no Brasil. O percentual da população brasileira que se vacina é muito alto. A gente deve parar de usar máscara em ambiente aberto entre novembro e dezembro e parar de usar máscara para valer entre fevereiro e março do ano que vem. No ano que vem, devemos ter Carnaval, jogo com torcida, escola e universidade com público e show de música. Será parecido com antes da pandemia — diz o epidemiologista.
Para José Brito, presidente da SBI-DF, o avanço na imunização deve ser comemorado, mas com moderação. Outros países viram a curva de contágios diminuir quando as pessoas começaram a ser vacinadas, mas a fase foi sucedida por nova onda provocada por outras variantes.
— Já tem proposta de festa de Natal, fim de ano, essa loucura de tirar a máscara. O momento é de respirar fundo e ir devagar — pede Urbáez.
Para Marcelo Gomes, duas questões devem ser foco de atenção: a manutenção do uso de máscaras e o aumento das internações em crianças, ainda não vacinadas.
— O Rio Grande do Sul está mantendo uma média de cerca de 70 casos semanais (de síndrome respiratória aguda grave) entre crianças de zero a nove anos. Os picos do ano passado foram da ordem de 50 casos por semana. Temos agora que olhar para as crianças pequenas, sem vacina disponível — afirma o pesquisador da Fiocruz.
Rosana, da Abrasco, afirma que o desafio do Brasil é melhorar a cobertura de vacinas em todos os Estados e lidar com as consequências trazidas pela pandemia.
— Teremos um rastro grande de sequelas, complicações da covid, de saúde mental, agravamento da pobreza e desigualdade. Teremos muito trabalho a ser feito ainda depois de superar o momento agudo da covid — observa.